quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A música no teatro

Tim Rescala


Ao iniciar este novo milênio, nos parece que em arte tudo já foi feito, principalmente pelo que se fez de genial em termos de experimentação no século XX. E a palavra de ordem nos dias de hoje, marcados por uma valorização do supérfluo e do descartável, é procurar a essência das coisas. E essa essência, ao contrário do que possa parecer, não está nas coisas mais complexas, mas sim nas mais simples.
Uma obra-prima da arte quase sempre consegue ser simples e complexa ao mesmo tempo. É o caso de Mozart . A flauta mágica, por exemplo, apresenta uma estrutura musical complexa e refinada, mas nem por isso trata-se de algo hermético ou de digestão difícil para os ouvidos. Muito pelo contrário.
Se procuramos a simplicidade, precisamos encontrá-la então em sua essência, naquilo que ela tem de indispensável e do qual não pode abrir mão para existir. A música não pode abrir mão do som e do silêncio, seu companheiro inseparável. Mas e o teatro? Pode abrir mão do texto, da luz, do som, do cenário ou do figurino? Pensamos que sim. Pode abrir mão de tudo isso, menos do ator. Sem ele, e sem a platéia, aliás, nesse caso sua companheira inseparável, como o silêncio é do som, me parece que o teatro não existe, ao menos em sua essência. E se o ator é a essência do teatro, onde estaria a essência da música para teatro? Me parece que no mesmo lugar, ou seja, no trabalho do ator.

Linguagem
Costuma-se dizer que a linguagem musical, abstrata por excelência, não possui um nível semântico, ou seja, um sentido ou um significado, digamos, aparente. Uma determinada sequência de notas ou um acorde , necessariamente, não quer dizer nada. Já uma sentença verbal, como “vou para casa”, pode ser analisada em seu nível sintático, estrutural, e dissecada como tal, identificando-se sujeito, predicado, verbo, etc... Mas a mesma frase possui também um nível semântico, um significado. Ela transmite uma mensagem, dá uma informação, cujo conteúdo é invariável. Sabemos que alguém está indo para a sua casa. E numa frase musical, isso é possível ? A princípio, não.
Alguém já disse que a música é a mais perfeita das artes, pois diz tudo e nada ao mesmo tempo.É justamente neste seu caráter abstrato, efêmero e volátil, que está o seu encanto. O que soa doce e suave para uns pode soar agressivo e áspero para outros, principalmente em se tratando de culturas diferentes. Um concerto de música indiana, por exemplo, pode ser uma experiência fatigante para um ouvido ocidental, mas com certeza pode levar um ouvinte oriental, mais habituado a esta linguagem, às alturas, bem perto de Deus.

Incerteza
Sobre essa arte da incerteza, feita de sons e silêncios, é muito difícil falar, verbalizar, sem se fazer uso de sua gramática própria, o que fatalmente afasta o leigo do debate. Não é à toa que a maioria dos músicos tem dificuldade para explicar seu trabalho, preferindo sempre tocar a responder qualquer pergunta sobre sua música.
Em suma, os níveis sintático e semântico, facilmente identificáveis na linguagem verbal, se anulam ou são uma coisa só na linguagem musical. Uma determinada frase musical, independente de seus elementos formantes, melodias, acordes, etc..., não tem necessariamente um significado. Analisando de outra forma, tem um sem número de significados, um para cada ouvinte. Mas (felizmente há o “mas”) nem sempre é assim. Para tudo há uma exceção e é essa exceção que mais nos interessa quando falamos de música para teatro: o instante em que o som pode produzir um significado, digamos, comum a todos os ouvidos.

Arquétipo
Tomando emprestado um termo da psicanálise, poderíamos dizer que existe um certo arquétipo sonoro, ou seja, um ente musical que pode ser apreendido e compreendido da mesma forma por ouvidos diferentes. Este “inconsciente coletivo sonoro” se apresenta, na maioria das vezes, sob a forma de algum clichê, ou seja, de algo que já foi exaustivamente escutado e que por isso se tornou quase que um símbolo. É como se fosse um código a nos dar uma informação. Ele nos induz, nos transporta para um determinado contexto, comum não a todos os ouvintes, mas à maioria deles. E as exceções ficam por conta das diferenças culturais e do próprio repertório auditivo do ouvinte, pois é ele quem efetivamente forma sua cultura musical e, consequëntemente, sua capacidade de apreciar e compreender códigos sonoros.
Tomemos por base um exemplo bem simples: os dois primeiros compassos do 1º movimento da Quinta Sinfonia, de Beethoven, o famoso “tchan-tchan-tchan-tchan...”. Mesmo um ouvinte não habituado à música clássica, certamente reagirá a esta frase musical de uma forma bastante induzida, ou seja, será remetido a um contexto de perigo, de tensão, de “algo vai acontecer”. Com toda a certeza, Beethoven não pensou nisso quando escreveu a sua sinfonia. Aliás, nem mesmo a platéia do concerto em que esta obra teve sua primeira audição.

Desgaste
Então por que isso acontece? Porque este frase musical, extraída de seu contexto original, foi utilizada e desgastada ao longo de muitos anos em comerciais de televisão e de rádio, desenhos animados, filmes, etc..., de forma a transmitir medo, apreensão ou dúvida. Este processo se deu de tal forma que mesmo alguém que nunca ouviu a sinfonia cantarola seus dois compassos iniciais (na maioria das vezes deslocando o tempo forte da frase para a primeira nota, que está num tempo fraco), ao fazer alguma brincadeira onde o perigo seja iminente.Mas, apesar de todo esse histórico, esta frase pode, ainda hoje, gerar outro tipo de sensação.
O primeiro movimento da sinfonia foi utilizado num dos quadros do filme Fantasia 2.000, da Disney, num contexto totalmente diverso e inusitado, uma alegoria feérica de formas triangulares, lembrando borboletas voando. A conjugação da música de Beethoven à esta imagem, por exemplo, fez com que minha filha, que viu o desenho pela primeira vez aos quatro anos, remetesse seu pensamento imediatamente ao vôo das borboletas e não a uma situação de perigo, logo ao ouvir a primeira frase da música. Felizmente, o contexto é bem mais agradável.

Borboleta
Para ela, que não tem ainda um repertório auditivo formado (ou deformado, como queiram) ao longo de vários anos ouvindo o “tchan-tchan-tchan-tchan...” como prenúncio de perigo, a música de Beethoven transmite apenas alegria, vida, jovialidade, movimento e, sobretudo, vôo de borboleta. Isso prova, a meu ver, duas coisas : 1) a música é mesmo uma linguagem abstrata por excelência; 2) a música (em seu estado puro, sem auxílio de texto) pode deixar de ser uma linguagem abstrata e vir a ter um sentido, caso apresente condições para isso.
E são essas condições, esse tal nível semântico, criado de forma um tanto artificial, mas inevitável, que tornam a música para teatro um universo inesgotável de som e sentido e que pode e deve ser utilizado de forma consciente e conseqüente.

Papéis
A música no teatro pode se manifestar em diferentes planos, tendo, em cada um deles, um papel bastante definido.Quando associada ao texto em forma de canção, assume uma função equivalente à do próprio texto. Em muitas ocasiões, como na maioria das óperas ou musicais americanos, apenas desenvolve uma idéia já exposta no texto, de forma a prolongar a sua vida e dar-lhe existência própria fora do contexto original do espetáculo. Em outros casos, as palavras contidas nas canções complementam e desenvolvem o texto, dando-lhe a capacidade de construir a trama em questão. Mas os aspectos mais interessantes da música para teatro se encontram eu seu estado mais puro, como música incidental.
Muitas vezes chamada de música de fundo ou trilha sonora ( no caso de ser gravada, como no cinema ou na televisão), a música incidental composta para teatro também se apresenta em planos diversos. Ora atua como mero suporte para o texto, sublinhando informações importantes (por contraste ou semelhança de atmosferas), ora adquire o status de texto, chegando a produzir e manipular o conteúdo da ação. É nesta circunstância que se encontra o mais rico e instigante papel da música no teatro, onde ela adquire função dramática. Neste estado, ela cria significados, desenvolve idéias, transmite informações, assumindo as funções do texto.

Planos
Em muitas peças onde a música se faz presente e atuante, podemos encontrar casos onde a ação se desenvolve sem a presença do texto propriamente dito. Algo muito próximo ao que acontece na música para balé, com a diferença de que num nível dramático mais desenvolvido, já que se está lidando com uma linguagem que trabalha em diversos planos sonoros ao mesmo tempo.
Como exemplo, tomemos uma cena com dois personagens, onde um deles está prestes a sacar uma arma e matar o outro, partindo-se do pressuposto que a platéia não sabe que isso vai acontecer. Eles apenas se olham, sem nada dizer. Entra uma música, inicialmente redundante, mas que pouco a pouco vai se tornando mais tensa e mais forte, num grande crescendo de intensidade. O suposto assassino caminha na direção da sua vítima, que recua na mesma velocidade, até que os dois saem de cena. A música, no entanto, continua em seu crescendo atordoante, que é então subitamente interrompido por um uma nota muito forte tocada num instrumento de percussão.

Leituras
Embora muitas leituras sejam possíveis sobre o que se passou com os dois personagens, podemos supor, com base nas informações que já tínhamos, que um deles atirou no outro, embora não tenhamos visto isso acontecer. Para que esta informação seja apreendida, a música colaborou basicamente com dois acontecimentos: o crescendo e a nota final, cada um deles com uma função diferente.
O crescendo ampliou e desenvolveu uma sensação de tensão, dando corpo a uma ação. Já a nota final, não só apresentou um desfecho para esta sensação, este movimento, como também apresentou uma informação a mais. E esta informação situa-se no âmbito do arquétipo sonoro, do inconsciente coletivo, que é acionado por um código já conhecido. E isso se dá pela simples semelhança que uma nota forte num instrumento de percussão tem com um tiro de revólver. Mesmo sem termos a informação da existência de uma arma ou da vontade de se cometer um assassinato, fatalmente vamos identificar a nota percussiva como um tiro.E isso não seria obra apenas da nota forte da percussão, mas principalmente do crescendo, que nos induz a imaginar que algo de grave vai acontecer.

Caminhos
Essa capacidade que a música tem de gerar sentido, de induzir sensações, de criar caminhos interpretativos, faz com que a linguagem da encenação teatral possua um parâmetro rico e mutante, o sonoro. Este pode manifestar-se, como vimos, em diversos planos, com ou sem a ingerência do texto.
E quando o som, elaborado através da linguagem musical, apresenta também esta capacidade de simular, induzir ou camuflar sentidos, temos um verdadeiro manancial de possibilidades a serem exploraras dramaticamente.

Pastiche
Para se manter viva, em constante movimento, a música feita para a cena precisa, acima de tudo, ser realizada ao vivo. Caso contrário, como é feita na maioria das vezes, infelizmente gravada, torna-se estática, imutável. É apenas um pastiche do que poderia ser, se evoluísse no espaço cênico da mesma forma que evolui o trabalho do ator, que nunca é (ou deveria ser) o mesmo em cada espetáculo.
Sendo gravada, a música será apenas um registro de um estágio de sua evolução, que, ao longo de uma temporada, permanecerá congelada. Isso ocorre principalmente quando a música é originalmente concebida para ser tocada por instrumentos tradicionais. Porém, se uma música incidental é criada dentro de um contexto eletroacústico, exigindo um grande apuro técnico, os critérios são outros, pois, neste caso, ela só pode existir gravada e não ao vivo.

Performance
Sabemos que ao longo da temporada de uma peça, o trabalho do ator tende a evoluir, pois um espetáculo nunca é igual a outro, embora muita gente defenda que a repetição tal e qual seja um objetivo a ser alcançado. A partir de sua estréia, o ator procurará aprimorar o seu trabalho, encontrando novas formas de falar o seu texto, de se movimentar em cena, mesmo que não haja nenhuma mudança substancial na estrutura da peça. Isto é, da própria natureza da linguagem teatral. E por que não seria também da música, que é também uma arte performática?
Os músicos que se dedicam ao teatro não são muitos, mas aqueles que realmente conhecem a linguagem teatral, sabem que a música no teatro se comporta de uma maneira totalmente diversa. Ela obedece a outras regras, tem outros parâmetros de desenvolvimento e exigem, inclusive, uma outra postura no palco. Mas quais seriam, afinal, estas características?

Irmã
Para chegarmos mais rapidamente à essência da música para teatro, o caminho mais rápido seria compará-la com sua irmã mais próxima, a música para cinema, justamente para que suas semelhanças sejam expostas e suas diferenças reveladas.
Peguemos como exemplo a famosa cena do balcão, de Romeu e Julieta, de Shakespeare. Imaginemos a mesma cena, com a mesma música, mas em contextos diferentes: no teatro e no cinema.
Assim como o próprio texto, a trilha sonora de um filme pode ser manipulada após o seu registro, ou seja, seu contorno final, principalmente no tocante à intensidade em que será ouvida, só é determinada no momento da mixagem do filme.Já no teatro, não só a intensidade da música, mas também seu andamento, sua interpretação, enfim, são determinadas no momento da ação, variando a cada dia (no caso de ser feita ao vivo, obviamente).

Realidade
O texto falado pelos atores num filme é sempre captado por microfones, o que lhes garante uma liberdade muito maior no que diz respeito ao volume da fala. Já no teatro o ator precisa impostar a voz para ser ouvido, da mesma forma que a música, ao interagir com o texto, não pode suplantá-lo em volume.
Enfim, o teatro pressupõe uma realidade acústica que não existe no cinema, ou melhor, que o cinema apenas simula, mas que não existe na realidade. Isso, por si só, já faz com que uma mesma música, com uma mesma instrumentação, feita para uma mesma cena, se comporte de formas totalmente diversas no teatro e no cinema. E o trunfo do teatro está justamente no imponderável, na possibilidade do erro, no risco.

Variação
Se fizéssemos um gráfico do comportamento dessa mesma música nos dois contextos em termos de amplitude, de dinâmica, veríamos que no caso do teatro ela teria uma variação muito maior. No contexto cinematográfico seria fatalmente mais comprimida, prevalecendo o volume médio.
Aliás, a música incidental no cinema, excessivamente funcional, costuma ser bem mais impessoal que aquela feita para o teatro, que, por sua vez, perde seu sentido fora de seu contexto original.

Músico = ator
Nossa defesa de um teatro essencial, que valorize a presença do ator, confunde-se com a defesa da música ao vivo no teatro.Ela pode ser feita por músicos que conheçam a linguagem teatral, mas também pode e deve ser praticada pelos próprios atores.
Neste caso, ela assume uma dramaticidade quase que natural, pois cada nota tocada em cena por um ator nasce antes de um impulso dramático para só então justificar-se musicalmente. E música para teatro é isso: produzir sons através de impulsos dramáticos.

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