Um encontro
Lionel Fischer
Era de noite. E era em Amsterdã. Apoiado na mureta de uma pequenina ponte eu contemplava, absorto, um dos incontáveis canais ali existentes. Mas pensava também em todos eles que, juntos, parecem cumprir em relação a esta cidade um papel idêntico ao das artérias e veias num corpo humano.
Num dado momento, interessado em avaliar a velocidade da corrente, atirei na água minha caixa de fósforo – como de hábito, abarrotada de palitos já usados. Executar esse gesto me obrigou a girar o tronco um pouco para a direita e então percebi a presença de um homem que, a uns dez passos e apoiado na mesma mureta, ignorava o fluxo das águas e me observava fixamente. Não havia mais ninguém nas redondezas, mas não senti nem medo nem receio, apenas uma sensação desagradável, pois a expressão zombeteira do homem parecia querer dizer “Vamos, coragem! Você não é o primeiro nem será o último. E além disso não deixa de ser belo se afogar num dos canais de Amsterdã!?”
Eu não pretendia, em absoluto, me matar. E se um dia o desejasse dispensaria o incentivo de quem quer que fosse. Portanto, por considerar uma impertinência o olhar que o outro me lançava, imitei-lhe a expressão o mais que pude e disse, esforçando-me ao máximo para impor ao meu incipiente inglês um acento britânico, cujo natural esnobismo julguei apropriado para a ocasião, e ao mesmo tempo também acalentando a esperança de que ele não me compreendesse:
- Encantadora a noite, o senhor não acha?
Não sei o que poderia ter acontecido se fosse outra a frase proferida. Sei apenas que esta desencadeou o mais insólito encontro de toda a minha vida. Imediatamente, o rosto do estranho transformou-se numa máscara impregnada de ódio, desespero e solidão. Sem poder atinar no porquê de tão bizarra e abrupta mutação – mas inegavelmente assustado – já me dispunha a dizer qualquer coisa quando o homem, antecipando-se, e num inglês absolutamente impecável, retrucou:
- Não existe nenhum encanto nas noites que eu conheço.
E começou a caminhar lentamente na minha direção, como se tivesse certeza de que eu permaneceria aonde estava. E como se não duvidasse de que eu escutaria tudo o que desejava que eu escutasse.
A distância que nos separava, ele a percorreu com as seguintes palavras:
- Os assassinos vasculham os becos. Colam-se às paredes das esquinas à espera de possíveis vítimas. Os policiais sentem cheiro de sangue, que os desperta de seu tédio e os lança à ronda. E nada mais importa. Todos cedem seus lugares para que o estranho espetáculo se consume...
Quando ele terminou aquilo que encarei como um disparate, se quisesse poderia tocá-lo. Nada, evidentemente, justificava tal proximidade e por isso imaginei que logo ele recuaria para sua posição de origem. Ou seguiria seu caminho saboreando a possibilidade de ter-me impressionado com suas frases de efeito. Mas não: como uma estátua de sal, ficou estaqueado à minha frente, como a aguardar o prosseguimento de um diálogo que em nada me interessava. Isso me permitiu empreender uma rápida avaliação de sua figura: teria uns sessenta anos, cheirava a vinho e à desgraça; deveria ter sido belo, mas no momento não passava de uma carcaça arruinada e pútrida; salvavam-se os olhos – imensos, ferozes, de criança abandonada.
Finalmente, ao que tudo indica convencido de que eu não diria uma única palavra, o estranho retomou sua expressão zombeteira e me perguntou se eu não gostaria de fazer um tour pela cidade.
- Naturalmente que não se trata de conhecer nenhum museu...- principiou, como se eu fosse estúpido a ponto de acreditar que algum estaria aberto àquela hora. - Proponho apenas um passeio...o senhor está sem sono e angustiado. Voltar para o hotel ou ficar aqui atirando caixinhas na água são opções ridículas, concorda? - e sorriu, descobrindo uns poucos dentes recobertos de limo.
Impressionado com a agudeza de sua análise sobre meu estado de espírito - eu realmente estava angustiado e provavelmente passaria a noite ou rolando na cama ou atirando coisas na água - devo ter feito uma expressão tão idiota que ele se sentiu no direito de encaixar seu braço no meu, como se fôssemos conhecidos de longa data, e iniciar naquele exato instante uma caminhada (da qual jamais me esqueceria) pelas estreitas e encantadoras ruas de Amsterdã.
Durante uns quinze minutos, o estranho permaneceu em silêncio. Mas a determinação de seu passo dava a sensação de que me conduzia a um lugar preciso. Entretanto, logo percebi que não íamos a parte alguma, quando muito nos afastávamos do local onde nos encontráramos. Por que o fazíamos? Eu o ignorava. De repente, quando nos achávamos diante de umas casas que em nada diferiam de tantas outras pelas quais já havíamos passado, ele retardou nosso ritmo e falou:
- Do outro lado do muro, gêmeos vitelinos se olham cheios de medo e ódio. E se ameaçam com alfinetes de prata. As senhoras dormem abraçadas a seus maridos, à espera de que sonhos as libertem. E as mocinhas se masturbam com seus cães de caça...
E interrompendo então a marcha, virou-se para mim:
- Nesse momento, as almas sujeitas à humilhação constante, os pequenos homens indefesos, dançam uma dança lenta e irreal. E cantam músicas que pouca gente conhece. É a hora em que os murmúrios se insinuam pelos cantos, pelas escadarias de cobre, pelas consciências adormecidas. Intactas...
Após saborear por alguns instantes o efeito de suas palavras - que realmente me atordoaram - ele arrematou:
- Ainda assim, meus olhos brilham e enchem de luz essa cidade morta. Esses caminhos gastos, que desconhecidos percorrem arrastando as próprias vidas e que conduzem a nada...
Um vagabundo demente, bêbado e miserável contava-me sua história. Erigia-se em exceção e fazia escárnio dos homens. Tanto daqueles que jamais tomariam conhecimento do que ele pensava quanto de mim, que o escutava. Mas não me atrevi a contestá-lo, pois de súbito me dei conta de que por trás desse discurso ensandecido havia muito de verdade, lucidez e tragédia. Pelo menos no que dizia respeito à minha própria vida. Sim, todos os caminhos que percorrera até então haviam me conduzido invariavelmente a lugar nenhum. Se me fosse perguntado, por exemplo, porque me encontrava em Amsterdã naquele exato instante, eu não saberia o que responder. Estava ali como poderia estar em qualquer outro lugar. No fundo, isso me era indiferente. Nos últimos anos nada fizera além de viajar pelo mundo, movido por um impulso que inicialmente atribuí a uma enorme curiosidade artística, o que justificaria a interminável peregrinação por museus, galerias de arte e teatros. Mas com o passar do tempo, e ainda que a contragosto, fui aos poucos sendo invadido pela incômoda sensação de que talvez protagonizasse uma farsa; que minha ânsia de conhecimento provavelmente se resumia a um temor inexplicável de empreender um verdadeiro encontro comigo mesmo, que de qualquer forma intuía que seria inevitável. E esse momento tão temido havia chegado, e da forma mais esdrúxula...
Certamente eu poderia ter me afastado, entre outras razões para não dar àquele estranho o prazer de me ver tão embaraçado. Ou poderia simplesmente ter lhe dado um murro, pois era óbvio que sua última frase continha uma descarada dose de deboche – genérico, por certo, mas também dirigido a mim. Enfim, teria pelo menos essas duas opções, que serviriam para criar em mim a ilusão de manter intacta minha dignidade. E no entanto...tudo o que consegui foi permanecer estaqueado, contemplando aquele espectro como se minha salvação estivesse atrelada ao que ele pudesse dizer ou fazer. E ele, ao que tudo indica satisfeito por ter devassado minha alma, limitou-se a lançar-me um sorriso angelical e em seguida, com calculada lentidão, deu-me as costas e começou a se afastar.
Por um instante, pensei que o melhor a fazer seria deixá-lo partir, sem exigir nenhuma explicação, e voltar para o meu hotel. Ou quem sabe para a minha ponte e ali retomar a patética atividade de conferir a velocidade das águas. Mas algo que até hoje não consigo explicar me obrigou a fazer de suas pegadas o roteiro obrigatório das minhas. E eu o segui como um cão, assistindo passivamente às suas intempestivas imprecações ou interrompendo a caminhada quando ele o fazia, inútil coadjuvante de um bizarro espetáculo cujo sentido me escapava. E ele sempre indiferente à minha presença, como se eu nada fosse, como se eu não existisse...
Finalmente, quando o dia começava a clarear, chegamos a uma pequena praça, cujo chão o outono se encarregara de enfeitar. Extenuado, o estranho caminhou na direção de um banco, mas antes de atingi-lo caiu de quatro. Eu me aproximei pensando apenas em ajudá-lo, mas ele me deteve com um rosnar de fera. E então pronunciou suas últimas palavras:
- Um dia o animal encurralado se libertará. Não para uma caminhada tranqüila, mas rumo à autodestruição. Será uma revolta breve e inconseqüente, que não servirá de modelo nem ganhará adeptos. Mas que lhe dará paz. Ao menos isso. Paz...
E tombou exausto em seu leito de improviso. Eu corri na esperança de reanimá-lo, mas logo constatei a inutilidade de qualquer tentativa nesse sentido: outrora imensos e expressivos, seus olhos já haviam se convertido em duas luzes ocas, boiando mansas num rosto rijo. O vagabundo demente, bêbado e miserável estava morto.
E de certa forma, eu também...
* * *
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009
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