quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Com a palavra, Fernanda


Não contente em ser uma das maiores atrizes do mundo, Fernanda Montenegro ainda se dá ao luxo de empreender reflexões da mais alta pertinência sobre suas grandes paixões: o ator, o palco e a arte de representar. Assim, julgamos extremamente oportuno reproduzir (ainda que eventualmente resumidas) algumas lições da grande mestra, extraídas do livro Viagem ao outro: sobre a arte do ator (Rio de Janeiro, Ministério da Cultura, Fundação Nacional de Artes Cênicas, 1988).

* * *

Diante da personagem

No meu primeiro contato com a personagem eu não vejo o espaço cênico. Vejo ali uma comoção que tem carne e osso, uma crise que tem carne e osso, uma paixão que tem carne e osso. Vejo não só uma personagem pela qual me interesso, mas olho um conjunto humano que me sensibiliza, o qual engloba essas personagens e dá vida a elas. Quando termino a leitura e meu coração bate mais depressa e meu pulso está mais acelerado, em um estado de combustão indescritível, puramente sensorial, emocional, sinto que há ali um material de primeira qualidade. Isso é o que me interessa. Posso sentir isso diante de uma comédia de boulevard ou de uma peça de Beckett.
O que é importante e duro no meu trabalho é depois, na calma, na busca de laboratório, na dissecação, chegar àquela primeira impressão que está guardada na memória. Eu sei que tenho que chegar lá. Mas quando o ator começa a trabalhar a paixão, a figura, o texto, ele vai secando, porque depois da primeira leitura há a segunda, a terceira e a milésima, embora muitas vezes façamos exercícios de sensibilização, tendo como material a temática da peça. De qualquer forma, o caminho é árduo.

Espaçonave
O meu trabalho consiste em me afastar da personagem que senti na primeira leitura, como se eu estivesse numa espaçonave, cada vez mais longe do meu planeta. E apavorada por não poder voltar e dar conta do que vi e senti. Porque eu vejo tudo de fora. Quando tudo estiver dissecado, tenho que me aproximar novamente. É preciso chegar e integrar. É um afastar-se e aprofundar-se ao mesmo tempo. Há o racional e o lúdico. A tortura e o gozo.
Geralmente o caminho da minha reaproximação é o decorar o texto com o emocional das frases. Depois de dissecar aquela verbalização, eu decoro os caminhos do texto, as possibilidades dramáticas. Quero dizer que não decoro apenas o sujeito e o verbo. Muito menos o som vazio das consoantes e vogais. É por isso que tenho muita dificuldade em decorar. Porque decoro exercitando essas diferentes possibilidades não de tons, de sons, mas de intenção. Durante os ensaios vou trazendo isso, deixando vir. Há então o diretor que diz “isto serve” ou “isto não serve”, de acordo com a linha de sua direção. O diretor abre pra você zonas que você não percebeu, e a recíproca também é verdadeira.

Aposta
Na verdade, quando chego a esse ponto, eu já engoli aquela massa verbal, que não pode estar só na minha cabeça e não pode estar só na minha língua. Passa a ser uma segunda natureza minha. E eu aposto nela. Eu assino embaixo, pois fui eu quem criou aquelas palavras que me levaram àquela emoção, àquela percepção. Quando emito o texto em cena, ele tem que sair com a absoluta carga de uma coisa criada naquele momento. O texto não foi decorado, não foi catalogado, não é apenas uma emissão. É uma realidade da emissão. É a emissão de todo o meu corpo, da alma. Se eu consigo ou não isso em cena, não sei. Um ator não se vê.
Às vezes, eu consigo. Para esse momento, para essa plenitude, vale a pena viver. Estou falando isso sem demagogia. É algo extremamente doloroso e pleno. No momento em que eu, um dia, em uma cena, consigo me colocar absoluta, inteira, integrada, de tal forma que se me perguntarem “onde você está?” eu levarei um segundo para responder, eu sei que consegui. Não todo dia. Não é mediunidade, não é um transe – muito longe disso. É algo incorporado, é algo realizado. O que se faz diariamente é a batalha para se chegar a isso.

Loucura
Quando se é jovem, o processo de representar durante meses a mesma peça, de trabalhar o texto muito tempo, enlouquece um pouco e, às vezes, muito. Com o passar do tempo descobre-se que esse é o grande caminho. Hoje eu posso “agüentar” uma personagem infinitamente dimensionada, mesmo sabendo que eu jamais vou dar conta dela, jamais vou chegar ao fundo do poço. E, apesar disso, continuo nela porque na medida em que descubro zonas da personagem, descubro zonas em mim mesma. Há uma troca, uma permuta de descobertas. E eu sei que há certas zonas que não consigo ver, que não verei nunca. Como muitas vezes nós deixamos de ver dentro de nós mesmos. É essa experiência vital, existencial, o que me interessa no teatro, fazendo um teatro melhor ou pior.
Às vezes eu tenho um texto inalcançável, como Fedra, que faço neste momento. É uma zona especial na minha vida, de reconhecimento do meu espaço feminino. Eu não sei se o resultado é bom ou mau porque eu não estou falando desse maniqueísmo ou do “sucesso”. Estou falando do encontro com a personagem, da integração com o trabalho. Da batalha para se chegar ao mito. Tentar arranhar, apenas, o mito. Ou ambicionar decifrá-lo. É algo que me servirá de amadurecimento pela vida afora.

Maldita
Hoje posso ver que persegui, durante esses anos todos, por meio de dezenas de personagens com as quais eu venho lidando, uma trajetória para chegar a Fedra. São quase 40 anos. Fedra é o mito, por excelência, do feminino. E vejo claro, agora, que sempre busquei esse mito para tentar entendê-lo e, por conseguinte, “me entender”.
Chego à conclusão, na minha pele, no momento em que faço Fedra, que da maldita Fedra nasceram todas as malditas da dramaturgia feminina. Sem Fedra não haveria Lady Macbeth, não haveria Hedda Gabler, não haveria a Alice, de Strindberg, não haveria Petra von Kant, de Fassbinder. Ela é o arquétipo, a zona mítica dessa Lilith de quem agora se fala tanto. Ela é a divisão do feminino, e não somente a divisão animal da sua fúria uterina. Eu acho que a tragédia desse mito está sobretudo na consciência do seu natural e incontrolável furor uterino, subjugado à civilização patriarcal que naquele momento se estabeleceu como sistema de vida.

Instinto
Eu não me interesso pelo jansenismo de Racine. Em Racine me interessa essa consciência do feminino dividido: Fedra tem a representatividade de rainha, da mulher que se submete a uma nova cultura, da mãe da civilização ocidental. E não segura tudo isso porque o seu instinto está acima do controle dessa visão racional. É o mito da transição e do ser dividido. Tudo isso já foi estudado e dissecado em inúmeros ensaios críticos e por gente muito mais capacitada do que eu. Mas um fato é ler a respeito, outra experiência é mergulhar nesse mistério e tentar recriá-lo.
Narrei a minha trajetória de Fedra para dizer que há personagens nos quais é preciso trabalhar um ano, dois anos ou mais, dia a dia. Quando eu luto para fazer essa personagem, para integrá-la, estou lutando também por mim mesma, como ser humano, como cidadã, como mulher e como ser materno.

Voltagem
Não sei se explicando isso estou explicando como é o meu trabalho, como eu me aproximo da personagem. Neste momento eu tenho a difícil sorte e o doloroso desgaste de estar fazendo uma personagem com essa dimensão. Não há apenas um esforço físico, atlético, de agüentar essa voltagem. Boal propôs e nós entramos por esse caminho desvairado, com uma visão brutal e feroz desta personagem, que eu, sinceramente, nem sei se é coerente com a escrita altamente palaciana, requintada e não menos ardente, de Racine. É difícil não ser sincera com essa entidade chamada Fedra. Falei em sinceridade, não falei em verdade.
Na interpretação não me interessa a verdade. Nem Cristo soube – ou não quis afirmar – o que é verdade. Acho que é porque não existe. Na essência a verdade não existe. O que existe, para mim, é a sinceridade. De que maneira sincera, sem blefar, eu poderia ver esta personagem? A minha maneira sincera de ver Fedra é buscá-la, junto com a direção do Boal, longe da estética do barroco francês, por conseguinte longe da encenação cristã: a morte para os gregos era a transcendência. Talvez outro caminho fosse mais fácil. Mas está aí uma situação delicada que o intérprete sempre enfrenta: os diferentes caminhos para se chegar a uma interpretação. Talvez eu esteja tentando ir até a origem do mito de Fedra por uma necessidade pessoal, para criar uma corrente histórica da minha vida de intérprete, buscando a fonte das muitas personagens pelas quais eu tenho passado por meio do meu trabalho. Ela é para mim essa fonte fascinante.

Entidades
Neste momento eu estou tão mobilizada pela peça de Racine, tão obcecada, que chego a ver as personagens de uma peça realista de fundo político e social, as personagens expressionistas, as personagens das peças simbolistas que venho representando pela vida, como entidades femininas que me levaram ou me trouxeram ao mito de Fedra. Chega a ser cômico, mas estou falando a sério. As técnicas, as crônicas e os gêneros são diferentes, mas a essência é a mesma. No momento não consigo deixar de vê-las sob outra ótica que não seja a ótica de ser mulher: a ótica de Fedra. Cada personagem está dentro de um gênero de teatro, cada uma tem uma solução estética diferente dentro do espetáculo, cada uma se resolve com uma profundidade diferente, maior ou menor, mas o ser feminino está lá.
Para falar do meu método de trabalho, porém, da minha aproximação da personagem, é preciso falar também do essencial que, para mim, é o mistério da inspiração. É que há em toda a criação a zona do mistério absoluto, onde ninguém pode dizer didaticamente “é assim que se faz”, porque essa zona pertence ao imponderável.


O ofício do intérprete

Essa zona fugidia do intérprete é algo enlouquecedor. É a zona a que Camus se refere quando fala no “grande viajante das almas”. Quem escreve sobre interpretação geralmente fica na coisa esquemática. Faz um elenco de exercícios, diz que é preciso ter voz boa, saber articular, saber adestrar o corpo. Há diversos métodos para apurar a sensibilidade do ator.
Fala-se então do que é necessário como instrumento de mobilização. Mas isso não é tudo. Um ator pode cumprir todo esse ritual, esse adestramento e não ser um bom ator. Pode-se cumprir toda a pesquisa formal, a procura do conteúdo, e ainda assim não ser um bom ator.
Na realidade, ser ator não é uma coisa que se possa codificar. Stanislávski criou o seu método, e o que parecia totalmente resolvido em seu método foi derrubado por Brecht. Na realidade são dois métodos que se completam, embora um tenha vindo para refutar o outro. No Brasil todos nós já passamos por muitos métodos mal absorvidos, superficialmente ensinados. Vamos acrescentando a nossa prática e a nossa vivência ao que conseguimos captar. E cada um de nós, no fundo, cria sua própria técnica. E sobrevive.

Métodos
Há zonas que ainda não foram codificadas e não existem na aparência. Mas um estudioso, amanhã, poderá descobrir um novíssimo código e conseguir dar forma a essas zonas. E o intérprete poderá usar isso e também aquilo. O intérprete pode se expressar por este ou aquele método, ou pela soma de todos os métodos. Em algumas peças pode-se usar mais um método do que outro. Mas, no fundo, a experiência interligou de tal forma os diferentes métodos que não é mais possível ser puramente isto ou puramente aquilo.
Quando Peter Brook passou pelo Brasil, eu tive a sorte de participar de um almoço com ele. Ele falava de seu grupo de trabalho e sobre como as diversas gerações de intérpretes se comportam diante de novos processos de trabalho. Ele deu um depoimento fantástico. Disse que, em determinada ocasião, convidou John Gielgud e Irene Worth para participarem de uma série de laboratórios de pesquisa teatral. Eles aceitaram e foram avassaladores. São atores que estão aí pelos 80 anos, considerados tradicionais e senhores de um repertório que todo mundo conhece. E houve uma tal integração desses dois velhos atores a um processo de trabalho diferente e havia uma tal qualidade no trabalho deles que o grupo parou e ficou assistindo, deslumbrado, os dois pesquisarem uma nova visão de espetáculo.

Exaustão
Ao interpretar um papel tantas zonas me movem, tantos mundos de pesquisa, tantas ambições de se reconhecer diante daquela provocação do poeta, que não é possível esgotar isso em dois meses de ensaio. É preciso repetir todos os dias, até se exaurir, até poder dizer: “Eu não quero mais fazer essa peça. Eu não agüento mais fazer essa peça”. E há dias em que eu me digo isso, e ainda não é verdade. Eu continuo fazendo a peça porque ainda não esgotei aquele relacionamento. E acho que não vai se esgotar nunca, porque há sempre bastidores e bastidores e bastidores. Sei que ambiciono ir além da cópia, da imitação. E acho que tenho uma assinatura de atriz não-realista, porque vejo que todas as coisas têm uma transcendência que vai além da cópia fotográfica, da busca do natural.
O realismo e o naturalismo encontraram seu veículo certo na televisão, pelo menos no nosso país. Estranhamente se popularizaram e se aburguesaram. Tudo é “verdadeiro” na telinha da TV, mas sabe-se que uma personagem não se resolve com uma verruga, uma corcunda ou uma peruca. Não é por mudar o corte e a cor do cabelo, botar um bigode, tirar um bigode que se cria uma personagem. Eu não gosto de usar esse socorro porque acho que são coisas que ajudam, mas não resolvem. Quando se usa a palavra “composição” parece que nos valemos de fatores físicos e materiais. Para compor uma velhota usa-se o vestido de uma velhota e pronto. Composição talvez seja uma palavra inadequada, simplória.

Muletas
Eu trabalho por um processo de deglutição, de absorção. Não gosto da composição pela composição. Às vezes pode-se até começar pela barriguinha, pela maquiagem mais pesada, uma dentadura estranha, arrastar os pés, tiques e mais tiques. A imaginação se vale dessas muletas. Mas, à medida que eu vou mergulhando e achando zonas íntimas dessa entidade-personagem, eu começo a querer me livrar desse lixo.
É claro que, se eu faço uma mulher do povo, vou me vestir como uma mulher do povo, vou ter uma configuração adequada a essa personagem. Mas depende também da visão da direção. Eu tenho que ser capaz de fazer essa mulher do povo mesmo vestida de rainha, se eu estiver trabalhando em um espetáculo em que isso é necessário para uma leitura simbólica, não-realista, de uma direção.

Aproximação
Do ponto de vista técnico, cada personagem tem uma forma de aproximação diversa. Há um caminho para se aproximar de Laudelina Gaioso, personagem de uma burleta de Arthur Azevedo, e outro para fazer Fedra, ou uma personagem de O’Neill ou a Romana de Eles não usam black-tie. Aí é que está o encanto do intérprete. Ele se enriquece como pessoa quando se informa. Ele se diversifica. Penso que é difícil distinguir com clareza qual é a técnica de um ator, porque ele está sempre também a serviço da técnica de um espetáculo, da estética do espetáculo, da ideologia do espetáculo.
Em parte, essa dificuldade em precisar o que está sendo utilizado vem do fato de que o intérprete não se vê. Um pianista vê os seus dedos sobre o teclado, ouve o som do instrumento que está diante dele e sabe quando uma nota destoa. O intérprete teatral não vê suas mãos sobre o teclado e apenas imagina o que estaria saindo dele. É como se perseguisse o ar. Não o vemos, mas sabemos que ele está ali, enchendo os pulmões.

Necessidade
Como intérprete, eu sinto a necessidade de ser do tamanho do espaço teatral. Se estou em cena, tenho que preencher toda a capacidade da sala. Tenho comigo que eu, como intérprete, tenho que estar presente até do lado de fora do edifício teatral, na frente e aos lados do edifício. Quem se aproximar daquela arquitetura tem que sentir que alguma coisa está vibrando lá dentro. Isso é uma loucura da minha cabeça, mas é uma coisa que orienta meu trabalho. O espectador que se sentar na milionésima cadeira deve ter o espetáculo ao lado dele, como se estivesse na primeira fila. E se alguém passar pela porta do teatro tem que sentir que lá dentro está acontecendo algo interessante, que existe alguma coisa pulsando desde a porta do teatro. Isso eu sinto desde a minha extrema juventude em teatro.
Entendo que se você faz um trabalho intimista, num pequeno teatro, adaptado a essa dimensão, você faz um trabalho elitizado, individualizado, restrito a uma platéia privilegiada. Iso determina uma medida, uma contenção, um bom-mocismo, por mais que se esteja fazendo um espetáculo violento e contestador. Se eu pegar o mesmo espetáculo e o jogar em um teatro de 1.500 lugares, dois mil lugares, eu sempre me transformarei diante desse desafio e farei uma interpretação mais didática e agressiva.

Violência
Já passei de uma sala de 250 lugares para uma sala de 2.500 lugares, com o mesmo espetáculo. É uma violência. É muito violento o caminho para chegar à abrangência dessa sala a partir de um jogo íntimo, microscópico, farmacêutico, até a explosão de um relacionamento mais amplo. Não é o caminho da produção em massa. Você tem que abranger dois mil corações de uma só vez, mas, separadamente, individualmente e ao mesmo tempo. E para chegar lá é preciso socializar o gesto teatral. É bonito isso. Uma das coisas que me dão alegria na vida é transformar um espetáculo de 300 lugares para três mil corpos.
Com Fedra nós saímos de uma sala de 350 lugares e fomos para o Recife representar a mesma peça para 2.500 pessoas, durante cinco dias. A primeira impressão é a de que eu não vou chegar lá, que não vou conseguir. Há um primeiro espetáculo baratinado em que eu enlouqueço em cena, em que o elenco enlouquece. É interessante observar como o intérprete absorve o espaço. Às vezes o esforço é tão grande que, quando termina, a carne toda bate. É um esforço de atendimento interpretativo e é também um esforço atlético. Porque a paixão, através do olhar, dos braços, do tronco, da voz, dos passos, dos gestos tem que chegar a todos. E há também o susto de saber que há 2.500 pessoas que poderão permanecer ali para ver ou então levantar-se e ir embora. Nessas circunstâncias é claro que o espetáculo se modifica. Na vivência de um intérprete, o jogo teatral é dinâmico como a vida. Nesses momentos, o comando está com os atores. E é por meio deles que tudo se harmoniza.

Estréias
Há as estréias, também. Minhas estréias são sempre tensas. O intérprete está saindo de um trabalho fechado, de uma busca dentro de um grupo. E aí chama aquele componente fundamental, que é o outro, para testemunhar o seu trabalho e integrar a comunhão do ato teatral. Esse primeiro encontro, como qualquer primeiro encontro na vida, tem as mesmas cargas.
Eu me preparo, sei que vou entrar por aquele lado ou por aquela porta, sei que vou dizer tais frases, pois ensaiei dias e dias literalmente no teatro, em casa, na rua. Mas há sempre o imprevisível, porque quem vai me assistir pode não querer vir, pode não se interessar pelo meu projeto, pode até estar contra mim e contra o meu trabalho antes mesmo de eu entrar em cena. Então a primeira integração é sempre assustadora.

Encontro
Eu acho que depois de um bom mês de espetáculos é que eu realmente me encontro em profundidade e começo a avançar. Os silêncios do público, o riso do público, a respiração do público são parte integrante do trabalho assim como eu, naquele momento, sou parte integrante da vida daquele espectador. Dependendo do impacto que um intérprete consiga provocar, a pulsação dele e a do espectador estarão coordenadas, no mesmo número de batidas por segundo.
Para mim o encontro de uma calma criadora só vem depois de um ou dois meses, quando as coisas estão amaciadas, quando eu tenho a certeza não só de um amor, mas de uma audiência, de uma adesão ao esforço que fiz para chegar. E só nesse momento é que existe prazer.

Coadjuvância
Há outras coisas que eu gostaria de dizer sobre o trabalho do ator. A coadjuvância, por exemplo, é uma das partes mais importantes e delicadas de um espetáculo. Alguns atores têm medo de protagonizar, mas eu acho que há uma hora em que o ator precisa ousar ser o titular, ter a coragem de protagonizar, nem que seja para se arrebentar. Há certas personagens que, por mais que apavorem – geralmente apavoram porque encantam – devem ser enfrentadas.
Essa coragem é a grande aventura do ator. É mais fácil, mais confortável – na medida em que o teatro possa ser confortável em algum setor – ficar na periferia. Certamente esse ator será um bom coadjuvante. Mas ele tem que ousar chegar até o protagonista e, depois, ousar voltar à coadjuvância. Um ator não pode competir sempre consigo mesmo sem perder o humor, a graça de viver. O ofício viraria uma tortura. Se um dia alguém gritou, no meio da orgia tribal, que era Dionisios, embora há milênios, também devemos mostrar, hoje e sempre, esse grito que protagonizou a crise.

Coragem
É preciso fluir e refluir. Alternar. Diversificar textos, direções, importância de papéis. Protagonizar exige coragem, porque sempre é perigoso e desafiador se assumir como Dionisios...O ator é posto à prova e arrisca inclusive o seu sonho de intérprete. É pagar para ver.
Aparentemente, dependendo do caráter do ator, fazer o segundo, o terceiro ou quarto papel não exige tanta responsabilidade. Mas, no fundo, todo ator sonha fazer um primeiro papel. Isso não é crime, não, minha gente. Não é crime um autor escrever todos os papéis. Não é crime um diretor dirigir todo um elenco. Por que um ator não pode sonhar com um papel absoluto? Pois ele tem que tentar chegar lá como um exercício de coragem. Isso o ajudará a buscar subsídios para uma longa vida artística e encontrar a sua assinatura de intérprete. Mais cedo ou mais tarde um bom intérprete vai esbarrar nesse tipo de solicitação.

Assanhamento
Às vezes há um assanhamento na coadjuvância, uma competição bastante freqüente com quem está protagonizando. Isso perturba muito. E há diretores que fomentam isso no elenco porque gostam, se estimulam e até criam melhor, acirrando os espíritos competitivos, provocando o “racha”, deslocando a ação do protagonista para a coadjuvância.
Há também essa coisa estranha, às vezes, quando um diretor entra em competição com o elenco e o elenco acha que o diretor-pai está querendo destruí-lo. São zonas extremamente delicadas no relacionamento teatral. E muitas vezes um espetáculo se perde aí. Como aí também pode se achar.


Uma intérprete

Acho que sou uma atriz convencional, porque sempre tive fascínio pela possibilidade de interpretar personagens, de tentar ser outro, de me enfronhar no outro, de buscar o outro. Pode parecer uma conversa de uma atrizona que vê a vida em termos de papéis, mas quero dizer que sou uma atriz que gosta de representar personagens, sim. Eu gosto de fazer papéis, sim. E compreendo que todos os papéis são fundamentais em um espetáculo. Essa é a minha convenção de atriz, e é a partir dela que posso dar o meu depoimento, que é o deste momento, em que ainda estou viva, porque não sei o que será o teatro daqui a trinta anos. E estou falando para aqueles que querem fazer não uma carreira, porque essa palavra está muito deturpada, mas uma vida de intérprete. Falo de atores para atores.
Minha posição dentro do conjunto de trabalho não é única, mas é a minha maneira de ser. Pertenço a uma geração não-romântica no sentido do divismo, do grande astro e sua corte, da grande dama com sua corte, da vedete com vocação solista. Não gosto de intérprete que só trabalha quando o centro do palco é seu, quando a melhor luz é a sua e quando há um elenco que não perturba e não divide. Odeio elencos subservientes, atores servis. Amo trabalhar com colegas potentes, que entendam a harmonia de uma cena e contribuam com sua força de intérpretes, participando da festa, do ritual, livres da competição burra e destruidora.

Desafio
Não sou de perseguir colegas, obstruir carreiras, proteger apaniguados. Jamais exerci poder tentando destruir talentos. Isso é um desafio porque, como ser humano, sou invejosa, insegura, desconfiada e egoísta. Não é por ser boa e obediente, não. Pertenço a uma geração que visa o espetáculo e para quem, antes de mais nada, o fundamental é o trabalho da oficina, do magistério. Percebi esse exemplo ético, no teatro, com Dulcina. Essa política de relacionamento aprendi com Dulcina. A companhia de Dulcina foi um exemplo de qualidade, de altíssima qualidade. Toda uma companhia de primeiríssimo time e nenhuma mesquinhez. Nesse exercício, nessa busca constante de integração com o elenco e de harmonia com o diretor, minha posição é de atendimento, de dedicação e de assumir o meu posto. Como intérprete, eu me eduquei. Adquiri esse temperamento de ouvir o outro. Como é que se pode aprender a ser ator sem aprender a ouvir? Acho que é fundamental trabalhar ouvindo pessoas que às vezes ainda não estão preparadas técnica e intelectualmente, mas estão ali e têm uma opinião.

Cumplicidade
Minha maneira de ser atriz é por meio de minha definitiva ligação com o palco. Tenho uma total cumplicidade com o palco. Eu nem sei se é com o teatro. É com o palco. Vejo pessoas que têm uma vocação absoluta para o teatro. Pessoas que, no espaço do teatro, têm uma diversificação de atividades plenamente realizada. No meu caso é o palco mesmo. É gostar do palco. O palco é a continuidade da minha casa, da minha vida. É o espaço do espetáculo que me interessa.
Não penso em dirigir, não penso em cargos públicos e não sei como eu seria sem a força do espaço de atuação mesmo. E é por isso que sinto essa necessidade de ampliar o palco até lá fora. Derrubar a linha divisória ator-espectador. Eu não gosto do ator miudinho, que fica no cantinho, fazendo o seu codigozinho. O teatro é também uma realização de caráter social. Todos nós sabemos disso.

Quarta parede
Sou um tipo de atriz que faz os espetáculos convocando, instigando ou solicitando à platéia que venha junto. Eu não sou de quarta parede. O teatro é uma coisa tão boa, um espetáculo solidamente realizado é um acontecimento tão bonito, tão rico, tão cheio de sonho e plenitude, que tenho imenso prazer em convidar a platéia para essa festa, numa cumplicidade muito grande. Como se eu estendesse a minha mão, buscando as mãos dos espectadores. Não quero dizer com isso que eu cortejo o público. Não é isso, não. Muito pelo contrário.
Tenho feito personagens bastante complicadas, bastante difíceis, bastante malditas. Não sou uma atriz preocupada em representar para jovens, para a classe média alta, para a classe média baixa ou para operários. Tenho a impressão de que devemos fazer espetáculos para alcançar todas as platéias. Já fiz espetáculos que eram considerados difíceis, sofisticados, dentro de fábricas, na periferia, e com resultados fantásticos. Fiz, dentro de fábricas, em temporadas populares, autores como Dürrenmatt, Pinter e Beckett. Jamais se poderia imaginar que aquela temática fosse interessar e ensinar tanto. E é um público que não tem nenhum motivo para ser gentil.

Academia
Um intérprete tem que fazer espetáculos que interessem a todos. Se o jovem solicitasse espetáculos especiais para ele, seria preciso fazer também espetáculos especiais para velhos, para professores, para médicos, para costureiras...O espetáculo seria então, não um jogo de transferências de experiências humanas, mas um compêndio adequado a cada seita, a cada sistema, a cada filosofia, didatizando determinado texto para cada grupo de pessoas. O teatro é muito mais do que uma academia.
O ideal do teatro seria que, como na Antigüidade, cada cidade tivesse possibilidade de abrigar todos os seus habitantes em um mesmo espaço e fazer um espetáculo para toda a comunidade ao mesmo tempo. Infelizmente isso não é possível. Mas, na medida do possível, eu quero tentar isso. Quero que a experiência do teatro não seja seccionada. Que comova sem doutrinar. Minha geração passou por uma fase de teatro engajado dirigido. Foi interessante, mas doutrinar não é o meu forte.

Fascismo
Não acho que a vida deva ser um desafio voltado para a auto-competição, não tenho a idéia de que é preciso se pôr em perigo para existir. Essa posição me cheira a fascismo. Mas é preciso ter espírito de aventura, no melhor sentido. Eu escolhi essa trajetória conscientemente? Ou foi o acaso que a jogou na minha vida? A minha aventura é me distribuir por personagens e personagens e personagens.
Sou uma atriz que fez burletas e fará burletas na hora em que for necessário. Posso enfrentar uma comédia musicada se me derem um bom ano para me preparar. Posso arriscar no sentido de me aventurar. Em todos os gêneros. Fiz peças como O mambembe e Marta Saré. Fiz comédia. Adoro boulevard. É um prazer fazer O amante de madame Vidal, Mary, Mary, Plaza suite, A pulga atrás da orelha. É o jogo pelo jogo, uma coisa bonita, cheia de verve, de encanto.

Horror
Porque me proponho ser uma intérprete, porque tenho a presunção de ser uma intérprete, tenho horror de me fechar em um tipo de segurança bem-sucedida. Um spot em cima da gente e “vamos lá!”. Gosto do risco de inventar o outro, de analisar, de participar.
Mas acima de tudo, lá no fundo da minha alma, gosto de manipular o maldito. Gosto dos autores malditos, daqueles que, na opinião geral, são “uma fria”, daqueles que as pessoas me dizem que serão o meu fim, que nem sequer sabem porque eu monto. Autores “fadados” também ao fracasso de bilheterias.

Mergulho
Quando faço um Beckett, aquilo me marca para o resto da vida. Não sei se terei nota dez ou zero. O que me interessa é o mergulho que se dá. E se me interessa, tenho a presunção de que poderá interessar a muitos outros loucos. É um referencial para toda uma vida. Quem mexe com aquele mundo, mexe com o que há de mais inquieto e misterioso dentro de si mesmo. Posso citar outros autores desse tipo com quem me aventurei: Peter Weiss, Harold Pinter, Rainer Fassbinder, Nélson Rodrigues, Eugene O’Neill, Francisco Pereira da Silva...
E agora o pobre do Racine. Pobre porque, apesar da glória do seu nome, no Brasil se pressupõe que ele principalmente seja aquela “figura negativa de bilheteria”. A história conta que essa peça jamais obteve um resultado de bilheteria à altura do que ela significa para o teatro. No Brasil seria um teatro para ninguém. É coisa pra “francês decadente”.

Mentira
Já ouvi muita gente dizer que a grandeza de Racine se deve ao grande poeta que ele é, porque como escrita dramática deixa muito a desejar. Não é verdade. Estou trabalhando com esse texto numa tradução luminosa do Millôr Fernandes, livre do alexandrino, mas que não é uma tradução livre. E sinto que a escrita dele é a escrita de um autor excepcional, que trabalha a crise dramática a partir de uma visão aristotélica pura. Perfeita.
Então, lidar com o maldito é lidar também com aquilo que eu não conheço, que eu não sei fazer, que eu talvez nunca venha a saber fazer. Ah! Isso me agrada! Isso, nesta altura da minha vida, me agrada. Não pelo fato de viver na tortura, mas pela possibilidade da especulação teatral, de tentar o desconhecido.

Descanso
Quando pego uma peça que ao ler já fico sabendo como vou resolver, acho simpático. É interessante. É o momento do descanso do guerreiro. Mas é mais vivo e avassalador lidar com aquele autor que ainda não sei como é. Qualquer coisa que eu descubra para andar sobre ele, com ele ou nele é um pulo de anos de conhecimento, principalmente sobre mim mesma.
Há uma outra observação que talvez interesse a este depoimento. Todos nós temos uma linguagem própria. Não há dois atores iguais, não há dois seres humanos iguais. Na minha geração, na geração que me antecedeu, na que veio depois de mim, cada ser-ator tem uma respiração própria, uma visão de mundo, um somatório de experiências e uma conformação genética que fazem dele uma personagem única. Aqui se pergunta muito quem é o primeiro ou o último, o maior ou o menor, quem substitui quem, quem vai ficar no lugar de quem, quem vai receber o cetro de quem. Acho tudo isso uma bobagem, porque ninguém ocupa o lugar de ninguém. A minha respiração é a minha respiração e assino embaixo. E o caráter dessa assinatura nasceu comigo e morrerá comigo.

Acaciano
É acaciano dizer que eu tenho uma personalidade só minha. Não estou no teatro para ocupar o lugar de nenhuma atriz viva, morta ou que venha a nascer. Tenho a minha trajetória, tenho o meu lugar, bom ou mau, bem realizado ou mal realizado, e é só meu. Só esse lugar me interessa, porque só essa é a minha história, só essa é a minha capacidade ou a minha incapacidade. É claro que eu tenho as minhas influências, as influências que recebi de outras atrizes e outros atores, dos filmes que vi, das músicas que ouvi, dos livros que li, das pessoas com quem vivi. São heranças buscadas ou influências espontâneas guardadas na minha sensibilidade, na minha memória, no meu inconsciente.
Mas tudo isso, como diz Clarice Lispector, “forma um sangue que não se repetirá mais”. O meu sangue é uma qualidade de sangue que não se repetirá mais. Portanto, este pequeno lugar é meu e não pertenceu nunca a ninguém. Não pretendeu nunca o espaço de ninguém. Também tenho a clareza de saber que este meu pequeno lugar ninguém irá ocupar. Este ser que eu sou, bom ou mau, é único. Só ele domina o espaço físico e espiritual que é o meu corpo.

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