quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Shakespeare assombra Brecht


Bernard Dort


Durante toda a sua vida, Brecht foi literalmente assombrado por Shakespeare. Se não em todos os momentos, pelo menos em cada grande transformação de suas reflexões sobre o teatro teve a necessidade de referir-se a Shakespeare, de enfrentar Shakespeare. Assim, encontraremos, por volta de 1926-1929, início da elaboração do conceito de “forma épica”, a Introdução a Macbeth, redigida para uma transmissão radiofônica da tragédia de Shakespeare. E depois, por volta de 1937-1939, um texto tão importante quanto O teatro de Shakespeare. Também no Pequeno Organon, datado de 1948, vários parágrafos são dedicados a Shakespeare. Finalmente, o trabalho sobre Coriolano ocupa um lugar importante nos últimos anos da vida de Brecht; a princípio pela adaptação da peça em 1951-1952 – acompanhada pela redação de inúmeras notas sobre Coriolano; depois, por diversas discussões do “coletivo” de encenação do Berliner Ensemble quanto à futura realização cênica de Coriolano (destas discussões foi tirado o Estudo da primeira cena de Coriolano, considerado por Brecht como uma peça essencial de um futuro conjunto teórico: A dialética do teatro).
Inicialmente, Brecht opõe uma recusa ao teatro shakespeariano, definido como uma dramaturgia das grandes individualidades que voltam as costas à sociedade e vão se perder e se exaltar na solidão. Esta recusa data dos anos 1926-1929, quando optou pela “forma épica do teatro”. Pode-se perceber nesta recusa a influência do sociólogo Fritz Sternberg, com quem Brecht teve então inúmeros encontros e até uma troca de cartas abertas sobre o drama. Sternberg via em Shakespeare o pai do teatro ocidental: em sua obra, dizia, a tragédia do indivíduo começa a se separar da tragédia da sociedade; e chegava mesmo a concluir pele inutilidade, em nossos dias, de uma dramaturgia em que se haja consumado a ruptura entre o indivíduo e a sociedade. Sem chegar a este ponto, Brecht compartilhava as opiniões de Sternberg sobre o teatro shakespeariano.

Ao longo de quatro atos, Shakespeare arranca a grande individualidade – Lear, Othelo, Macbeth – de todos os laços que a ligam à sua família, ao Estado, e expulsa-a para o deserto, para a solidão completa, onde ela deverá, no mesmo momento em que sucumbe, mostrar sua grandeza. Resulta dito uma forma dramática semelhante, por exemplo, às ondulações de um campo de aveia. O primeiro movimento de uma tragédia existe apenas para o segundo, e todos os seus movimentos existem apenas para que o último possa existir. É a paixão que mantém em atividade todo esse mecanismo, e a finalidade desse mecanismo é a grande experiência individual. Épocas posteriores definiram essa forma de drama como um drama para canibais e constataram que no início, em Ricardo III, o homem era devorado alegremente e no fim, como o cocheiro Henschel, lamentavelmente; mas que, de qualquer modo, ele era devorado.

Cerca de 20 anos mais tarde, Brecht voltaria a esta questão no Pequeno Organon e retomaria, quase que palavra por palavra, esta condenação de um teatro para “canibais”:

As grandes individualidades shakespearianas que trazem em si mesmas a estrela de seu destino, lançam-se em um fatal e inútil frenesi de assassinatos e precipitam sua própria perda; tanto que, em seu desmoronamento, é a vida e não a morte que se revela obscena, pois a catástrofe escapa a qualquer crítica. Sacrifícios humanos sempre e em toda a parte! Festas bárbaras! Sabemos perfeitamente que os bárbaros têm uma arte. Façamos uma outra!

Esta recusa ao teatro shakespeariano considerado como uma forma anacrônica, absolutamente imprópria para satisfazer nossas necessidades, foi formulada incessantemente por Brecht de diversas formas. Na introdução a Macbeth refere-se à sua improdutividade:

Alguns de meus amigos me garantiram, de maneira franca e clara, que Macbeth não poderia de nenhum modo lhes interessar. Esta tagarelice de feiticeiras, disseram, não nos inspira nenhum pensamento; estados de alma poéticos são nocivos, pois impedem que o homem ponha ordem em seu mundo; e uma glorificação geral das terras incultas chega decididamente tarde demais em uma época em que toda a energia da humanidade deve ser empregada para persuadir estes desertos a passarem a produzir cereais. De resto, tentar transformar os desertos em campos cultivados e os regicidas em socialistas seria bem mais útil e mais poético. Estas objeções devem ser escutadas muito seriamente, pois partem de pessoas despertas que, no meu entender, devem ser incitadas a freqüentar os teatros.

Mas é verdade que um pouco mais adiante, após ter verificado que as “Partes centrais da tragédia, esta seqüência de cenas que envolvem Macbeth em feitos sangrentos mas sem saída, não podem ser representadas”, Brecht parte para o sentido inverso desta opinião e apresenta o teatro de Shakespeare como um teatro brechtiano – ou seja, para ser encenado de forma conveniente exigiria o “estilo épico”.
Mas por enquanto vamos nos restringir ao primeiro teatro brechtiano. Nesta fase, Brecht restringia o teatro shakespeariano às grandes individualidades que fogem da sociedade e retornam à solidão, teatro das forças improdutivas, onde o homem é sempre batido pelo destino:

O que encontramos no velho teatro é uma técnica muito aperfeiçoada que lhe permite descrever o homem como um ser passivo. É mostrando como ele reage psiquicamente ao que lhe acontece que seu caráter é construído. O Ricardo III de Shakespeare responde a seu destino de aleijado esforçando-se por estropiar o mundo. Lear responde à ingratidão de suas filhas, Macbeth ao convite das feiticeiras que o incentivam a ser rei, Hamlet à incitação de seu pai, que o exorta à vingança. Wallenstein responde à tentação de ser infiel ao imperador. Fausto à tentação de viver, apresentada por Mefistófeles. Os tecelões reagem à opressão promovida pelo fabricante Dressger e Nora à opressão que seu marido exerce sobre ela. A questão é colocada pelo “destino”, e trata-se apenas de resolver a crise, fora do quadro de qualquer atividade humana; é uma questão eterna, e não deixará de tornar a surgir, nenhuma ação fará com que desapareça, ela não é humana em si, e jamais poderá ser identificada a uma atividade humana. Os homens agem sob coerção, de conformidade com seu caráter, e este caráter é “eterno”, imutável, pode apenas se manifestar, mas não tem causas sobre as quais o homem possa ter influência. Pode-se, é bem verdade, dominar o destino, mas apenas se acomodando a ele; a “má sorte” pode ser suportada, eis todo o domínio que é possível ter.

Brecht não nega, é claro, que às vezes o herói shakespeariano é livre, mas na realidade sua liberdade é apenas a liberdade de reagir às paixões:

O teatro elisabetano dotou o indivíduo de uma poderosa liberdade e o abandonou generosamente às suas paixões: a paixão de ser amado (Rei Lear), a de reinar (Ricardo III), a de amar (Romeu e Julieta, Antônio e Cleópatra), a de punir e de não punir (Hamlet) e assim por diante.

Uma liberdade, em suma, romântica: esta liberdade que o jovem Brecht admirava e criticava ao mesmo tempo no Dom Carlos de Schiller. A liberdade de cantar, mas não de agir. O contrário da verdadeira liberdade que é agora, a seu ver, a liberdade “para a sociedade transformar o indivíduo e torná-lo produtivo”.
Em Shakespeare, Brecht recusa a concepção dramática do teatro, que ele define assim:
O indivíduo é sua matéria-prima; a paixão, o meio; e a experiência vivida, a finalidade.

Entretanto, Brecht vê também em Shakespeare um precursor da forma épica do teatro, que ele opõe precisamente a esta forma dramática. O teatro shakespeariano não se restringe, de fato, à dramaturgia que engendrou: é bem mais amplo que ela. Ao mesmo tempo que rejeita a “ideologia” shakespeariana e sua visão trágica do universo, Brecht aceita as formas do teatro elisabetano que para ele se apresentam, com referência à sua própria experiência e a suas próprias preocupações, como uma antecipação do teatro épico. Daí a imagem, um pouco simples, que Brecht faz das condições da representação elisabetana:

Fuma-se também nos teatros; na sala, vende-se tabaco; no palco estão sentados os snobs que, fumando seus cachimbos, observam sonhadoramente como o ator representa a morte de Macbeth.

Esta imagem corresponde a um dos temas prediletos de Brecht: no teatro, deve-se poder “acender os charutos”. Mas Brecht não se limita a isto: para ele, é ponto pacífico que as peças shakespearianas foram compostas a partir de obras já existentes – que Hamlet, por exemplo, se origina de uma peça mais antiga, obra de um certo Thomas Kyd, que, alguns anos antes, já havia obtido grande sucesso. Deste modo, estas peças não são apenas a adaptação de obras anteriores, mas também conservam fragmentos inteiros destas obras, o que condiz com a técnica fundamental de toda a literatura épica: a da montagem, que permite incluir, em uma mesma obra, elementos heterogêneos.
Em seu diário, em 1940, Brecht assinala que Shakespeare pode ser considerado como o produto de um trabalho coletivo. Não que chegue a contestar que Shakespeare tenha sido o autor de suas peças, mas vê na técnica dramatúrgica empregada o resultado de um trabalho que, segundo ele, é menos individual que coletivo – e sabe-se que Brecht, que era sempre assistido por vários amigos ou colaboradores, encarava seu próprio trabalho de dramaturgo como uma obra coletiva:

O que me leva a crer que um pequeno coletivo haja terminado as peças de Shakespeare, não é que eu ponha em dúvida a possibilidade de um só homem ter escrito estas peças, nem de ter tido suficiente talento poético, ou suficiente habilidade técnica, em matéria de versificação, e nem de ter sido culto o bastante para fazê-lo. É mais porque eu reconheço em suas peças, em matéria de construção, de montagem, a maneira de trabalhar de um coletivo...Shakespeare foi sem dúvida a personalidade mais forte deste grupo. E assim, inclino-me a ver em Shakespeare uma espécie de chef-dramaturg.

E Brecht dá destaque às “inovações técnicas” que um coletivo shakespeariano teria deste modo introduzido no teatro.
Um outro ponto que lhe parece importante é que as obras Shakespearianas são o produto de um trabalho que nunca é definitivo e sempre suscetível de revisão. Brecht alega assim não apenas a existência de várias versões de uma mesma peça, mas ainda o fato de que em uma só obra impressa coexistem, de certa forma, várias versões da mesma. Baseado em um manuscrito teatral de 1601, Brecht assinala que diversas variantes são citadas e, à margem, o autor coloca esta anotação: “Escolha a modificação que lhe parecer melhor, e também esta: se essa formulação é difícil de compreender ou não convém ao público, pode-se usar uma outra”. E constata ainda:

As peças de Shakespeare são extremamente vivas. Elas parecem ter sido impressas a partir dos libretos dos autores, incluindo as improvisações destes e as correções realizadas ao longo dos ensaios. Hamlet sempre me interessou pela seguinte razão: sabemos que se trata de uma adaptação de uma peça anterior, obra de um certo Thomas Kyd, que, alguns anos antes, já obtivera grande êxito. Ela tratava da limpeza de uma estrebaria de Áugias. O herói, Hamlet, punha ordem em sua família. Parece que o fazia sem a menor dificuldade, tudo parece ter sido concebido em função do último ato. Mas o ator principal do Teatro Globo shakespeariano era um homem atarracado, de fôlego curto, de modo que após um certo tempo todos os heróis daquele Teatro tornaram-se atarracados e de fôlego curto, tanto Macbeth como Lear. Foi para ele, e possivelmente graças a ele, que a ação (de Hamlet) foi então aprofundada. Foram introduzidos alguns curto-circuitos. A peça tornou-se assim mais interessante. Tem-se a impressão que trabalharam e remodelaram a peça no palco até o quarto ato e esbarraram na dificuldade de chegar com este Hamlet hesitante ao banho de sangue final, que havia feito o sucesso da peça anterior. No quarto ato, encontram-se assim várias cenas, cada uma das quais constituindo uma solução do problema. Talvez o ator as utilizasse todas, mas talvez também mantivesse apenas uma, e contudo todas chegaram ao livro. Todas elas têm as características de uma inspiração súbita.

Este trabalho shakespeariano, reconstituído com alguma fantasia, passa desse modo a figurar como modelo. Brecht louva seu caráter profano, terra a terra e sadio. Recomenda mesmo a seus atores estudar os contratos feitos por Shakespeare com seu elenco, isto porque vê na atividade do Teatro Globo um exemplo comparável ao de Galileu em Florença – todos estes textos de Brecht datam de 1939-1940 – quando ele acabara de terminar sua primeira versão de Galileu Galilei:

Eles, Shakespeare e os membros do seu coletivo, experimentavam. Não experimentavam menos que Galileu em Florença e Bacon em Londres, e por isso devemos também montar estas peças entregando-nos a experiências.

Até mesmo com relação aos efeitos V (efeitos de distanciamento ou de afastamento) Brecht descobriu exemplos na obra de Shakespeare. De início, nela os papéis são, como em todo o teatro da época, representados por homens: já é uma maneira de afastar de nós as personagens. As paisagens não são imitadas pelo cenário, mas pintadas, descritas pelo poeta – e isto em pleno fogo da ação:

O palco não tem nenhuma determinação, ele pode ser todo um deserto. Em “Ricardo III” (ato cinco, cena 3), entre os dois acampamentos em que se situam as tendas de Ricardo e de Richmond, aparece, no sonho de ambos, visível e audível para todos os dois, um fantasma que a eles se dirige. Ou seja: um teatro cheio de efeitos V.

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Este artigo, aqui reduzido, foi extraído do livro O teatro e sua realidade, de Bernard Dort (Editora Perspectiva, São Paulo)

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