sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Homens –Teatro, se quiserem


Jean-Paul Sartre

Talvez se surpreendam que tenhamos pensado em fundar uma escola, quando já existem tantas. Mas nos pareceu que o ensino dramático, tal como é concebido hoje, não responde mais inteiramente a seu objetivo. O valor individual dos professores - eles próprios excelentes atores - não está em causa. O que parece ter-se perdido de vista é a natureza própria do ator e suas funções.
Uma escola dramática - todos concordarão - deve ser uma escola de interpretação. Naturalmente, e antes de tudo, são cursos de interpretação que estamos preocupados em criar. Mas não os consideramos como o único ensinamento a dar aos atores. Eles nos parecem ser antes o coroamento de toda uma vida de disciplina. É que a interpretação teatral é de uma espécie muito particular: o ator é ao mesmo tempo o intérprete e o instrumento. Um violinista deve servir-se de um instrumento cujos recursos estão exatamente determinados. Ele conhece esses recursos, e o autor cujas obras executa os conhecia também. O instrumento do ator é ele mesmo: seu próprio corpo, sua fisionomia, sua voz, seus movimentos.
Ora, ninguém até aqui se preocupou em estabelecer um registro dos recursos dramáticos do corpo humano. Eles permanecem indefinidos, e com freqüência o jovem ator os ignora em sua maior parte. Mais ainda: os próprios autores permanecem aquém do que poderiam exigir de seus intérpretes, como um compositor que escrevesse uma melodia para duas cordas de violino. Alguns mesmo - e dos mais célebres - crêem que o teatro é uma arte puramente vocal e não vêem que o ator - o ator como uma totalidade psicofisiológica - é a substância mesma da peça, a matéria de que ela é feita; eles não compreendem que uma arte dramática que exigisse mais dos atores seria profundamente renovada por esse fato mesmo.
Nossa escola gostaria de tentar restituir a essa matéria humana toda a sua plasticidade, isto é, colocar o ator de posse de todos os seus recursos espirituais e corporais.
Essa tarefa nos parece particularmente urgente hoje. Com efeito, basta um exame superficial para ver que uma certa vivacidade clownesca e quase louca se perdeu. O ator - o das pantomimas, da “commedia dell'arte” - era no passado um saltimbanco, um malabarista. Talvez a interpretação propriamente dita sofresse com isso, mas o desempenho dos intérpretes ganhava uma graça, uma leveza cujo segredo não mais conhecemos. Vejam os bufões de Shakespeare: deveriam ser alados e os calçamos com solas de chumbo.
Um curso de arte dramática deveria restituir ao corpo sua flexibilidade por um treinamento apropriado. Uma ginástica cotidiana, a prática de certos esportes, a mímica, os diversos meios que visam a dar ao homem o domínio de seu corpo, devem concorrer a esse objetivo. É inconcebível, por exemplo, que um ator aprendiz creia desde o início “saber respirar”. Ele respira, é verdade, como Monsieur Jourdain escrevia prosa. Mas Monsieur Jourdain não podia se tornar um grande prosador, pois ignorava a arte da prosa.
Assim também o jovem aprendiz ignora tudo da “arte respiratória”. Não sabe que esse é o alfabeto do ator, que uma boa respiração é como o pilar que sustentará sua voz, seus gestos e mesmo sua postura. É o que tentaremos ensinar-lhe.
Além disto, é preciso reconhecer que se torna cada vez mais difícil ser ator. De fato, é costume dizer que se deve abandonar a pretensão de ser um cientista universal, porque a quantidade absoluta dos conhecimentos científicos a adquirir aumenta a cada dia. Mas já se refletiu que no teatro deparamos com dificuldades quase tão grandes porque a quantidade absoluta dos papéis a aprender aumentou nas mesmas proporções?
Antigamente, algumas farsas, uma ou duas grandes peças constituíam uma bagagem suficiente. Hoje, porém, o ator se vê diante de uma produção dramática distribuída por vários séculos e ele deve adaptar-se, de um dia para o outro, a exigências profundamente diferentes. Desempenhará ele um ciumento de Molière no mesmo estilo que “Os espectros”, de Ibsen? “O anúncio feito a Maria”, de Claudel, como “A galeria do palácio”, de Corneille?
Na maior parte do tempo, o ator elude a questão: permanece ele mesmo na imensa diversidade dos papéis que desempenha, nunca representa senão ele. É que lhe falta cultura. Certamente ele pôde ler todas as peças do repertório. Mas acaso suspeita de que as peças emanavam de um certo meio, que respondiam a certas questões colocadas pela época, que correspondiam a uma certa concepção do teatro, que foram representadas, escutadas e compreendidas numa atmosfera social bem definida?

Sentido histórico da obra

É somente quando o ator tiver compreendido o sentido histórico de uma obra teatral, é somente então que ele poderá realmente representar um Marivaux ou um Shakespeare. Convém, portanto, flexibilizar seu espírito - assim como queremos tentar flexibilizar seu corpo - por uma ginástica intelectual.
Essa ginástica é a cultura - uma cultura ao mesmo tempo geral e estritamente apropriada às necessidades do teatro -, não há atores sem cultura; somente a cultura pode lhes permitir sair de si mesmos, somente ela lhes dará a compreensão do texto e colocará à sua disposição os registros dramáticos os mais variados. Assim nossa escola reservará a maior parte do tempo ao ensino cultural. Parece, enfim, que o teatro deve, nos anos vindouros, estreitar seus vínculos com a comunidade. No último século o público vinha simplesmente divertir-se no teatro, e as representações reuniam espectadores de origens muito diversas, que não tinham nem as mesmas paixões nem os mesmos interesses.
Com isso, os atores eram levados a dividir sua vida em duas partes bem distintas: no palco, algumas horas por dia, exerciam uma profissão; na cidade, o resto do tempo, eram homens como os outros; de sua arte, conservavam apenas, na maioria das vezes, uma deformação profissional bastante irritante. Se o teatro quiser retomar a função social que teve nas grandes épocas da arte dramática, ele terá que exigir dos espectadores, do autor e dos atores mais compreensão recíproca e mais disciplina. De nossa parte, gostaríamos de contribuir a essa metamorfose formando, mais do que atores, homens, homens para quem o teatro seria ao mesmo tempo uma concepção do mundo e o ponto de vista pessoal que eles teriam sobre tudo: homens-teatro, se quiserem.
Talvez considerem nossa ambição muito pretensiosa. Não é preciso tanto esforço, dirão, para formar um ator. O essencial é que ele tenha um temperamento, uma “natureza”. O resto virá espontaneamente, a arte não se preocupa com pedagogia. Mas, em primeiro lugar, se é verdade que o ator de gênio não tem necessidade de ninguém, é preciso convir que o teatro não é feito apenas pelos atores de gênio. Há também os outros, todos os outros, os honestos artesãos do teatro, inteligentes e conscienciosos. Uma escola como a nossa se preocupará primeiramente com esses: trata-se de elevar seu nível, de revelar-lhes todas as suas possibilidades, de levá-los ao melhor de si mesmos. Conseguir elevar, ainda que só um pouco, o nível médio dos atores seria um tempo perdido?
Quanto aos outros, aos artistas de exceção, certamente não pretendemos ensinar-lhes seu gênio. Mas, se as vicissitudes de nascimento e as dificuldades materiais os privaram, na origem, de cultura e de alguns meios físicos, eles buscarão por muito tempo, talvez a vida inteira, adquirir por si próprios essa cultura e esses meios. Não acreditaremos ter agido mal se nossa escola lhes tornou essa aquisição mais fácil.

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Este texto, extraído dos arquivos de Charles Dullin, é um provável projeto para uma nova orientação da Escola de Arte Dramática de Dullin, em que Sartre deu cursos durante a 2ª Guerra, e foi publicado em "Sartre" (Bibiliothèque Nationale de France/Gallimard).
Tradução de Paulo Neves.

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