quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Implicância e anti-teatralidade

entrevista com Moacir Chaves

Fala mansa e aveludada, gestos comedidos, educado ao extremo, Moacir Chaves poderia interpretar qualquer papel em que tais predicados fossem indispensáveis – monsenhor, analista, aquele amigo paciente a quem confiamos nossos segredos mais inconfessáveis etc. Ou mesmo outros, já que se trata de um ator com 16 trabalhos no currículo. Mas é como diretor teatral (24 montagens) que Chaves ganhou projeção, graças a trabalhos como O sermão da quarta-feira de cinzas e Bugiaria – o primeiro deu a Pedro Paulo Rangel todos os prêmios existentes na época (Shell, Mambembe e Molière), sendo que o segundo fez de Moacir ganhador do prêmio Governador do Estado (1999-2000) nas categorias Direção e Melhor Espetáculo. Casado com a atriz Monica Biel, pai de Daniel e Bruno, flamengo doente e um ala de futsal nada desprezível, aos 38 anos Moacir Chaves é um dos jovens diretores mais talentosos do país.
Em entrevista concedida a Daniel Schenker e Lionel Fischer, publicada nos Cadernos de Teatro nº 170, o encenador fala do início de sua carreira, do processo de criação de alguns espetáculos e do ator nacional, entre outros temas.

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Cadernos de Teatro - Como começou a sua relação com o teatro?

Moacir Chaves - Eu nasci em Petrópolis e morei em Teresópolis a partir do meio da infância. Lá integrei um grupo chamado Texto Coletivo, criado por um professor, Paulo Maia. Montávamos uma peça por ano no Teatro Higino. E de vez em quando vínhamos ao Rio assistir a uma peça. O primeiro espetáculo que eu vi foi O beijo da Mulher Aranha, com José de Abreu e Rubens Corrêa. Antes o grupo já tinha estado no Rio para conferir Macunaíma, dirigido pelo Antunes Filho, mas eu fui comprar peças para o meu autorama... Tempos depois, comecei a estudar Geologia no Fundão. E então passei a freqüentar todas as peças. Conheci a cidade procurando apartamento para alugar, indo a teatro e, anos mais tarde, desenvolvendo projeto-escola.

CT - E o contato com a prática teatral aqui no Rio?

MC - Fiz um curso no Instituto de Educação e outro com Milton Dobim, no Circo Voador, onde conheci Beth Néspoli (hoje repórter de teatro do jornal O Estado de São Paulo) e Claudio Mendes. Conheci também Juliana Carneiro da Cunha (atriz brasileira há muitos anos integrante do grupo francês Théâtre du Soleil) num curso na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). Logo fiquei sabendo da existência da Escola de Teatro Martins Pena e me inscrevi, certo de que não seria selecionado, mas acabei passando - acho que muito devido ao meu nível de educação. Nessa época, já havia abandonado a Geologia e tentado minha segunda opção na faculdade, História. No meio da Martins Pena, entrei para a Uni-Rio e comecei a trabalhar como ator e assistente de direção no Grupo Tapa, a convite de Renato Icarahy.

CT - E depois, o que aconteceu?

MC - Fiquei com eles durante uns dois anos, até que aconteceu um racha no grupo e parte dele se mudou para São Paulo. Formei, então, um grupo com Denise Fraga (com quem Moacir Chaves foi casado), Hercules Franco, Zé Antonio Carnevar e Maria Assunção – o Grupo Cine-Teatro. Começamos a montar textos brasileiros em sindicatos, comunidades e escolas, nos mais variados locais, como Anchieta, Méier e Niterói, afora muitas escolas na Zona Sul.

CT - Quanto tempo durou esse trabalho?

MC - Cerca de três anos.

CT - E como funcionava o grupo?

MC - A primeira peça, As desgraças de uma criança, do Martins Pena, seria dirigida pelo Hercules, mas ele declinou e como eu já tinha assinado um espetáculo infantil chamado Cadê o peixe?, acabei assumindo a função. A segunda peça, montada com o dinheiro arrecadado em As desgraças...foi O primo da Califórnia, de Joaquim Manuel de Macedo, e a terceira, Defeito de família, de França Jr. Este último com música ao vivo e as presenças de Maurício Marques, que entrava para o grupo, e Rogério Cardoso, que, na época, fazia uma peça com a Denise no Teatro Princesa Isabel.

CT - Foi assim que você optou pela direção?

MC - Acho que até hoje não resolvi ser diretor...(Risos) Na verdade, eu penso no evento como um todo. Tenho interesse por todas as funções.

CT - Inclusive a de ator?

MC - Eu adoro trabalhar como ator. O problema é que eu precisaria dedicar minha vida a isso, mas não tenho tempo e não gostaria de acumular com o trabalho de diretor.

CT - Em que peças do grupo você atuou?

MC - Atuei em As desgraças de uma criança e fui stand-in nas outras peças. Sei que posso fazer um bom trabalho como ator porque conheço muita coisa, mas não possuo treinamento específico para isto, apesar de continuar fazendo aulas de canto. Mais recentemente, fiz Bugiaria como ator em Santa Catarina, mas tive o cuidado de começar a me preparar um mês antes para estar em forma.

CT - Essa divisão em funções – ator, diretor, dramaturgo etc. – é típica da modernidade, não é verdade?

MC - Certamente. É só pensarmos em Shakespeare e Molière, entre outros. Na época deles o envolvimento com todo o processo era maior.

CT - Retrocedendo um pouco: em que momento você abandonou Geologia e História para se dedicar ao teatro?

MC - Eu entrei para a Martins Pena para continuar brincando de teatro, eu adorava aquilo, o aspecto lúdico dessa atividade. Por isso também fui fazer a Uni-Rio quando ainda cursava História. Aí, houve uma greve na UFRJ que durou oito meses e fiquei exclusivamente com o teatro. Quando vi, estava no Tapa. Então, veio a idéia de fazer Esperando Godot, do Beckett, que mereceu uma crítica muito boa da Barbara Heliodora e outra nem tanto do editor dos Cadernos...(Risos) Mas eu acho que ele assistiu num dia muito ruim...(Mais risos). Depois viajamos para São Paulo e também foi muito bacana. Montei, então, Fausto, no Teatro Cacilda Becker, um trabalho de formação da Martins Pena. E em seguida O sermão da quarta-feira de cinzas, que me deu projeção.

CT - Como surgiu o projeto de montar O sermão...?

MC - Nunca tinha lido Padre Antonio Vieira. Mas quando assisti ao filme Os sermões, de Julio Bressane, fiquei abismado com aquele autor. Era simplesmente maravilhoso, pertinente, próximo, vivo, incisivo, inteligente. E também fiquei revoltado com meus professores, que nunca tinham me mostrado aquilo. Então, decidi fazer uma peça com textos do Padre, mas não sabia o quê. Como eu gostava muito de um sermão, o da quarta-feira de cinzas, fiz uma leitura dele com alguns alunos e foi horrível! As pessoas não entenderam nada e, no final, ficaram me consolando.

CT - Você ficou mesmo deprimido?

MC - Eu? Pelo contrário: saí eufórico!

CT - Por quê?

MC - Porque entendi que precisava montar aquilo inteiro, desde que tivesse um grande ator. E logo me ocorreu chamar o Pepê (Pedro Paulo Rangel), mas relutei porque não tinha grana. Mas tive a sorte do Fábio Ferreira (Diretor do RioArte) me ligar oferecendo uma pequena verba para algum projeto. Liguei para o Pepê, que, por milagre, inteligência e sorte, aceitou. Mas o projeto só saiu mesmo porque o Pepê, ao tomar conhecimento do dinheiro disponível, cedeu a parte dele para a produção.

CT - E Bugiaria?

MC - É um projeto mais antigo do que O sermão.... Pensava no João Coimbra antes do Padre Antônio Vieira. Havia comprado tudo sobre ele, cogitado em escrever uma peça, mas não era dramaturgo. Tempos depois fiz um projeto para o programa de bolsas do RioArte e como ele foi aprovado, comecei a estudar feito um louco. Para que vocês tenham uma idéia: li todo o processo que está nos anais da Biblioteca Nacional, além de fazer um roteiro com trechos do processo da Inquisição, misturado com outros sobre Jean de Léry. Quando tudo ficou pronto, veio a pergunta de sempre: como montar? Então eu soube que poderia conseguir um patrocínio pela Lei do SS e cumpri aquela gincana ensandecida de forma exemplar. Assim, eu e a Monica (a atriz Monica Biel, esposa de Moacir) conseguimos o dinheiro para fazer Bugiaria.

CT - Fale um pouco sobre o processo de Viver.

MC - Foi um processo longuíssimo. Adoro Machado de Assis e Viver é um conto que tinha muita vontade de encenar. Então, entre outras coisas, percorri muito as ruas do Rio, por onde transitaram alguns dos seus personagens. E também uma infinidade de sebos do Centro. Essas duas atividades me permitiram estabelecer uma relação muito forte com a cidade.

CT - Agora, vamos ficar no presente: você está preparando uma nova montagem do Fausto. Como você explica essa paixão por este texto de Goethe?

MC - É um material extraordinário, muito pertinente. Reflete uma espécie de implicância minha no sentido de levar as pessoas a entenderem que se trata de algo legal, bonito, que nos diz respeito. É um pouco como o Sermão no sentido da anti-teatralidade. Tem a ver com o homem, com morrer, com a relação com a divindade, com a natureza.

CT - Você é considerado um excelente diretor de atores. Qual a sua opinião sobre o intérprete brasileiro?

MC - Os atores brasileiros são ótimos, mas a maioria ainda necessita trabalhar muito, assim como adquirir uma certa consciência social, inerente a essa atividade. No Brasil, o ator precisa aparecer na TV para ser considerado ator. E isso é muito perigoso, já que qualquer pessoa pode entrar na TV, desde que atenda aos interesses dessa indústria.

CT - Quando o ator é bom, isso fica evidente logo no início da carreira?

MC - Nem sempre. Às vezes, um ator extraordinário é ruim em começo de carreira porque não sabe desenvolver a potência que há dentro dele. Vai melhorando à medida que adquire domínio vocal, corporal e maior compreensão intelectual. Na realidade, esse ator que não desponta logo no início talvez tenha mais chance de evoluir do que outro que conta com um talento inato evidente.

CT - E como está a cena carioca?

MC - A atividade teatral no Rio não é tão intensa quanto em outros centros mundiais. Talvez falte ao nosso teatro se fazer mais importante na vida das pessoas. Para mim, ele sempre foi um pouco aquilo que é, já que comecei na década de 80. Nós somos uma cultura colonizada. Ou seja: se por um lado algumas produções nossas são extraordinárias, não devendo nada a ninguém em termos de inteligência, por outro sentimos uma certa necessidade de um aval de fora para sermos valorizados aqui. E isto praticamente não acontece, até porque existe a questão da língua. Já com o cinema é diferente, porque consegue circular mais. Imagina se Cidade de Deus tivesse sido indicado ao Oscar: certamente o público aumentaria. Se ganhasse, então...

CT - Como você se vê pessoal e profissionalmente?

MC - Sempre trabalhei e estudei muito, sempre fui muito interessado. Mas também tive sorte nos encontros que travei ao longo do tempo. Sorte de ter entrado na Martins Pena, porque eu gosto de muita coisa e poderia ter seguido por outro caminho; sorte de ter encontrado o Renato Icarahy, que me levou para o Tapa, um grupo do qual me sentia parte integrante; sorte de ter conhecido Rogério Cardoso e aprendido muito com ele; e sorte também de meu caminho ter se cruzado com os de Pedro Paulo Rangel e Monica Biel. Além disso, lutei pela criação de uma estrutura de trabalho profissional, independente da televisão, que me permitisse viver dignamente como cidadão. Muitas pessoas são fascinadas pelo glamour da TV e devem ir em frente – quantos se inscreveram para entrar no Big Brother?

CT - Existe alguma receita para se tornar um diretor de prestígio?

MC - Que eu saiba, nenhuma. Mas eu acho fundamental viajar, conhecer o mundo e não permanecer auto-centrado. Entender o que significa o Rio de Janeiro, o Brasil, a América Latina, o mundo. Fazemos algo que tem dimensão universal, mas não difusão universal. Fausto é um jovem impetuoso que, no começo da peça, revela sua insatisfação com o saber e passa 15 anos estudando com ânsia e garra. Seria maravilhoso se os atores brasileiros, que são ótimos, tivessem a mesma disposição para o estudo e a superação.

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Principais trabalhos de DIREÇÃO

Esperando Godot (Samuel Beckett, 1991)
Fausto (Goethe, 1993)
Sermão da quarta-feira de cinzas (Padre Antônio Vieira, 1994)
Roberto Zucco (Bernard-Marie Koltès, 1996)
Don Juan (Molière, 1997)
A história de Catarina (Ana Barroso, Monica Biel e Thereza Falcão, infantil, 1998)
As desgraças de uma criança (Martins Pena, 1999)
O altar do incenso (Wilson Sayão, 1999)
Bugiaria (dramaturgia de Moacir Chaves, 1999-2000)
Lazanha e ravioli in casa (Ana Barroso, Monica Biel e Thereza Falcão, infantil, 2000)
A resistível ascensão de Arturo Ui (Bertolt Brecht, 2001)
Viver (Machado de Assis, 2001)
Inutilezas (Manoel de Barros, 2002)
Por mares nunca dantes (Geraldo Carneiro, 2002)
Fausto (Goethe, 2003)

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