quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Cumplicidade e paixão


Entrevista com IVAN SUGAHARA



Carioca de 29 anos que só desembarcou realmente no Brasil aos sete depois de temporadas nos Estados Unidos e na França, Ivan Sugahara não decidiu logo que queria ser diretor. Tanto que começou a cursar economia e cinema, abandonou ambos, e se formou como ator na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). E a paixão pelo teatro, iniciada, aos 14 anos, no colégio Andrews, nas aulas de Gustavo Gasparani, integrante da elogiada Cia. dos Atores, rendeu a fundação do grupo Os Dezequilibrados. Nove anos e muitos espetáculos depois, a companhia apresenta Lady Lázaro, montagem centrada na figura da poetisa Sylvia Plath. Não é o único projeto de Ivan, que está terminando o curso de Teoria do Teatro na Uni-Rio, sob a orientação de Flora Sussekind.
A descoberta do desejo de ser diretor veio à tona nas aulas com Celina Sodré, diretora do Studio Stanislavski. Daí em diante, partiu, ao lado de Os Dezequilibrados, para a montagem de espetáculos, boa parte apresentada em espaços não-convencionais. Um quarto de crime e castigo, mostrado no quarto de um apartamento na Urca, fazia um recorte de Crime e castigo, de Dostoievski, autor retomado em Um. Bonitinha, mas ordinária levava o espectador a uma peregrinação pela Casa da Matriz, ao passo que Vida, o filme discutia a espetacularização da realidade em pleno hall do Espaço Unibanco. Combinado colocava a platéia em cena ao atribuir a todos os presentes a função de detetives encarregados de desvendar um crime misterioso, enquanto Dilacerado representava uma retomada do trabalho do ator como elemento central num espetáculo calcado em depoimentos pessoais contundentes.

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Cadernos de Teatro
- Como você começou a fazer teatro?

Ivan Sugahara - Foi por acaso. Eu estava no Andrews e Gustavo Gasparani, que havia sido aluno de Miguel Falabella na escola, estava dando aula de teatro. Lá fizemos A comédia dos erros, Aurora da minha vida e Hair, que foi uma montagem praticamente profissional, um trabalho repleto de espírito libertário, muito forte para nós. Vejo que hoje em dia continuo perseguindo este clima de celebração, de happening.

CT - Em que momento você se decidiu pelo teatro?

IS - Não me encontrei com a profissão naquele momento. Na época do vestibular, saí do Andrews. Pensei em fazer Comunicação Social, passei para a faculdade de Economia um pouco sob pressão dos meus pais. Até que viajei para Salvador e assisti a um show numa favela composto por cenas da comunidade. Aí me deu saudade do palco. Voltei para o Rio, liguei para o Bruce Gomlevski, com quem tinha estudado no Andrews, e ele me disse que ia se matricular na CAL. Comecei a cursar Economia e a escola de teatro ao mesmo tempo. Mas não estava certo em relação a nenhum dos dois. Tranquei e fui fazer faculdade de Cinema. Voltei na CAL para ver uma montagem de Hoje é dia de rock, que eu estaria fazendo se não tivesse interrompido o curso, e foi neste momento que tudo mudou.

CT - Você começou a trabalhar com teatro, a partir daí?

IS - Gustavo me chamou para fazer assistência dele no Andrews. Trabalhei com ele durante cinco anos. O teatro me movia, mas não me sentia encaixado como ator. Achava meio aborrecido aquecer, ensaiar e decorar. Me formei com Gerald Thomas na CAL e no último dia de apresentação tinha a exata noção de que nunca mais ia entrar em cena. Fiz assistência para Gustavo no infantil Galinhas – um melodrama de penas e dirigi uma adaptação de A revolta dos brinquedos. Foram boas experiências, mas comecei a viver uma crise com o teatro infantil de má qualidade, uma escola de viciados, repleta de estereótipos.

CT - Como foi fundado o grupo Os Dezequilibrados?

IS - Eu sempre quis trabalhar em grupo, talvez pelo fato de ser filho único. A companhia Os Dezequilibrados foi fundada em 1996. Em 98 fizemos nosso primeiro espetáculo: Uma Noite de Sade. Num primeiro momento até chamamos Gustavo para dirigir, mas ele não pôde. Depois de Sade o grupo brigou e eu me dei conta de que precisava aprender melhor a dirigir. Fui estudar com Celina Sodré. Comecei a ter aula particular de atuação. Mas logo entrei em crise. Passei para aula teórica e depois de direção. Fiz assistência dela em várias aulas particulares e nas turmas da CAL. Mas hoje vejo que se o Andrews representou a paixão pelo teatro, Celina foi minha grande escola. Aprendi um sistema de trabalho com ela.

CT - E os seus espetáculos depois de Uma noite de Sade?

IS - Veio Um quarto de crime e castigo. Conheci Cristina Flores, Ângela Câmara, Joelson Gusson e Lucas Gouvêa através de Celina. Cristina propôs fazermos Crime e castigo. Mergulhamos numa adaptação, valorizando a história de amor entre Sônia e Raskolnikov. Foi uma de minhas maiores aventuras teatrais. Ali nasceu verdadeiramente a companhia e configuramos identidade artística e projeto estético.

CT - Fale um pouco sobre a valorização da companhia dos espaços
não-convencionais.

IS - Esta questão surgiu do desejo de trabalharmos novas formas de relação com o espectador, num primeiro momento a partir do espaço não-convencional. Um quarto de crime e castigo nasceu de experiências. Na verdade, não queríamos fazer a peça num apartamento. A idéia inicial era levar para um teatro. Procuramos pauta e não conseguimos. Então, começamos a apresentar para convidados no apartamento do Lucas e da Ângela. Estreamos para quatro espectadores. Celina foi uma das primeiras a assistir. Depois tivemos uma conversa marcante em que ela disse que poderíamos ambientar num quarto. Antes nós fazíamos no apartamento, como se estivéssemos num teatro. Mudamos, passando a valorizar mais o fato do espectador ser cenário. Fomos percebendo o estabelecimento de uma relação especial com o público.

CT - De fato, nos espetáculos montados em palco italiano, a platéia está lá atrás e muitas vezes mal vê o ator...

IS - Buscamos uma platéia mais cúmplice e ativa. Bonitinha, mas ordinária seguiu o mesmo percurso. Era um filhote de Um quarto de crime e castigo, com Nelson Rodrigues descendendo de Dostoievski e a casa, do apartamento (a montagem foi realizada na Casa da Matriz). O público era quase colocado na posição de voyeur. Queríamos que o espectador se confundisse com Edgar, como se passasse, de alguma maneira, pela via-crucis dele, tentado entre o bem e o mal, entre o dinheiro e o amor. Procuramos fazer com que a platéia fisicalizasse a sua experiência. A montagem de Um, uma adaptação de O grande inquisidor (presente no livro Os irmãos Karamazov), era num teatro, mas não no molde convencional. O espectador passava por todo o espaço. Dilacerado, por sua vez, buscava o engajamento emocional do público.

CT - Como é o cotidiano de ensaios do grupo?

IS - Varia muito. Há espetáculos que ensaiamos muito; outros, não. Uns começam com o texto e eu proponho situações ligadas ao universo da peça; em outros, o texto nasce no decorrer do processo de ensaios e, às vezes, não tenho nada além de um tema. Foi o caso de Vida, o filme, em que estudamos intelectualmente a espetacularização da realidade, mas não possuíamos nem personagens, nem situações. Procurei então abordar como cada um espetaculariza a sua vida. Acredito realmente na compreensão a partir da cena porque o carnal e o vivo podem gerar elementos capazes de oferecer uma outra camada ao texto original.

CT - Você se considera um bom diretor de ator?

IS - Em Um quarto de crime e castigo valorizei muito os atores. Depois fiquei deslumbrado com a encenação. Acho que de Dilacerado para cá estou recolocando o foco no ator. Mas não que não tenha trabalhado com os atores ao longo desses anos. Na direção, faço de tudo. Interpreto a cena, falo da compreensão geral e de questões bem específicas, interrompo, deixo correr sem interrupção. Vou entendendo como acessar o ator. Com alguns preciso ser mais delicado; com outros posso provocar mais. Fizemos Lady Lázaro em um mês porque trabalho com Cristina há sete anos e ela responde bem à direção.

CT - Como você analisa o atual panorama do teatro carioca?

IS - Percebo uma grande e séria crise de público. Nós não renovamos o público. Quem era jovem na década de 70 continua freqüentando, mas as pessoas estão envelhecendo. Existem iniciativas isoladas. Há, é claro, Confissões de adolescente e Cócegas. No geral, acho que o público jovem é atraído por um determinado tipo de temática. A vida é cheia de som e fúria (espetáculo dirigido por Felipe Hirsch) chamou gente distante do teatro. Não foi por acaso. Abordava o jovem contemporâneo que cresceu na cultura pop.

CT - Exceções à parte, por que você acha que o público não está indo ao teatro?

IS - A má qualidade dos espetáculos é um fator, mas sempre houve peças ruins. Há o dado econômico e a agravante da violência, mas trata-se, sobretudo, de uma crise cultural. O projeto político da ditadura militar venceu e hoje não formamos mais cidadãos e sim técnicos que aprendem seus ofícios específicos. Falo isto em relação ao teatro que pensa o mundo, não o de entretenimento. Além disso, o teatro tem uma especificidade que é muito deslocada da contemporaneidade.

CT - Como se mantém um grupo como Os Dezequilibrados?

IS - Com paixão. É preciso investir cerca de 10 anos acreditando e trabalhando sem ganhar dinheiro até construir uma trajetória. A não ser que a pessoa tenha sorte ou conhecidos. Nós estamos juntos há nove. Só em 2004 conseguimos ganhar dinheiro. Até então ninguém sobrevivia do trabalho do grupo. Ainda não vivemos disso. Todo mundo corre por fora com outras atividades. Na verdade, vejo três maneiras de um grupo se sustentar: através de patrocínio ou, melhor ainda, subvenção para os espetáculos; da venda de apresentações; e da bilheteria. Acho que a Cia. Ensaio Aberto, dirigida por Luiz Fernando Lobo, conseguiu renovar seu público. Hoje temos que trazer os espectadores para dentro do teatro. Eles não vêm espontaneamente.

CT - Como você percebe a crítica teatral?

IS - Acho complicado que cada jornal só tenha um crítico. Áreas como cinema e música contam com um número bem maior de profissionais. Sinto falta de uma crítica que dialoga mais ao invés de julgar as estréias, até porque o espetáculo vai mudando ao longo de sua temporada. O ideal seria que ajudasse o trabalho a evoluir. E que o crítico se colocasse como parte integrante da classe teatral.
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Esta entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 173, foi concedida a Lionel Fischer e Daniel Schenker, cabendo a este último a redação final.


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