sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Safári Terapêutico

Texto de Lionel Fischer e Rita Fischer


Personagens:
Doutora
Mulher A
Mulher B
Mulher C
Mulher D

Cenário:
Poucos elementos: uma esteira, um banquinho, uma cadeira etc.
____________________

PRÓLOGO

(Música. As quatro mulheres entram, uma de cada vez, e se acomodam, passando uma sensação de estranheza com relação ao pouco conforto do local. A música sai quando entra a voz em off)

VOZ – A produção deste espetáculo, de natureza essencialmente terapêutica, gostaria de manifestar sua eterna gratidão a nossos apoiadores, sem os quais este evento não teria como se materializar. São eles: LACAN Tecidos/ Luminárias DELEUZE/ Perfumaria NIETZSCHE/ MONTESQUIEU/MONTAIGNE: roupas personalizadas para gêmeos vitelinos/ JUNG: tudo para sua festa infantil/ FREUD: maquiagem e perucas/ e SPINOZA: a rainha dos salgadinhos. Tenham todos um ótimo espetáculo. E caso ele não seja efetivamente ótimo, que ao menos não converta a próxima hora na pior dentre todas já vividas por vocês.

CENA 1

(Assim que termina a voz em OFF, entra a Doutora)

Doutora – Boa noite, eu sou a doutora Elisângela. Alguma de vocês tem fogo?

A – A gente não fuma.

Doutora – Como é que você sabe que as outras não fumam? Vocês já se conhecem?

B – Não, mas nós conversamos um pouco antes da senhora chegar e...quer dizer, na verdade conversamos bastante por que...

Doutora – Eu sei que me atrasei um pouco.

C– Quase uma hora...

Doutora – E aí? Algum problema?

D – Não, nenhum, o que eu acho que ela quis dizer é que...

Doutora – Que vocês conversaram quase uma hora e durante essa conversa nenhuma de vocês fumou. É isso?

A – Exatamente. Nenhuma de nós.

Doutora – Mas isso não quer dizer que vocês não fumem. Pode apenas significar que acatam passivamente as normas dos ambientes que freqüentam. Aquela plaquinha ali, por exemplo, diz que é proibido fumar aqui.

B – É verdade.

Doutora – Portanto, mesmo que quisessem fumar, vocês não fumariam.

C– Não, não fumaríamos. Eu, pelo menos, não...

Doutora – Pois eu fumo sempre, tenham ou não plaquinhas à minha volta.

D – Mas a senhora pode, ao menos aqui, já que é a dona da clínica.

Doutora – Minha querida, eu posso em qualquer lugar.

A – Como assim?

Doutora – Por exemplo: eu acendo um cigarro num restaurante, na área dos não fumantes. Aí o maître se aproxima e diz que eu tenho que apagar o cigarro. Eu me finjo de desentendida e pergunto por quê. Ele explica, eu continuo me fazendo de desentendida, faço suaves e educadas objeções, num tom de voz apropriado. Mas sigo fumando. Finalmente, acabo simulando concordar. Só que aí eu praticamente já fumei todo o meu cigarro. Então, eu apago o que restou dele, o maître fica feliz e eu também, pois fiz rigorosamente o que queria ter feito. Não é simples?

B – Mas a senhora não fuma num teatro, por exemplo...
Doutora – De fato, eu não fumo no teatro. Mas não porque seja proibido e sim porque eu praticamente nunca vou ao teatro. Acho insuportável. Então, essa questão não se coloca pra mim. Mas, enfim...vocês não têm isqueiro ou fósforo, e eu preciso fumar. Então, vamos agir. Antônio! (Ela simula a aproximação de alguém) Por favor, me empresta teu isqueiro. (Ela exibe um isqueiro na mão que parecia vazia. Acende seu cigarro) Obrigado, Antônio. Depois eu te devolvo...(“Antonio” sai. A Doutora fuma em silêncio, dando fantásticas tragadas e exalando pouca fumaça. As pacientes estão estupefatas. Depois de um tempo...)

C– Desculpe, doutora...mas como é que a senhora...

Doutora – Acendeu o cigarro? Mas foi tão simples, vocês todas viram: meu enfermeiro de
plantão, o Antônio, atendeu ao meu chamado e me cedeu seu isqueiro.

D – Mas...não apareceu ninguém aqui!?

Doutora – É claro que não.

A – Então o isqueiro já estava com a senhora!?

Doutora – É óbvio. Foi apenas um truque, que sempre me diverte muito quando atendo pacientes que abominam fumar. Mas vejam bem: não se trata de um truque banal, mas de um truque bastante ilustrativo do que constitui a essência de um eficaz processo de análise.

B – Como assim?

Doutora – Queridas, prestem atenção: se eu realmente acreditar que um Antônio, qualquer que seja ele, possa me trazer aquilo que eu preciso, então eu sempre estarei buscando em alguém, que não sou eu, a solução das minhas questões, que são essencialmente minhas. Portanto, na esmagadora maioria dos casos, o que eu necessito está ao alcance de minhas mãos. Só que todos os neuróticos e suas ramificações não percebem isso. Aliás, às vezes sequer se dão conta de que possuem mãos. Não é curioso?

C– Tudo bem, é possível que as coisas se passem assim. Mas, apenas como curiosidade...a senhora, além de analista, também trabalha como mágica?

Doutora – Querida, eu jamais exerci essa profissão. Mas quando minhas filhas eram pequenas eu cheguei a praticar apaixonadamente, porque os mágicos que eu contratava para as festinhas de aniversário delas eram sempre tão previsíveis!? Então, eu me dispus a substituí-los. E garanto que o fiz sempre com o maior sucesso.

D – Mas a senhora aprendeu sozinha?

Doutora – Basicamente sim, embora tenha consultado alguns livros e assistido alguns vídeos. Mas fazer mágica é muito fácil, desde que você seja capaz de convencer as pessoas de que elas verão exatamente aquilo que no fundo querem ver. Em última instância, não deixa de ser um procedimento analítico... Bem, mas vamos ao que interessa. O que eu quero saber de cada uma de vocês é o seguinte: qual é a sua questão?

CENA 2

(As mulheres falam rapidamente e ao mesmo tempo os textos que se seguem)

A – Eu não sei por que, mas todos os dias eu acordo meio assustada, com medo de ter perdido a hora. Mas eu nunca perco a hora, porque o meu despertador é simplesmente infalível. Às seis e meia, invariavelmente, ele começa a berrar na mesinha de cabeceira. Além disso, como ele se chacoalha todo e eu ponho ele bem na pontinha da mesinha de cabeceira, ele acaba sempre caindo na minha cabeça.

B – Pra ser inteiramente franca, eu já tô de saco cheio de tentar sempre manter o controle de todas as situações. Não é que eu ache legal ser uma desvairada, que por qualquer razão começa a se descabelar. Claro que não. Mas às vezes eu bem que gostaria de dar uns ataques, botar pra fora todas as emoções que a minha razão bloqueia. Porra, eu sou tão controlada que gozo pra dentro!?

C– O meu pai ri, a minha mãe ri, os meus irmãos riem, os meus amigos também. Enfim, todo mundo gargalha, porque eles acham que eu invento doenças. Mas como assim, invento doenças? O meu ouvido esquerdo, por exemplo: ele não pára de zumbir, como se ali tivesse se alojado uma colméia de abelhas africanas! E o esporão que, do nada, brotou há três meses no meu pé direito?

D – Dizem que a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos. Ou seja: se a pessoa está no ponto A e deseja ir o mais rapidamente possível ao ponto B, basta seguir para o seu objetivo ignorando todas as alternâncias do percurso. Parece simples. E deve ser mesmo. Mas não pra mim. Eu até já tentei traçar retas e segui-las, mas sempre me deixo seduzir por variantes que deveria desprezar.

Doutora – Mas o que é isso? (Todas se calam) Será que vocês combinaram esse jogral ridículo para se vingar do meu atraso?

A – Claro que não, doutora. Mas a senhora perguntou qual a nossa questão, não foi?

Doutora – Perguntei.

B – Aí a gente respondeu.

Doutora – Todas ao mesmo tempo...

C– Não havia uma ordem prevista.

Doutora – E teria que haver?

D – Talvez não, mas...

Doutora – Ouçam bem, minhas queridas. Embora eu não queira antecipar nenhum diagnóstico, talvez vocês todas padeçam de gravíssima histeria.

C– Desculpe, doutora, mas eu tenho certeza de que eu posso ser tudo, menos histérica.

Doutora – É mesmo?

C– Sim.

Doutora – Então, vamos lá: você costuma fazer conversões?

C– Fazer o quê?

Doutora – Você cultiva o hábito de converter emoções em manifestações físicas?

C– Eu...

Doutora – Você perde facilmente o controle sobre seus atos?

C– Eu...

Doutora – Você é ansiosa?

C– Eu...

Doutora – Você alimenta um sentido mórbido de autoconsciência?

C– Eu...

Doutora – Você exagera o efeito de impressões sensoriais?

C– Eu...

Doutora – Você simula doenças?

C– Eu...

Doutora – Você se encaixa em tudo que eu acabo de dizer?

C– Como é que eu vou saber? A senhora nem me dá tempo de responder!?

Doutora – É que você é muito lenta.

C – Lenta? Eu???

Doutora – Enfim...você se encaixa ou não se encaixa?

C– Eu acho que todo mundo se encaixa em alguma dessas coisas!?

Doutora – Perfeito! O que significa que todos nós, em maior ou menor grau, somos histéricos! Eu, por exemplo, me encaixo em todas essas categorias!

A – Mas se a senhora é mesmo histérica como é que consegue...

Doutora – ...ser uma analista de reputação internacional? Nada mais simples: não há bom analista que não seja histérico. E por isso os bons analistas são uma espécie praticamente em extinção...E então? Iniciamos os trabalhos ou vocês vão pegar suas malinhas, descer a serra e sair em busca de ortodoxos barbudos, catatônicos e melancólicos? Se for o caso, eu posso fornecer dezenas de indicações a vocês... Bem, parece que resolveram ficar...ou ao menos adiar a partida. Então, vamos recomeçar tudo do zero. (A Doutora olha para a mulher A) Você, aqui no centro, por favor. (A mulher A obedece) Qual é a sua questão?

CENA 3

A – Bem...todos os dias eu acordo muito assustada, com medo de ter perdido a hora.

Doutora – Mas você nunca perde a hora.

A – Nunca! O meu despertador é infalível. Além disso, como ele se chacoalha todo e eu o ponho
bem na ponta da mesinha de cabeceira...

Doutora – Ele acaba sempre caindo na sua cabeça.

A – Sempre!

Doutora – Porque você dorme grudada na mesinha de cabeceira.

A – Durmo!

Doutora – Escuta: você já experimentou acordar espontaneamente?

A – Como é que a gente faz para acordar espontaneamente?

Doutora – Deixando tudo a cargo do teu relógio interior.

A – Como assim?

Doutora – Enfim...o que te trouxe aqui?

A – Bem, doutora...eu sempre vivi em função de horários, sobretudo depois que meu marido faleceu e...

Doutora – Então você é viúva?

A – Sou.

Doutora – Há quanto tempo?

A – Quase vinte anos. E eu tinha dezenove quando Dagoberto se foi.

Doutora – E quantos anos tinha Dagoberto?

A – Cinqüenta e três.

Doutora – Meu Deus! Praticamente um pedófilo!?

A – O que é isso, doutora!?

Doutora – E esse indivíduo fazia o que?

A – Era engenheiro civil.

Doutora – E morreu do quê?

A – Ele era um dos engenheiros responsáveis pela construção do Shopping Grajaú.

Doutora – Grajaú tem shopping?

A – Tem. E é muito bonito. Não deve nada aos da Zona Sul.

Doutora – Com certeza. Mas prossiga, por favor.

A – Então...ele caminhava pelo canteiro de obras quando, de repente, foi atingido por um...

Doutora – Fala, minha querida. O que foi que atingiu seu marido? Uma viga? Um tijolo? Um balde com cimento?

A – Um paraíba...

Doutora – Um paraíba? Gente!? Igualzinho àquela canção do Chico!?

A – Pois é...ele estava bêbado, não havia colocado o cinto de segurança, daí perdeu o equilíbrio e caiu na cabeça do Dagoberto, que teve morte imediata.

Doutora – E o pau-de-arara?

A – Só quebrou duas costelas, o desgraçado!

Doutora – Ô gente dura de morrer, esse pessoal do nordeste!

A – Eu até cheguei a pensar em matar aquele cangaceiro!

Doutora – E por que não o fez? Qualquer tribunal te absolveria!

A – Eu pensei nos meus filhos.

Doutora – Ah, você tem filhos?

A – Tenho, um casal: Tatiane e Diego. Tatiane ia completar dois anos e Diego um.

Doutora – E depois da morte de Dagoberto: você precisou trabalhar?

A – Não. Ele tinha feito um ótimo seguro de vida. Além disso, possuía dois apartamentos alugados e o nosso era próprio. Deu pra seguir em frente.

Doutora – E você foi seguindo, seguindo...até que um belo dia...

A – Pois é...eu sempre vivi em função das crianças. Levava na escola e buscava, levava na natação e buscava, levava no inglês e buscava e...

Doutora – Já entendi: você vivia a vida deles e não a sua.

A – Pois é...e agora os dois sumiram no mundo...

Doutora – Te abandonaram, os ingratos?

A – Tatiane conheceu um rapaz muito bonito, numa rave lá em Iguaba.

Doutora – Em Iguaba tem rave? Gente, eu pensei que era só de Búzios em diante!?

A – E lá ela começou a namorar um colombiano que veio passar o carnaval aqui.

Doutora – Um traficante!

A – A senhora sabe que eu cheguei a pensar isso?

Doutora – Qualquer mãe pensaria!

A – Mas ele era tão educado, tão simpático que...enfim...quando dei por mim ele já tinha sumido com Tatiane. E isso já tem mais de um ano. De lá pra cá, se ela me escreveu três vezes foi muito.

Doutora – E o Diego?

A – Outro desgosto. Também desapareceu pouco depois do mesmo carnaval.

Doutora – E ele foi pra onde?

A – Pros Estados Unidos com um rapaz americano, cabeleireiro, que ele conheceu na Banda de Ipanema. E como Diego sempre sonhou com essa profissão, partiu todo faceiro com o gringo. E também não me escreveu mais do que três cartas durante todo esse tempo.

Doutora – E você? O que tem feito da sua vida?

A – Bem, eu faço muitas coisas, vários cursos. Atualmente eu estudo cerâmica, espanhol, bordado holandês...também canto no coral da minha igreja...que mais? Caminho na Quinta da Boa Vista, vou ao mercado, à feira, faço a unha uma vez por semana...que mais? Enfim...meu dia começa às seis e meia e às dez eu desabo na cama, morta de cansaço.

Doutora – Então são assim os seus dias...

A – Totalmente preenchidos!

Doutora – E não surgiu um outro homem na sua vida?

A – Nunca reparei. Eu sou tão ocupada!?

Doutora – Realmente...não te sobra tempo pra prestar atenção em nada.

A – É...a minha agenda não permite.

Doutora – E se você “perdesse a sua agenda?”

A – Hein?

Doutora – O que você acha que aconteceria se você experimentasse parar com todas essas atividades, nem que fosse apenas por um dia?

A – Eu acho que enlouqueceria.

Doutora – Por quê?

A – Não sei...ficar parada, sem fazer nada...as horas passando...e eu...

Doutora – Você sente muita saudade dos seus filhos, não é mesmo?

A – Muita...

Doutora (Para a mulher B) – Você! (A mulher B vem para o centro)

CENA 4

B – Bem, pra ser inteiramente franca...eu já estou cheia de...sei lá...de nunca conseguir expressar o que eu realmente sinto.

Doutora – Mas você tenta, ao menos de vez em quando?

B – Eu quase sempre prefiro concordar a ter que discutir.

Doutora – Mesmo quando você tem razão?

B – Mesmo assim.

Doutora – Então você deve ser uma pessoa muito querida...muito solicitada...

B – Eu não sou nada disso.

Doutora – Como não? Deve ser uma maravilha conviver com alguém como você, que nunca discute, que jamais questiona nada, que aceita tudo passivamente...

B – Eu não disse que aceito tudo passivamente. Eu apenas tenho horror de brigar.

Doutora – Mas às vezes é preciso.

B – Pode ser. Mas aí a gente acaba dizendo coisas que depois se arrepende e...

Doutora – E daí? Qual é o problema de se arrepender? Basta pedir desculpas.

B – Eu prefiro não ter que pedir desculpas.

Doutora – Escuta, minha querida: você tem que ser aceita ou rejeitada por aquilo que você é e não por aquilo que as pessoas esperam que você seja!

B – Também acho, mas o que é que eu posso fazer, se eu não consigo dizer não?

Doutora – Você já experimentou?

B – Que eu me lembre, não...pelo menos há muito tempo...

Doutora – Mas vai ter que experimentar, mais cedo ou mais tarde.

B – Eu adoraria. Sobretudo quando eu conheço um menino e ele logo quer transar.

Doutora – Todos os homens são assim. Depois de mais velhos, então, é uma verdadeira obsessão!
B – E muitas vezes eu não estou a fim, mas fico sem graça de dizer não.

Doutora – E transa assim mesmo?

B – Transo. Quer dizer...fico ali, meio que junto, mas...

Doutora – Pensando em outra coisa, torcendo pra acabar logo...

B – Mais ou menos isso.

Doutora – Mas às vezes você gosta?

B – Raramente. Mas eles...eu acho que nunca...

Doutora – Por quê?

B – É que...eu sou tão controlada que...

Doutora – Que...?

B – É tipo assim: quando me acontece de gozar, o que é muito raro, eu...gozo pra dentro! (D solta uma gargalhada) É verdade! Eu gozo muda! (D continua rindo) Pra você isso deve ser muito engraçado...(D tenta se conter)

Doutora – Minha querida, não se deixe abalar por essa risada ridícula, talvez fruto de brutal inveja. É possível que ela jamais tenha experimentado as delícias de um orgasmo, ainda que silencioso...(D fica passada)

B – Mas isso me faz sofrer! Eu me sinto ridícula!

Doutora – Ridículo é transar de forma performática!

B – Mas até uma surda-muda deve emitir alguns grunhidos!?
Doutora – Isso eu não sei, minha querida. Jamais atendi a uma criatura incapacitada de emitir sons inteligíveis...

B – Sabe como é que eu me sinto?

Doutora – Sei. Um armário embutido.

B – É isso! Eu sou toda embutida! Tudo em mim rola dentro!

Doutora – Tudo?

B – Quer dizer...nem tudo. Tem uma coisa que, enfim...de uns tempos pra cá, vem rolando pra fora...

Doutora – E o que é?

B – É tão constrangedor...

Doutora – Bem, se você não quer contar...

B – Não, eu quero!

Doutora – Então vamos lá.

B - Começou no enterro da vovó, há três meses... o féretro começa a caminhar e...é féretro que fala?

Doutora – Sei lá, não conheço essa palavra!?

B – Enfim...o caixão começa a ser levado para o túmulo da família. E todo mundo chorando, soluçando, se agarrando pra conseguir ficar em pé...vovó era muito querida...foi ela, inclusive, quem praticamente me criou.

Doutora – Por quê? Você é órfã?

B – Não, mas meus pais sempre se lixaram pra mim.

Doutora – Sempre?

B – Desde que eu me entendo por gente.

Doutora – Bem, mais adiante nós falamos sobre seus pais, se você quiser. Mas continua, por favor, que eu fico toda arrepiada com história de enterro!

B – Bem...eu estava ali, no meio do bolo...

Doutora – Sofrendo que nem uma condenada!

B – Isso!

Doutora – Mas incapaz de derramar uma lágrima, incapaz de um mísero soluço!

B – Exatamente. E aquilo foi me dando uma agonia...

Doutora – Nada mais natural.

B – E essa agonia acabou me gerando uma puta dor de barriga e...

Doutora – Não me diga que você se cagou no enterro da sua avó!

B – Exatamente!

Doutora – Meu Deus, que situação delicada...

B – Quando o caixão começou a ser enfiado no buraco, eu tive que sair correndo dali!?

Doutora – E para onde é que você foi, menina?

B – Enquanto as pessoas jogavam flores na tumba, eu me cagava toda agarrada no túmulo de um tal de Francelino da Silva!

Doutora – Meu Deus, que cena patética...

B – E o pior é que...a partir daí, qualquer coisa que me abala faz com que eu...(B sai de cena às pressas)

Doutora – O que não sai por cima, sai por baixo...(Apontando a mulher C) – Você! (Ela vai para o centro)

CENA 5

C– Bem...o meu pai ri, a minha mãe ri, os meus irmãos riem, os meus amigos riem...

Doutora – Mas que ótimo! Você vive cercada de gente alegre!

C– Que gente alegre que nada! Eles riem porque acham que eu invento doenças!

Doutora – E você inventa?

C – Meu marido também achava e por isso a gente acabou se separando.

Doutora – Quanto tempo vocês ficaram casados?

C – Praticamente dois meses. Mas aí teve um dia que eu cheguei pro Djalma e dei um ultimato: ou você me leva a sério ou a gente pára por aqui!

Doutora – E ele levou?

C – Levou...levou o som, as roupas dele e a Cumbica, uma gata de três pernas que a gente achou na rua...

Doutora – E você não tentou fazer com que ele ficasse?

C – Tentei? Olha, doutora, eu só disse pra ele o seguinte: “Olha aqui, ô Djalma, tu vai mesmo pro inferno, sabia? É, blasfemou na frente de Deus! Disse que ia ficar comigo a vida toda, na saúde e/ou na D-O-E-N-Ç-A! Pois é: eu estou cheia de problema e você está se mandando pra casa daquela gorda da tua mãe, que pra fingir que é saudável nem uma aspirina toma! Agora, se você se arrepender, nem precisa voltar pra cá: vai direto pro Souza Aguiar, que é pra lá que eu estou indo!

Doutora – Então, no momento, você está sozinha.

C – Talvez seja esse o destino de toda pessoa atenta e sensível como eu.

Doutora – Você é muito sensível.

C – Um poço de sensibilidade!

Doutora – E super atenta.

C – Atentíssima! Nada me escapa!

Doutora – E o que é que você costuma sentir que o resto da humanidade não sente?

C – Eu sinto mais do que todo mundo, só isso.

Doutora – O que, por exemplo?

C – Sinto mais dor de cabeça, mais palpitação, mais mau humor...estou sempre com a pressão quatro por oito!

Doutora – Oito por quatro, minha querida.

C – É o estômago que dói, é o joelho que me avisa quando vai chover, quando o tempo vai mudar...

Doutora – Você tem um joelho meteorológico!?

C – É um inferno essa minha relação com o meu joelho. É muita intimidade.

Doutora – E o que mais?

C – O meu ouvido esquerdo zumbi, como se nele tivesse se alojado uma colméia de abelhas africanas!

Doutora – E o que mais?

C – Tem também o cacho!

Doutora – Cacho?

C – O air-bag!

Doutora – Air-bag?

C – Doutora, eu estou apenas evitando usar a palavra certa, porque ela é muito constrangedora e eu não estou aqui pra ser motivo de chacota! Mas vamos lá: eu tenho hemorróida!

Doutora – E isso é tudo?

C – Quem me dera...falta falar da fenda!

Doutora – Fenda? Gente, que palavra mais obscena!?

C– Estou me referindo às minhas cordas vocais, doutora...

Doutora – Ah, bom...

C– A impressão que eu tenho é de que elas cortaram relações pra sempre, como se uma fosse judia e a outra árabe.

Doutora – E você consegue identificar qual é a judia e qual é a árabe?

C– Doutora, eu pediria encarecidamente à senhora que parasse de...

Doutora – Mas eu não estou debochando. Pelo contrário, estou achando interessantíssimo esse relatório de mazelas, cheio de imagens, pleno de analogias: abelhas africanas, joelho meteorológico, cordas vocais de diferenciadas etnias... vem cá: você é escritora?

C– Não! Eu sou uma pessoa que sofre e cujo sofrimento jamais é levado a sério.

Doutora – Mas eu estou te levando a sério, minha querida.

C– Ah, está? Então me diz: se eu tiver que operar a minha fenda, existe ou não alta probabilidade de que eu morra de choque anafilático?

Doutora – Essa possibilidade não existe.

C– Como é que a senhora sabe?

Doutora – Você jamais vai ter que operar essa tal fenda.

C– Como é que a senhora sabe?

Doutora – Não há nada de errado com suas cordas vocais.

C– Como é que a senhora sabe? Por acaso é fono?

Doutora – Minha querida, se a judia e a árabe se dessem assim tão mal, esse nosso breve e animado diálogo já teria sido suficiente para te deixar completamente rouca. E, no entanto, você continua com a mesma voz maravilhosa, projetada de forma esplêndida, o que me faz supor que você seja atriz. Estou enganada?

C– Totalmente! Eu sou farmacêutica!

Doutora – Não me diga! É uma profissão linda!?

C – Mas antes eu tentei ser médica, mas tranquei a faculdade no terceiro período.

Doutora – Por quê?

C – Aquilo ali é muito perigoso. De tanto ouvir falar em doença a pessoa acaba se contaminando toda!

Doutora – E você foi ser farmacêutica por que, mesmo?

C – Por coerência! Se eu vivo doente, é melhor saber a medicação exata a tomar.

Doutora – Isso é ótimo. Dispensa até plano de saúde...

C – Era essa a minha intenção. Mas como eu sou uma pessoa que reconhece as suas limitações, ao contrário de outras, que imaginam que sabem tudo, eu me inscrevi no Amix Total pra poder não apenas ser atendida sempre que quisesse, mas também para ver se os remédios que me passavam coincidia com aqueles que eu tomaria por iniciativa própria.

Doutora – E costumam haver muitas coincidências?

C – Até que havia. Mas ultimamente os médicos têm se recusado a me medicar.

Doutora – Deve ser porque eles acham que você não tem nada...

C – Isso todo mundo acha! Mas como eu sei que tenho, e como eu também sei que eu não sou louca, eu só saio do consultório deles nem que seja com uma mísera pastilinha no bolso!

Doutora – Você deve ser muito querida no Amix Total...

C – Querida? A senhora acredita que o diretor geral do Amix Total teve a audácia de propor que eu me retirasse do plano?

Doutora – É mesmo? E por que será?

C – Ele cismou que eu sou hipocondríaca e estava levando o corpo médico à loucura! Pode um absurdo desses?

Doutora – Pode...

C – Mas eu não sou hipocondríaca! Eu sou uma pessoa atenta e sensível, que sofre permanentemente e cujo sofrimento jamais é levado a sério!

Doutora – Escute, minha querida...

C – E que só está aqui para receber da senhora um atestado atestando que eu não invento doenças. Então, de posse deste documento, eu vou esfregá-lo bem na fuça daquele babaca daquele diretor!

Doutora – Então é essa a sua questão: provar que é mesmo uma pessoa doente!

C – É só essa a minha questão!

Doutora – E se eu chegar à conclusão de que você é mesmo hipocondríaca?

C – Eu vou chegar à conclusão de que o seu diploma é comprado! (B retorna)

Doutora – E então, minha querida? (B Não responde)

C – Agora não sai nada nem por cima...

Doutora (Aponta D) – Você! (A mulher D vem para o centro)

CENA 6

D – Bem...dizem que a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos.

Doutora – Dizem.

D – Ou seja: se a pessoa está no ponto A e deseja ir o mais rapidamente possível ao ponto B, basta seguir para seu objetivo ignorando todas as alternâncias do percurso.

Doutora – Parece simples.

D – Mas não para mim. Eu até já tentei traçar retas e segui-las, mas sempre me deixo seduzir por variantes que deveria desprezar e...

Doutora – Desculpe interromper, minha querida: mas você acha que está aonde?

D – Como assim?

Doutora – Pode ser que eu me engane, mas tudo leva a crer que nós estamos num spa terapêutico e não num cursinho de oratória!?

D – Eu não estou entendendo...

Doutora – E eu muito menos. Mas eu gostaria muito de te entender e isso só será possível se você renunciar a esse discurso pernóstico e empolado!?

D – Tem algum problema a pessoa saber se expressar bem?

Doutora – Nenhum, mas em você soa tão falso...

D – Por quê? Eu tenho cara de analfabeta?

Doutora – Não...você tem cara de quem acaba de sair de um shopping.

D – E se tivesse saído? Algum problema?

Doutora – O problema não é sair de um shopping: é viver nele!

D – Eu não vivo em shopping!

Doutora – É claro que vive!

D – Como é que a senhora pode afirmar isso?

Doutora – Basta olhar pra você!?

D – A senhora está sendo preconceituosa.

Doutora – Talvez. Mas afinal: o que se esconde por traz de todo esse aparato?

D – Eu não vim aqui pra esconder nada.

Doutora – Que ótimo. Porque aqui as máscaras são inúteis e mais cedo ou mais tarde elas acabam caindo. E a sua também vai cair...E então?

D – Bem...dizem que a linha reta...

Doutora – Ah não, minha querida! Vamos logo fazer uma curva, pegar um atalho e ir direto à sua questão!

D – Tudo bem: eu transo compulsivamente!

Doutora – Todos os dias?

D – Todos os dias! E às vezes com vários caras diferentes!!!

A – Misericórdia!?

Doutora – Desde quando?

D – Desde que...eu posso contar um pouco da minha história?

Doutora – Claro.

D – Bem... meus pais morreram quando eu tinha cinco anos e as freiras de um internato lá de Viçosa resolveram me adotar.

A – Uma bela atitude, a dessas freiras.

D – Na época eu também achei. Mas assim que fiquei mocinha...

Doutora – Uma pervertida começou a abusar de você!

D – Não foi só uma, não...

Doutora – Como assim? Quer dizer que era uma congregação de devassas?

D – Quase todas, comandadas pela madre superiora.

Doutora – Gente...mas por que você não armou um escândalo? Por que não foi à polícia denunciar esses pingüins lúbricos?

D – E alguém acreditaria?

A – Eu não acreditaria. Desculpe, mas eu não posso conceber a hipótese de que uma serva de Deus...

D – Foi por isso que eu fugi pro Rio sem revelar nada. Porque a maioria das pessoas pensa como a senhora. Ninguém daria crédito a uma menina de dezesseis anos. Todo mundo ia achar que eu estava mentindo e era até mesmo capaz de me mandarem pro hospício.

Doutora – Você tem razão. Em Minas as pessoas são internadas por qualquer coisa.

D – E aí eu cheguei aqui...não tinha onde cair morta e então...caí na vida!

Doutora – Você é garota de programa?

D – Fui, durante três anos.

C – Ah, meu Deus do céu! Deve estar toda contaminada!

D – Contaminado está o teu cu, com aquele monte de brotoejas!

A – Gente, olha o vocabulário!?

B – Briga não, por favor!

C – Ih...ela já está falando de novo!? O que é que uma boa barrigada não faz por uma pessoa, né amiga?

D – Eu posso continuar?

Doutora – Por favor.

D – Eu já nem sei mais onde eu estava...

C – Você tava dizendo que foi garota de programa durante três anos...

D – Você tem uma memória do caralho, hein?

C – Que memória, amiga, não banaliza. Eu sou é uma pessoa muito atenta e...

D – E também muito sensível...

C – Um poço de sensibilidade!

D – Olha, você é um poço sabe de quê?

Doutora – Por favor, vamos prosseguir? Depois vocês se entendem, se for o caso!

D – Bom...mais adiante eu casei com um velho escroto, cheio da grana. E durante mais uns três anos tive que suportar aquele bagaço gordo e suarento!

Doutora – E por que deixou de suportar?

D – Porque ele morreu! Teve um enfarte enquanto me comia!

A – Ai, meu São Benedito!?

D – O filha-da-puta morreu bem em cima de mim...

A – Meu Deus, mas que tragédia!?

D – Tragédia? Pra mim foi um alívio!

Doutora – E o que te aconteceu, a partir daí?

D – Nada de especial...eu vivo trepando por aí, com quem me dá na telha...sempre pagando, que é pra não ter a menor chance de me envolver.

Doutora – Você não gostaria de se envolver?

D – Qual é o cara legal que vai querer ficar com uma mulher que foi puta?

A – Ele não precisaria saber, minha filha!? O que importa é você estar disposta a entrar no caminho da redenção!?

D – Eu não sei que caminho é esse! Mas seja qual for, ainda assim eu teria que omitir o que fui...teria que inventar um passado que não foi o meu...teria que criar uma história que eu não vivi...e toda vez que ele me perguntasse alguma coisa, eu teria que mentir...e a pessoa que mente tem que ter uma ótima memória...e eu acho que não tenho...

A – Escuta, por que você não dá um pulinho na minha Igreja, no Grajaú?

D – Pra quê?

A – Padre Astolfo é um abençoado, capaz de iluminar as trevas mais profundas!

D – Eu não sou católica!

A – Mas pode se tornar!?

D – Eu estou me lixando pra religião!

A – E lá tem também o coral, que é uma beleza!

D – Eu sou completamente desafinada!

A – Nós cantamos salmos e hinos, também MPB e...

D – Escuta: eu não estou a fim de cantar porra nenhuma, não sei onde fica o Grajaú e gostaria que a senhora parasse de me dizer o que eu devo ou não fazer, ok? Pra isso eu estou pagando a doutora!

A – Ô, minha filha, eu só estou querendo te ajudar!?.

D – As pessoas que mais fuderam a minha vida sempre vieram com esse mesmo papo: me ajudar!

Doutora – Bem...por hoje basta. Agora vamos dormir, porque amanhã nosso dia será longo. (Pega um pequeno frasco, dele retira quatro comprimidos e os entrega a cada uma das mulheres) Quando chegarem nos seus quartos, vocês vão tomar este remédio, um tranqüilizante fraquíssimo, que ajuda a relaxar e às vezes produz sonhos interessantíssimos.

C – Eu posso ler a bula?

Doutora – Depois de tomar o remedinho, cada uma de vocês vai repetir em voz baixa e até pegar no sono, a frase que eu vou passar agora para cada uma...(A Doutora se aproxima de cada uma e segreda uma frase) E vocês estão terminantemente proibidas de entrar em contato umas com as outras até o café da manhã. O não cumprimento desta determinação implica na imediata ruptura do pacto terapêutico que fizemos. Boa noite!

C – Doutora!

Doutora – Sim?

C – Sem ler a bula, não há força da natureza que me faça tomar nada!

Doutora – Então você não toma. Tudo na vida se resume a escolhas...

C – E a escolha da senhora é atormentar a minha madrugada, não é mesmo? Me fazer ficar zanzando que nem uma zumbi pelos corredores!?

A (À C) – Minha filha, só um minutinho, por favor! Doutora, pensando no coletivo, eu gostaria de saber o seguinte: e se, por acaso, alguma de nós acordar no meio da noite, precisando de ajuda?

Doutora – Nenhuma paciente minha jamais precisou de ajuda no meio da noite! Ou precisou no início ou no fim dela! Fui bem clara? (As mulheres se entreolham e saem)

CENA 7

Doutora – Ah, as mulheres...Olha, eu não sei como tudo começou, mas pode perfeitamente ter sido assim...Entediado, o Senhor vaga pelo universo na esperança de que algo o surpreenda, mesmo sabendo que nada pode surpreendê-lo, já que tudo que existe é obra da sua vontade e segue o inexorável destino que ele próprio traçara. Mas, ainda assim, ele vaga...amaldiçoando sua onipotência e desejando ardentemente o impossível, ou seja, se deparar com algo que, por qualquer razão, pudesse ter escapado ao seu rígido controle. Sim, Deus vaga desesperado à procura de algo que o negue, de uma centelha de revolta, mesmo que partindo da mais ínfima criatura, do menor dos átomos, da mais insignificante das moléculas! Mas é tudo inútil...Então, sentindo-se uma espécie de náufrago de si mesmo, Deus se senta e chora de raiva de seu monumental engano: o de imaginar que poderia ser feliz em um universo isento de espantos! Mas foi exatamente enquanto chorava que Deus teve o insite! Sim, seria preciso inventar uma criatura inteiramente diferente de todas as outras. Uma criatura ao mesmo tempo divertida e trágica, insolente e delicada, frágil e transgressora. Uma criatura que jamais poderia ser plenamente apreendida, já que estaria sempre em permanente processo de mutação. E foi nesse momento que Deus concebeu e deu forma à sua mais esplêndida criação: a mulher! (BO)

CENA 8

(No escuro)

A – Eu nunca mais vou acordar assustada.

B – Eu preciso aprender a dizer não.

C – Eu sou completamente saudável.

D – Eu mereço muito ser amada.

CENA 9

(Ainda no BO, escuta-se o cacarejar de um galo. Quando as luzes se acendem, as quatro mulheres já estão em cena, com outras roupas. C com sua maletinha de remédios)

A – Será que a doutora desistiu da gente?

B – Pôxa, já são quase nove horas.

D – E ela marcou às oito!?

C – Talvez tenha morrido...

A – O que é isso, menina?!

C – Uai...com as pragas que eu roguei!?

D – Você passou a noite inteira praguejando?

C – A noite inteira não, querida. Não seria preciso. Quando uma pessoa como eu, sensível e atenta, é maltratada do jeito que eu fui, basta um pensamentozinho só pra outra pessoa, Ó...(Faz um gesto indicando que a pessoa se fode)

A – Você não tomou seu comprimido?

C – Eu disse que não ia tomar.

B – E também não repetiu a frase?

C – A frase até que eu repeti, mesmo sabendo que não passava de uma provocação.

D – E qual era a frase?

C – Querida, a minha frase é a minha frase, a tua frase é a tua frase, a frase de cada uma é a frase de cada uma. Por isso a doutora não anunciou as frases em voz alta. Portanto, eu não vejo o menor sentido em revelar o que ela me disse.

D – “Eu mereço muito ser amada”.

C – O que?

D – Era essa a minha frase.

A – “Eu nunca mais vou acordar assustada”. Essa era a minha.

B – “Eu preciso aprender a dizer não”. Foi isso que ela me passou.

D – “Eu sou completamente saudável”.

C – Mas não é mesmo!?

D – Era essa a sua frase...

C – Quem te disse?

D – Sem querer eu escutei. A doutora falou no teu ouvido esquerdo, o das abelhas, e como você não deve ter escutado direito ela repetiu a frase num tom mais alto...

A – É, eu também ouvi.

B – Ídem.

C – Quer dizer que todas vocês ficaram ligadas no que a doutora ia me dizer!?

D – Ninguém ficou ligado em nada, ô doentinha. É que o ato de escutar é involuntário. Ao menos pra quem não tem problemas auditivos...

C – Escuta aqui, ô brinquedinho de freira contaminado...

D – Como é que é?

C – Eu não estou neste spa pra escutar desaforo de ninguém, sacou? Muito menos de uma ninfo polaca!

D – Ninfo polaca é a puta que te pariu! (E ambas partem para a porrada. A se interpõe)

A – Agora já chega! Essa conduta de vocês é completamente inaceitável! Nós somos um coletivo que está sofrendo pra caralho – perdão, pra cacete – e que só está aqui porque está precisando desesperadamente de ajuda! E se a doutora Elisângela constituiu um grupo, ESTE grupo, é porque ela acredita que a gente também pode se ajudar. Que a gente DEVE se ajudar! Portanto, trocar ofensas e safanões não faz o menor sentido!

B – Também acho. Brigar é uma coisa que...

A – E tem mais: se vocês não fizerem as pazes AGORA eu vou embora!

B – Eu também!

A – E aí vocês ficam à vontade pra se engalfinhar pelo tempo que quiserem!

C – Eu não provoquei nada. Apenas me defendi...

D – É...você é quase uma santa...

A – E então? Estou esperando...

B – Nós duas estamos esperando.

C – E como é que a gente faz pra fazer as pazes?

A – É muito simples. Segundo padre Astolfo, que é um sábio, todos os ressentimentos podem ser banidos com um forte abraço!

C – Deus que me perdoe! Se eu abraçar essa moça vou direto pro CTI!

A – Não seja ridícula! Essa moça é perfeitamente saudável e você sabe disso! Aliás, se não me falha a memória, a única doente oficial aqui é você...portanto, caberia a ela temer algum contato físico com você e não o contrário!

C – Nada do que eu tenho é transmissível!

A – O seu mau humor é transmissível!

B – A sua intolerância é transmissível!

A – E essas coisas contaminam mesmo, sabia?

C – Quer dizer que agora...eu virei a ovelha negra do grupo!? (Entra a Doutora)

CENA 10

Doutora – E então? Como passaram a noite?

A – A minha foi uma beleza.

B – A minha também.

D – Eu nem reparei quando peguei no sono.

C – Pois eu reparei que NÃO peguei no sono!

Doutora – Deve ser porque você não tomou seu remédio, como era de se esperar...

C – Não tomei e jamais tomaria nada sem ler a bula, como era de se esperar.

A – Olha, doutora, a senhora não tem idéia do dobrado que eu cortei pra preservar a unidade do coletivo!

Doutora – É mesmo? Por acaso rolou algum barraco?

A – Se a senhora não se importa, eu prefiro não revelar.

Doutora – Por quê?

B – Porque tudo já foi contornado. Não é mesmo?

C/D – Em nome da unidade do coletivo!

Doutora – Bem, já que é assim, vamos ao que interessa. (Pega quatro envelopes) Cada uma de vocês vai receber um envelope. Na frente está escrito o lugar onde vocês cumprirão suas tarefas.

B – Tarefas? Como assim?

A – Deve ser uma espécie de dever de casa, minha filha!?

Doutora – É...não deixa de ser.

C – Mas nós todas vamos pro mesmo lugar?

Doutora – Não.

C – Graças a Deus!

A – Olha a recaída!

D – E por quanto tempo a gente vai se separar?

Doutora – Por apenas duas horas.

B – Mas não dá pra ser em dupla?

Doutora – Não. As tarefas são individuais.

C – Eu só quero ver o lugar pra onde eu vou ser mandada...

Doutora (Entregando o envelope a C) – Você tem algum problema com galinha?

C – Por que a senhora está me perguntando isso?

Doutora – Porque você vai pro galinheiro.

C – Eu, pro galinheiro? Mas nem morta! Eu tenho horror a bicho com pena!

Doutora – É mesmo?

C – E como eu também tenho horror de ser motivo de chacota, já estou descendo a serra!

Doutora – Lá não tem nenhuma galinha, minha querida. Eu estou brincando...

C – Ah, a senhora está brincando...

Doutora – ESTAVA...já não estou mais.

C – Vai brincando, doutora...vai brincando pra senhora ver aonde é que a minha pressão vai parar! Se bobear, eu já fiquei quatro por oito!

D – Oito por quatro, darling...

A – Olha o coletivo!

Doutora – Deixa eu explicar: quando eu comprei esta propriedade, lá realmente havia um galinheiro. Mas como eu também tenho horror a bicho com pena, transformei num lugar chiquérrimo, limpérrimo, um show room!

C – Ah, bom...

A – E eu? Vou pra onde?

Doutora (Entrega o envelope da mulher A) – Você vai para a gruta.

A – Que gruta, doutora?

Doutora (Entregando à mulher B) – Você vai pro celeiro...

B – Eu tenho alergia a feno!?

Doutora – E você vai pro lago.

D – Mas eu não sei nadar!

Doutora – Talvez não seja preciso...E agora, prestem bastante atenção: no verso do envelope tem um mapinha, que é pra vocês se orientarem. Outra coisa: vocês só podem abrir os envelopes quando chegarem nos locais determinados. E, finalmente: as tarefas têm que ser rigorosamente cumpridas e na ordem prevista! Alguma pergunta?

A/B/C/D – Mas doutora...

Doutora – Daqui a duas horas nos vemos aqui. (A Doutora sai. As luzes caem em resistência. BO)

CENA 11

(Esta cena mostrará as quatro mulheres tentando cumprir suas tarefas. Elas estão isoladas por quatro focos, que se acenderão e apagarão quando cada uma estiver em destaque. Apenas o foco da mulher D jamais se apagará: começará bem tênue e sua intensidade crescerá lentamente. Ainda no BO, se escuta um mantra. Depois de um tempo, se acende uma luz na mulher A, que tenta inutilmente fazer a posição de Flor de Lótus. Depois de um tempo, sai o mantra e o foco na mulher A. A mulher D contempla, imóvel, o lago à sua frente. Foco na mulher B)

B – Não...não...não...(Ela continua dizendo “não” e sendo vista, em luz baixa. Foco na mulher C)

C – Não é possível. Onde é que você se meteu, preciosa chave do meu amparo? (Ela procura a chave da sua maletinha, mas não consegue encontrá-la) Ah, já sei: ela deve ter caído no chão da clínica enquanto a contaminada me agredia! Merda! Vou ter que voltar lá. Sem tomar as minhas medicações não há santo que me faça ficar de pé! (Sai e seu foco é apagado. Nesse momento, a mulher D molha as mãos no lago. Depois de um tempo, volta o foco em B)

B – Eu não quero. Eu não vou. Eu não sinto nada por você. (Foco em C, que permanece juntamente com o foco em B)

C – Não é possível! Procurei em tudo quanto foi canto e nada de encontrar a minha chavinha!

B – Eu falo do jeito que eu quiser. Eu me visto do jeito que eu quiser.

C – Ah, meu Deus do céu, a minha pressão já deve estar três por sete!

B – Se eu quiser, eu grito. Se eu quiser, eu choro.

C – Daqui a pouco a máxima e a mínima vão se encontrar e aí será o Juízo Final!!!

B – E se eu quiser gritar e chorar ao mesmo tempo, eu grito e choro ao mesmo tempo!

C – Eu não quero morrer tão jovem e muito menos num antigo galinheiro!!!

B – O meu silêncio te incomoda? As tuas palavras me cansam.

C – Anda, amiga, faz isso por mim que sempre te tratei como uma irmã!

B – Eu disse que teu show era bom? Mentira: era uma merda!

C – Se abre pra mim antes que seja tarde!

B – Não está a fim de me ver de novo? Foda-se!

C – Você quer o meu extermínio? É isso?

B – Se você beija bem? Puta que o pariu!?!

C – Não adianta! E sem ajuda, a morte é certa! (Saem os focos em B e em C. Foco em A, que começa a escrever sua primeira carta. A mulher D começa a remover sua pesada maquiagem)

A – Tatiane: você está feliz com o seu traficante? E será que já está traficando também? É possível e talvez por isso você nunca encontre tempo para escrever para sua mãe. E quando escreve, são cartinhas tão curtas...nelas você não me conta praticamente nada e também não demonstra o menor interesse pela minha vida, embora você se esforce para simular o contrário...mas suas palavras são sempre tão falsas...enfim...padre Astolfo costuma dizer que a gente colhe o que plantou...e é possível que eu tenha regado demais a semente, ou regado menos do que deveria, eu não sei...de qualquer forma, não deixa de manter contato comigo, sua erva daninha colombiana!!! (Pega outro papel) E você, Dieguinho? Dando que nem um louco aí em São Francisco? Desculpe a franqueza, meu filho, mas é que mamãe está num spa terapêutico e a doutora me propôs escrever para você e sua irmã dizendo tudo que eu queria, sem medir as palavras. Portanto, não se ofenda, sim? E aproveita e admite: você só foi aí pros states pra poder fazer na cara de todo mundo o que só podia fazer escondido entre a Tijuca e a Usina. Mas, enfim...cada um dá o que lhe pertence, não é mesmo, pederasta exilado? (Nesse momento, surge C. A leva um susto e solta um grito)

C – O que foi?

A – Pôxa, você quase me mata do coração!?

C – Tem mais alguém aqui na gruta?

A – Que eu saiba, não.

C – Mas a senhora não estava chamando alguém de pederasta exaltado?

A – Exilado!

C – E então? Cadê ele?

A – Está nos states, dando que nem um louco.

C – Ah, o Dieguinho cabeleireiro...

A – Ele mesmo. E agora, se você me dá licença...

C – É só um minuto, por caridade. É questão de vida ou morte!

A – Mas a doutora recomendou que as tarefas...

C – Eu sei. Mas é que eu perdi a chave da minha maletinha e a minha pressão está convergindo e...

A – Mas você não tem uma chave sobressalente? Eu, se fosse hipocondríaca como você, teria pelo menos uma dúzia. E espalhadas por tudo quanto é canto.

C – Amiga, sem agressões, ok? Eu não sou hipocondríaca, sou apenas uma pessoa atenta e sensível, e que só quer saber se a senhora viu a minha chave! Só isso!

A – Não, não vi. E agora eu preciso me concentrar na minha terceira tarefa.

C – Tomara que ela seja super bem-sucedida.

A – Tomara. E as suas, como vão indo?

C – Eu ainda nem comecei! Eu estou à beira da morte, será que a senhora não percebe? (Ambas congelam. Sai a luz que estava nelas. A mulher D contempla seu rosto, agora sem a antiga maquiagem. Depois de um tempo, começa a tirar seus muitos acessórios. Foco na mulher B)

B – Vocês estão surpresos? Mas com o quê? Ou vocês acham que eu devia ficar a vida toda encolhida num canto, mendigando uma atenção que vocês nunca me deram e nunca me darão? Eu quero mais é que vocês continuem dando festas, se possível, ainda mais grandiosas. E de preferência com pessoas ainda mais estúpidas do que as habituais. E, por favor: no próximo cruzeiro que vocês fizerem, não me mandem nenhum postal com frases cretinas, tipo “filhinha, nós estamos nos divertindo muito, mas também com muita saudade de você”. Muita saudade é o caralho!!! Se alguém aqui sente saudade de alguém, esse alguém sou eu. Mas não é de vocês, que sempre cagaram pra mim. A única saudade que eu sinto é da minha avó, que não sei como, mamãe, foi capaz de parir uma pessoa tão escrota como você! E você também é um pai de merda, doutor Fernando! (C entra no foco de B) E agora tchau, que eu já disse tudo que tinha pra dizer!

C – Ah não, embutida, não faz isso comigo!

B – Hein?

C – Só uma palavrinha!

B – O que você está fazendo aqui?

C – Tentando evitar a PASSAGEM!

B – Passagem? Mas que porra é essa?

C – Escuta: eu perdi a chave da minha maletinha e eu já estou me convergindo toda! Minha pressão está três por seis!

B – Mas você não tem uma chave sobressalente? Eu, se fosse hipocondríaca como você, teria pelo menos uma dúzia. E espalhadas por tudo quanto é canto.

C – Amiga, sem agressões, ok? Eu não sou hipocondríaca, sou apenas uma pessoa atenta e sensível, e que só quer saber se você, por acaso, viu a minha chave! Só isso!

B – Não, não vi. E agora eu preciso me concentrar na minha terceira tarefa.

C – Tomara que ela seja super bem sucedida!

B – Tomara. E as suas, como vão indo?

C – Eu não vou nem te responder. Sabe por que?

B – Não...

C – Porque um cadáver não fala!!! (A mulher C sai. Some o foco em B. Foco em A)

A – Venho às vezes, mas não muito. E você? Pois é, eu também tive a impressão que já te conhecia de algum lugar. Deve ser daqui. Não, sou viúva. Que é isso...são seus olhos gentis...eu já não sou tão jovem assim...tenho até dois filhos já bem crescidinhos...Ah, Rodolfo, você quer que eu acredite que eu pareço ter menos de 30 anos? Não, eu não bebo. Quer dizer...depende da bebida, da ocasião e...da companhia...Um Martini? Duplo? Tudo bem! Dançar? Ah, Rodolfo, mas logo uma salsa? Eu vou me desconjuntar toda! (Entra uma salsa e ela simula estar dançando com Rodolfo. Depois de um tempo, a música abaixa e vemos a mulher C, em seu foco. Quando C começa a falar, sai a salsa)

C (Falando consigo mesma) – Deixa o orgulho de lado, Samantha, e encara a realidade: a contaminada é a única que sobrou e, portanto, a única que pode te salvar. (Ela avança para o foco onde está a mulher D, sumindo na penumbra. A mulher D, agora, já não exibe a antiga maquiagem e tampouco seus adornos. Mas ainda permanece com a mesma roupa. Depois de um curto tempo, C entra no foco da mulher D)

C – Oi, amiga...sabe o que é? É que eu perdi a chave da minha maletinha e pensei...sei lá, que ela podia ter caído enquanto nós brigávamos e você...sei lá...podia ter ficado com ela...afinal, naquele momento, nós estávamos nos odiando e...merda! (E sai. Voltamos à mulher A, que acaba de dançar com Rodolfo e, logo em seguida, à mulher B)

A – Ah, Rodolfo...você me deixou toda alquebrada, sabia? Já fazia tempo que eu...Relaxar? É...até que seria bom...Na sua casa? Bem, eu...no Grajaú? Não vai me dizer que você também mora no Grajaú! Tudo bem, a gente até pode sair junto, mas quando chegar na sua casa você entra primeiro e eu espero um pouquinho, está bem? É, o pessoal do bairro é louco por uma fofoca...(A mulher A sai. D começa a tirar sua roupa, foco em B)

B – Vó: eu sei que não preciso me desculpar, porque você sabe o quanto eu te amo. Mas de qualquer forma, eu queria dizer que fiquei chateada com o que aconteceu...Eu não consegui chorar, não acompanhei o féretro – é féretro que fala? Enfim, não importa. E também lamento não ter colocado sobre você aquelas flores lindas, que acabaram parando no túmulo de um tal de Francelino da Silva... Mas eu te prometo: assim que voltar pro Rio, eu vou enfeitar o teu jazigo com acácias, gerânios, enfim, com as flores mais lindas...eu te prometo...(Nesse momento B fica imóvel, serena. Depois de um tempo, a luz nela sai e tudo se concentra na mulher D. Vê-se que está nua, mas a luz, nesse momento, deve ser difusa, valorizando mais a expressão de seu rosto e, ao mesmo tempo, tudo que foi jogado fora e está a seus pés: a antiga roupa, os adereços etc. As luzes caem em resistência)

CENA 12

(As mulheres se reencontram na mesma “sala” da cena inicial. D, obviamente, está vestida, mas com algo bem simples, sem nenhuma maquiagem)

A – A minha vida, daqui por diante, vai ser dividida assim: antes e depois da gruta!

B – Eu também adorei as tarefas que ela me passou.

D – Eu fiquei surpresa com as minhas.

A – Todas nós ficamos.

D – Mas acabou sendo ótimo.

A – Certamente. Pra você, então...você está tão mais bonita agora!?

D – Jura?

B – Eu também estou “me sentindo”, sabiam?

A – Que ótimo! Nada como um bom e velho celeiro, não é mesmo?

D – Agora só me falta aprender a nadar!? (Elas riem)

B – E o que será que ela vai passar pra gente agora?

D – Sei lá...mas antes ela deve querer saber como a gente se saiu, vocês não acham?

A – É verdade. Eu faço questão de contar tudo: tintim por tintim!

B – Eu também.

D – Eu acho que não preciso contar nada...

A – É verdade...basta te olhar.

B – Gente, só uma coisa: cadê a hipo, que não aparece?

D – Será que ela ainda está procurando a chave? (Entra a mulher C, com uma faca)

C – Não! Às vezes, na vida, a gente é obrigada a renunciar ao impossível!

A – O que é isso, menina? O que você vai fazer com essa faca?

C – O que deve ser feito! Talvez já seja tarde demais, mas como eu sou guerreira, faço questão de morrer lutando!

A – Mas lutando...contra o quê, minha filha?

C – Todas vocês sabem que eu perdi a chave da minha maletinha. E também sabem que eu sou uma pessoa doente e não pode sobreviver sem as minhas medicações. Portanto, só me resta despedaçar a minha maletinha pra ter acesso àquilo que talvez ainda possa me salvar!

A – Mas não há necessidade de você danificar uma frasqueira tão bonitinha!?

C – Ah, não? Me dê então uma única razão para não fazê-lo.

A – Eu vou lhe dar duas.

C – E quais são?

A – A primeira: você não precisa usar essa faca assassina, pois a chave que você tanto procura talvez seja essa que está pendurada no seu pescoço, na correntinha!?

C – Meu Deus!? Você está aqui, minha chavinha!?

A – E agora, a segunda razão: será possível que você não notou nada?

C – Notou nada? Como assim?

A – Você está há duas horas sem tomar nenhum remédio!?

C – Duas horas?

CENA 13

Doutora – Bom dia. Desculpem o pequeno atraso, mas houve um acidente no meio da serra...eu atropelei um bode...houve um princípio de tumulto...as pessoas se revoltaram...chegaram a atirar coisas no meu carro...umas goiabas...Mas, enfim...aqui estamos nós. Vamos nos sentar? (Ela pega umas almofadinhas, as distribui num semi-círculo e se senta numa cadeira) Quem é Ana Margarida?

A – Eu.

Doutora – Bruna?

B – Eu.

Doutora – Samantha?

C – Eu.

Doutora – Maria de Lurdes?

D – Eu.

Doutora – E então? Encontraram o spa com facilidade? (As mulheres nada respondem) O que foi? Algum problema?

A (Relutante) – Desculpe a pergunta...mas a senhora é quem?

Doutora – Como assim? Eu sou a terapeuta de vocês!?

B (Relutante) – A doutora Elisângela?

Doutora – Sim.

C (Relutante) – Mas ontem a senhora tinha o cabelo preto...

Doutora – O que?

D (Relutante) – E não usava óculos!

Doutora – Vocês me desculpem, mas eu não estou entendendo.

A – E nós muito menos.

Doutora – Eu nunca tive o cabelo preto, sempre usei óculos e ontem eu não estive aqui!?

A/B/C/D – Não?

Doutora – Não. O meu spa terapêutico só funciona aos sábados e domingos!?

A – Mas então...quem estava aqui no seu lugar?

B – Quem chamou um Antônio que não existia?

C – Quem fez a mágica do isqueiro?

D – Quem nos passou as tarefas?

Doutora (Depois de um tempo) – É inacreditável...mas só pode ter sido ELA!

A/B/C/D – Ela quem?

Doutora – Minha irmã.

A/B/C/D – Sua irmã?

Doutora – Gêmea. Ela também é psicanalista, só que não exerce mais a profissão. No entanto, de vez em quando ela consegue os telefones de alguns pacientes meus, diz que está clinicando novamente...enfim...mas eu nunca imaginei que ela chegasse ao ponto de...

A – Se fazer passar pela senhora!

Doutora – Isso ela sempre tentou, quer dizer, sempre competiu muito comigo.

A – Toda irmã faz isso.

Doutora – Mas, me respondam uma coisa: não ficou acertado que vocês só chegariam aqui hoje?

B – A princípio, sim. Mas nós recebemos um e-mail dizendo que era para a gente estar aqui na sexta à noite e não no sábado de manhã.

Doutora – Mas como é que ela teve acesso ao e-mail de vocês?

D – Deve ter conseguido lá na sua sociedade..

Doutora – Impossível. Minha secretária jamais passaria para ela essas informações.

C – Bem, pode não ter sido ela, mas que alguém de lá nos escreveu, isso é um fato.

A – E além de escrever, provavelmente fez uma cópia da porta de entrada da clínica e deu para a sua irmã.

Doutora – Ela já estava aqui quando vocês chegaram?

D – É possível. Mas nos deixou esperando quase uma hora.

Doutora – Devia estar se drogando, a infeliz...

B – Ela usa drogas?

Doutora – Quando consegue...

C – É por isso que ela tava toda pilhada!

D – Mal deixava a gente completar uma frase!?

A – Já ia adiantando o assunto.

B – Parecia uma médium!

Doutora – Enfim...eu peço desculpas. E prometo fazer o impossível para remediar o mal que minha irmã lhes causou.

A/B/C/D (Depois de um tempo) – Mal?

Doutora – Certamente. Mas vamos ao que interessa.

A – Desculpe, doutora, mas sua irmã não nos fez mal nenhum.

B – Pelo contrário.

D – Nós adoramos as tarefas que ela nos passou.

Doutora – Tarefas? Como assim?

A – Eu fui pra gruta: meditei, escrevi cartas desaforadas e mais do que merecidas pra Tatiane e pro Dieguinho, e finalmente tive um affair com Rodolfo.

B – Eu fui pro celeiro: mandei uma porrada de “nãos”, tive um ajuste de contas com meus pais e fiz uma promessa pra minha avó já desencarnada.

D – Eu fui pra beira do lago e aos poucos percebi que tinha que me desmontar toda, percebe?

C – E eu devia ter ido pro galinheiro, mas como eu perdi a chave da minha maletinha...

Doutora – Um momento, por favor!

C – ...fiquei zanzando que nem uma louca até encontrar, o que aconteceu há cinco minutos. Quer dizer, eu nem cheguei a executar as tarefas que ela me passou, mas o que importa é que fiquei duas horas sem me medicar! E não morri!

A – Resumindo: nada de ruim nos aconteceu.

B – E estávamos ansiosas pra contar para a sua irmã as experiências que vivemos.

D – E já imaginando que novas tarefas ela nos passaria.

Doutora – Mas ela não vai mais passar nenhuma tarefa porque a doutora aqui sou eu e vocês são minhas pacientes e não dela! Agora, se vocês acham que foi muito proveitoso esse contato com a Eliana...

A – Que nome lindo!?

Doutora – ...vocês podem arrumar suas malas e descer a serra! Eu posso fornecer dezenas de indicações de analistas completamente ensandecidos que, graças à inexistência de um órgão regulador, continuam impunemente a exercer uma profissão para a qual não estão minimamente capacitados! (Tempo) E então?

A – Me diga uma coisa, doutora...

Doutora – Elisângela N.S.

A – Em nome do coletivo, eu posso lhe fazer uma pergunta?

Doutora – Por favor.

A – Por acaso a senhora é ortodoxa, catatônica e melancólica?

Doutora – Eu???

A – É que a sua irmã nos disse que a maioria dos analistas...

Doutora – O que a minha irmã disse ou deixou de dizer não vem ao caso. A única coisa que me interessa é saber se iniciamos ou não nossa maratona terapêutica.

B (Depois de um tempo) – Vai ter tarefas?

Doutora – É claro que não.

C – E a gente vai fazer o quê?

Doutora – Inicialmente, travar contato com os procedimentos elementares de um processo de transferência, fundamental para reforçar a imperiosa necessidade de estabelecermos uma relação assimétrica. Em seguida, e para que não seja vã nossa caçada, explicarei porque convém a nós, analistas, reduzir tudo à função de corte no discurso, sendo o mais forte aquele que serve de barra entre o significante e o significado. (As luzes começam a cair em resistência) Ali se surpreende o sujeito que nos interessa, pois, ao se vincular à significação, ei-lo no mesmo barco que o pré-consciente. Pelo que chegaríamos ao paradoxo de conceber que o discurso na sessão analítica só tem valor por tropeçar ou até se interromper: como se a própria sessão não se instituísse como ruptura num discurso falso, digamos, naquilo que o discurso realiza ao se esvaziar como fala, ao não ser mais do que a moeda de efígie desgastada de que fala Mallarmé, passada de mão em mão em silêncio. (Com as luzes já bem baixas, as quatro mulheres saem de cena, mas a Doutora nem percebe, tão envolvida que está com seu discurso lacaniano. Fica apenas um foco nela) Esse corte da cadeia significante é único para verificar a estrutura do sujeito como descontinuidade no real. Se a lingüística nos promove o significante, ao ver nele o determinante do significado, a análise revela a verdade dessa relação, ao fazer dos furos do sentido os determinantes do seu discurso. É por essa via que se cumpre o imperativo que Freud leva ao sublime da sentenciosidade pré-socrática...(Nesse momento, todas as luzes se acendem. A Doutora constata que está sozinha. BO)

F I M

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