quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Uma leitura do mundo


Entrevista com ENRIQUE DIAZ


O surgimento e o desenvolvimento da Cia. dos Atores estiveram vinculados à afetividade. Reunião de amigos que tinham a prática teatral como afinidade, o grupo formado por Enrique Diaz, Bel Garcia, César Augusto, Drica Moraes, Gustavo Gasparani, Marcelo Olinto, Marcelo Valle e Suzana Ribeiro fincou, desde o início, suas bases na experimentação e lançou propostas de criação coletiva e/ou de desconstrução da estrutura e da reverência que costumam repousar sobre as abordagens de textos clássicos. Não por acaso, o grupo tem um dramaturgo: Filipe Miguez.
Com total liberdade para trabalharem fora da companhia, os atores costumam trazer de volta as experiências acumuladas em espetáculos fora do grupo e ainda em aprofundamentos da pesquisa artística. O próprio Enrique Diaz passou meses em Nova York participando de um workshop dirigido por Anne Bogart e dirige, ao lado de Mariana Lima, o Coletivo, trabalho surgido a partir do treinamento físico compartilhado com outros profissionais na Fundição Progresso e recentemente mostrado no “Festival Aurillac”, na França.
Os investimentos paralelos nunca trouxeram o distanciamento como conseqüência. Voltaram a trabalhar, todos juntos, em Notícias Cariocas, espetáculo que, juntamente ao bem-sucedido Ensaio.Hamlet, marcou a comemoração dos 15 anos da Cia. dos Atores, data que será sublinhada também com o lançamento de um livro que aborda não apenas a história do grupo, como busca um diálogo com o teatro brasileiro contemporâneo.
Nascido em Lima, no Peru, filho de pai paraguaio e mãe brasileira, Enrique Diaz é o caçula de uma família de seis irmãos. Passou parte da vida morando em lugares diferentes devido ao trabalho do pai na Organização dos Estados Americanos (OEA). Acabou encontrando porto seguro no teatro, sendo motivado, como muitos futuros artistas de sua geração, por Carlos Wilson, carinhosamente conhecido como Damião, responsável por fazer a ponte de tantos jovens do universo escolar para o teatro profissional. Só do Andrews vieram quatro dos integrantes da companhia – Bel, Drica, Gustavo e Marcelo.
A seguir, entrevista exclusiva concedida aos Cadernos de Teatro por Enrique Diaz, também contendo depoimentos de todos os integrantes da Cia. dos Atores.

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Cadernos de Teatro – Como foi o seu início de carreira e em que momento sentiu que havia, de fato, se profissionalizado?

Enrique Diaz – A primeira aula de teatro que fiz foi com Damião, Claudio Baltar e Chico Diaz, meu irmão, quando tinha 14 anos. Comecei rapidamente a fazer peças. Participei de Arlequinada, no Parque Lage, na mesma época em que o Pessoal do Despertar encenava A tempestade. Depois vieram Capitães de areia e Os 12 trabalhos de Hércules. Tentei conciliar Comunicação Social com o teatro, mas acabei interrompendo a faculdade. Em todo caso, foi uma boa experiência porque me garantiu uma base teórica. Num esquema já mais profissional, um dos meus primeiros trabalhos foi A estrela do lar, de Mauro Rasi.

CT – Como você se vê como ator?

ED - Tenho aspectos positivos no que diz respeito à presença e à intensidade física e uma tendência às composições populares. Fiz muito bem a composição de A Torre de Babel (espetáculo de Gabriel Vilela). Procuro buscar sutilezas que sempre me faltaram.

CT – E o trabalho como diretor?

ED – Tinha assistido a Marat-Sade, filme de Peter Brook (a partir de texto de Peter Weiss), em Londres e havia um festival de teatro e performance aqui no Rio de Janeiro. Fizemos uma versão de 40 minutos com textos mais densos mesclados a músicas dos Titãs e armamos uma temporada de dois meses. Quis enriquecer o material e organizei uma colagem, unindo trechos de Marat-Sade a de A morte de Danton, de Georg Büchner, e Mauser, de Heiner Muller. Assim nasceu Rua Cordelier. Agora, tenho a impressão de que só passei a me considerar diretor a partir de Melodrama.

CT – De meados dos anos 70 em diante, o trabalho de corpo passou a ser muito valorizado, em especial com as influências de Klaus e Angel Vianna. Como você se reconhece dentro deste processo?

ED – O corpo é uma herança dos anos 70 em todos nós. Fiz mímica corporal dramática na escola de Etienne Decroux, na França, e procurei marcar os espetáculos da Companhia dos Atores de composição espacial, ritmo, musicalidade e desenho do corpo do ator no espaço.

CT – Existe o risco do trabalho corporal se transformar em recurso acrobático?

ED – Não vejo isto como um problema porque um trabalho pode ser acrobático sem se converter em virtuosismo puro. Mariana Lima se jogava loucamente contra a parede em A paixão segundo GH.

CT – Como você acha que seria dirigir uma garotada nova, ainda inexperiente, e, no extremo oposto, os grandes figurões do teatro brasileiro?

ED – Com a garotada tenderia a ser parecido ao processo com a companhia. Em relação aos figurões, buscaria aproximá-los do que costumo fazer, mas dentro de determinados limites, obviamente. Acabaria recaindo mais sobre o trabalho com texto.

CT – O que um ator precisa ter para que você sinta vontade de trabalhar com ele?

ED – Tenho vontade de trabalhar com inteligências cênicas. O ator deve ter uma ligação com o seu trabalho. Pode ser até que o estar em cena movido pelo narcisismo e pela aceitação dê certo, mas é preciso transformar isto em alguma coisa. Na companhia, os atores são autores. Até porque a pessoa no palco é reflexo da atuação dela no mundo. Quero cada vez mais me manifestar em relação ao mundo, falar do que está me inquietando e não apenas montar bem Hamlet.

CT – Fale um pouco sobre os princípios básicos do seu processo de trabalho.

ED – Não considero a peça como uma base. Procuro, isto sim, cavar dentro ou nos arredores dela para ver o que nos suscita, nos provoca. A justificativa para uma cena existir não está no fato dela ter sido escrita. Já na leitura de O rei da vela chutávamos possibilidades de links que seriam ou não seguidos. No decorrer dos ensaios, uma integração entre os atores é criada, de modo que aqueles que estiverem fazendo abdominais não interfiram em quem estiver envolvido em trabalhos de construção de personagem.

CT – Na sua visão, qual o ponto central dos seus próprios espetáculos?

ED – Praticamente todos os meus espetáculos decorrem de buscas e experimentações minhas. Ensaio.Hamlet foi um processo muito autoral. Trabalhei com três atores da companhia (Bel Garcia, Cezar Augusto e Marcelo Olinto) e três de fora (Felipe Rocha, Fernando Eiras e Malu Galli). Fernando tem quase 50 anos e sustenta uma busca muito radical. Felipe traz uma inteligência mais performática. Bel trouxe novidades em relação ao que eu já conhecia dela. Criou cenas que estão na peça.

CT – Há algum espetáculo da companhia que você não goste?

ED – Não seria capaz de dizer que não gosto. Cobaias de Satã foi um espetáculo de crise. Depois de Melodrama houve a possibilidade de fazermos uma espécie de Melodrama 2. A companhia talvez tivesse ido por este caminho, mas eu não quis. Peguei um outro canal radical. Há gente jovem que diz ter adorado a montagem, como José DaCosta. Não era ruim, mas sim um trabalho incompleto. Tristão e Isolda foi legal, mas não contamos com tempo suficiente para fazer. E também gostei de Notícias Cariocas, apesar de ter passado pelo mesmo problema.

CT – E quais são os que você mais gosta?

EDA bao a qu, Melodrama e Ensaio.Hamlet, sobre o qual já falei um pouco. A bao a qu era muito moderno, elaborado e original, embora Bob Wilson, Pina Bausch, Tadeuz Kantor e Gerald Thomas tenham “aparecido” por lá. E Melodrama foi um processo muito feliz, com todo mundo integrado num playground conseqüente. Elena Soárez (hoje, roteirista de cinema) ajudou na pesquisa e fez parte da comissão de discussão da dramaturgia.

CT – Quais são suas principais referências?

ED – No fundo, tudo é referência: Gerald Thomas, Bia Lessa, os primeiros anos de Moacyr Góes, Gabriel Vilela. Recentemente, gostei muito de Deve haver algum sentido em mim que basta, peça de Jefferson Miranda. Gosto também das montagens do Teatro da Vertigem e de alguns trabalhos da Cia. Armazém, como Alice através do espelho. E me interesso por investidas contemporâneas, como as de Daniel Veronese junto ao grupo “Los Periféricos”, e pelo hibridismo do teatro com a dança e as artes plásticas.

CT – Quais as dificuldades que você encontra como diretor?

ED – Alguns atores te colocam como responsável pelo sofrimento deles, como se o máximo que pudesse acontecer é serem aprovados por mim. Então eu digo: “Você se expõe daí que eu me exponho daqui”.

CT – A que você atribui a apatia da cena carioca atual? E porque os jovens não estão freqüentando o teatro?

ED – Na tenho informações suficientes para responder sobre isto. Mas existem 120 peças em cartaz. E os jovens amavam Ensaio.Hamlet. Agora, as coisas mudam. E cada vez mais rápido. Há mais escolhas hoje em dia. Se o teatro fica estacionado no século XIX, no sentido de montar um texto clássico como ele deveria ser montado, não interessa nem a mim. As artes plásticas, por exemplo, estão bem mais loucas, mais efervescentes.

CT – Apesar do termo “experimental” ter se tornado um tanto desgastado, você se considera filiado a esta tendência?

ED – O desgaste decorre de um certo tipo de experimentos mal acabados demais. Mas me sinto completamente voltado para a experimentação. Os trabalhos de que mais gosto são aqueles em que posso experimentar, que me permitem mostrar como leio o mundo a cada momento.


Depoimentos dos Atores

Drica Moraes – “Dentro da companhia, temos liberdade para ir e vir, trazer o ganho de experiências vivenciadas fora do grupo. No decorrer destes anos, reinventamos códigos de cena e a dramaturgia, cuja questão passa diretamente pelo ator. Chegamos a ensaiar quase um ano determinadas montagens, como Melodrama, trabalho gerado a partir de Só eles o sabem, que já trazia a questão da máscara melodramática e do ator tirando partido de variados estilos de interpretação.”

Gustavo Gasparani – “Quando você faz parte de um grupo de teatro, acaba virando um homem de teatro. Cria envolvimentos não só com a sua personagem como também com a produção, a feitura da cenografia e dos figurinos, a formulação de workshops. Além disso, sinto que aprofundamos segmentos de nossa personalidade de ator. E desenvolvemos uma linguagem própria.”

Marcelo Olinto – “Integrar a Cia. dos Atores representa a possibilidade de aprimorar a forma do fazer teatral e desenvolver questões importantes do momento, seja estética ou politicamente. Quando montamos O rei da vela nas comemorações dos 500 anos de Brasil nos colocamos como cidadãos, ao mesmo tempo em que proporcionamos um entretenimento. Com o passar dos anos, percebo que nossa sede se mantém a mesma; a diferença é que fomos amadurecendo e passamos a utilizar melhor nossas ferramentas.”

Suzana Ribeiro – “A Cia. dos Atores marcou o encontro entre pessoas da minha geração, algumas oriundas do Tablado, outras de colégios como o Andrews e o Souza Leão, como no meu caso. Há uma expressão de fidelidade em relação àquele final dos anos 80. Começamos a trabalhar com pessoas que estavam no mesmo lugar e nos tornamos donos do próprio trabalho ao invés de à mercê de um mercado tão competitivo.”

Bel Garcia - “É muito difícil ser ator no Brasil - no Rio ainda mais que em São Paulo, tenho a impressão - e integrar a Cia. dos Atores nos possibilita investir na continuidade de um trabalho e no aprofundamento de uma linguagem. Temos a liberdade de opinar, de exercer nossa autoria e especificidades. Eu, por exemplo, puxo mais para o lado de um humor próximo do absurdo.

César Augusto - Ao longo do tempo, criamos espetáculos bem dimensionados sem nos esquecermos do público. Acho que temos apontado para as pessoas o quanto o teatro é necessário, vital, para o ser humano. Conseguimos atingir um reconhecimento que ultrapassa o limite da mídia televisiva. Exercemos, cada um, nossas capacidades, que vão além do ato de interpretação.

Marcelo Valle - Há entre os atores uma relação de confiança no sentido de conhecer como cada pessoa se coloca em cena, onde o seu estímulo pode ecoar melhor, onde ecoa menos. Nós nos encontramos há muito tempo e estamos juntos até hoje porque gostamos, sentimos admiração. A experiência artística mais forte da minha vida foi a viagem com a companhia por cidadezinhas do interior de São Paulo.
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Esta entrevista, publicada no nº 171 dos Cadernos de Teatro, foi concedida a Lionel Fischer e Daniel Schenker Wajnberg, cabendo a este último a redação final.

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