O envolvimento do dramaturgo
de S.V. Longman
Fonte: Composing Drama for Stage and Screen
Traduçãor: Renata Cantanhede Amarante
Estágio de Tradução I
Curso de Tradução
Departamento de Letras,
PUC-Rio
* * *
Toda peça tem dois personagens, além dos óbvios: a platéia e o dramaturgo. Embora nenhum dos dois esteja presente no palco, ambos influenciam o drama de modo significativo. A platéia, por exemplo, pode começar como uma entidade amorfa, mas torna-se personagem à medida que se envolve com a peça.
O drama consiste em uma trama triangular entre o dramaturgo, a experiência representada na peça e a platéia que se reúne para compartilhar dela. O envolvimento do dramaturgo atribui uma característica distinta aos personagens, sua história e seu mundo. A platéia sempre tem ao menos uma vaga consciência da presença do dramaturgo, esse articulador e cúmplice que opera por trás das cenas. Ao mesmo tempo, o dramaturgo pensa na platéia.
Portanto, quando assistimos a uma peça, tendemos a vê-la com os olhos de seu criador – desde que seja uma peça bem-sucedida. Isso é tão verdade que uma cena que pareça trivial nas mãos de um dramaturgo pode se tornar profunda nas mãos de outro. A personalidade do dramaturgo é um fator decisivo em qualquer peça.
Ajuste
Isso não significa que você deva agora tratar de transformar sua personalidade em uma "personalidade de dramaturgo". Esse tipo de coisa não existe. Ninguém pode declarar de antemão que uma pessoa tenha uma personalidade dramatúrgica e outra não. O que isso sem dúvida significa, no entanto, é que uma parte importante do trabalho do dramaturgo reside em descobrir como sua personalidade pode se ajustar ao modo dramático. A história oferece diversos exemplos de dramaturgos cujas personalidades não pareceriam adequadas à profissão, entre eles Shaw, Pirandello e Tchecov.
Shaw pareceria excessivamente introvertido e dado a idéias abstratas para ser um dia capaz de lidar com as necessidades do teatro – William Archer tentou trabalhar com ele em sua primeira peça e desistiu, sugerindo-lhe que fizesse o mesmo. Pirandello adorava filosofar e contar histórias; considerava ensaios, contos e romances formas perfeitamente apropriadas de expressão até quase os 50 anos, quando descobriu como o teatro poderia transmitir sua visão única. Thecov exigiu tanto do teatro que foi preciso o gênio de Stanislavsky para deslindar as diferentes possibilidades de o teatro transmitir efeitos, e mesmo assim as exigências não foram inteiramente atendidas.
No extremo oposto, escritores como Henry James e Thomas Wolfe poderiam parecer bons dramaturgos em potencial. Sua ficção é extremamente rica em retratos da humanidade. Não poderiam ter ainda mais força se levados para o palco? Na verdade, tanto James quanto Wolfe escreveram para o teatro, mas nenhum dos dois obteve resultados dignos de nota. O que aconteceu a Shaw, Pirandello e Thecov foi a descoberta de como suas personalidades poderiam se adaptar ao dramático.
Respostas
O trabalho do dramaturgo é de natureza altamente pessoal. A primeira luta do dramaturgo é de certa forma uma luta consigo mesmo. Para vencer é preciso encontrar respostas para questões como: de que maneira me relaciono com meu material? Qual é o meu ponto de vista? Como o transformo em um material meu? Como posso fazer o teatro funcionar para mim?
As respostas, claro, é preciso encontrá-las em si mesmo, pois não há respostas certas, apenas aquelas que servem a um autor teatral como um criador individual. Dizem que escrever peças não pode ser ensinado. Isso é verdade na medida em que não se pode ensinar uma pessoa sem graça a ser interessante. Mas existem duas áreas nas quais é possível aprender: uma é a natureza das exigências, limitações e desafios do teatro; a outra, um conjunto de hábitos pessoais de pensamento e prática valiosos para a criação do drama.
Caminho
Uma peça tem início na mente do dramaturgo e vem repousar por fim nas mentes dos espectadores. No caminho, os diálogos, a abordagem do diretor, a interpretação dos atores, o cenário, figurino, iluminação, tudo isso serve para estimular a imaginação da platéia a dar vida à representação. Assim, uma peça pode ser vista como um meio de despertar vida na imaginação dos outros. Isso envolve um "ciclo de criação dramática", que começa com uma visão, passa através do palco e vem repousar em uma visão compartilhada com outros.
Suponha que você observe ou vivencie uma experiência que lhe pareça dramática. Você vê nela potencial para funcionar como um espetáculo para os outros. Testa esse potencial escrevendo a experiência sob diferentes perspectivas que pareçam poder aumentar o seu interesse. Por fim, chega a um tom e uma apresentação que permitem que o texto seja escrito. O diretor e demais artistas completam as sugestões do texto, dando-lhes vida no palco. Aí a platéia encontra a obra, recebe as imagens apresentadas e as traduz em uma existência imaginária. Compara-a com as próprias experiências e reconhece nela alguma correspondência com a realidade - assim ela se torna menos ou mais envolvente. Se a correspondência for grande, a peça terá sucesso.
Registros
Certos autores discutiram o processo de criação de algumas de suas peças em entrevistas, introduções, ensaios e cadernos de anotações. Toby Cole publicou vários exemplos na antologia Playwrights On Playwriting. Entre eles, talvez o processo mais completamente registrado seja aquele pelo qual passou Henrik Ibsen ao criar Hedda Gabler. A peça começou com uma série de notas sobre uma mulher (vagamente inspirada em uma pessoa real, uma romancista norueguesa da época) que sentia ter tão pouca influência na vida dos outros que empreendeu a criação, para si mesma, de um passado sensacional que com certeza teria impacto. Ibsen acrescentou a essas notas algumas idéias sobre um pacto de suicídio que ela poderia ter feito com um amigo, o qual cumpriria sua parte no acordo, e sobre um manuscrito perdido pertencente a um homem que ela odeia, devido a seu invejável senso de missão na vida.
Essas notas, juntamente com outras, destinavam-se a uma peça que Ibsen abandonou, mas reapareceram mais tarde quando ele começou a planejar Hedda Gabler. Aí aparecem de forma alterada. O manuscrito perdido ainda pertence àquele homem de missão, Eilert Lovborg, mas o pacto de suicídio se transformou nas instruções de Hedda para o suicídio romântico de Eilert. O triângulo Hedda-Eilert-Tesman era a princípio o centro da nova peça em construção, à qual Ibsen acrescentou o novo amor de Eilert, Thea, e o amigo interesseiro de Hedda, o juiz Brack, ambos servindo para dar relevo ao personagem de Hedda e equilibrar a estrutura da peça. A queima do "manuscrito perdido" foi uma das grandes invenções da elaboração da nova peça. Outras notas foram preservadas, e através delas podemos sentir o surgimento gradual do espetáculo, agora familiar, de Hedda, a mulher sem auto-estima que manipula o destino dos outros.
Luta
Ao escrever Seis Personagens à Procura de um Autor, Pirandello dramatizou a luta do dramaturgo para criar. Ele havia encontrado no jornal uma história que o intrigou, a de uma família que havia se separado, para se reunir anos depois em um encontro bizarro e involuntário entre o pai e a filha de sua mulher em um bordel. Ele decidiu tentar escrever uma peça a partir desse material, mas ela se recusou a tomar forma. Apesar disso, os personagens que criou assumiram tanta emoção que não o deixavam em paz.
Pirandello primeiro escreveu sobre essa luta em um conto intitulado Um Personagem à Procura de um Autor, no qual descreve a enteada assombrando o autor no seu gabinete. Depois veio a famosa obra, uma peça sobre uma peça que se recusa a tomar forma. Nela, seis personagens (o pai, a mãe, a enteada, o filho legítimo, e dois pequenos enteados) aparecem um dia num ensaio insistindo que o diretor e os atores os representem. Os artistas primeiro vêem os intrusos como uma piada de mau gosto, mas gradualmente ficam intrigados com a história e finalmente concordam em representá-la.
Quanto mais tentam, no entanto, mais desajeitada e embaraçosa a tarefa se torna, pois os pontos de vista dos personagens são muito contraditórios e o palco é muito restrito para permitir que a peça ganhe vida. Mas a emoção, sim, ganha vida e assume maior profundidade graças à extravagância da situação. Por isso essa peça sobre uma peça que tenta e não consegue tomar forma torna-se uma das grandes obras sérias do teatro moderno.
Relação
Uma relação produtiva entre personalidade e criação tem duas faces: ela tanto é instintiva quanto intensamente disciplinada. O lado instintivo significa que a criatividade depende da aceitação dos próprios pendores, ou, como disse Polônio, "ser fiel a si mesmo". Desastres podem acontecer se tentarmos imitar algum dramaturgo cuja personalidade seja distante da nossa. Suponha que Eugene O'Neill quisesse desesperadamente ser George S. Kaufman, o qual, por sua vez, desejasse ser Maxwell Anderson, que se torturasse por não ser Thornton Wilder, o qual, enquanto isso, estivesse lutando para escrever como Eugene O'Neill...
Não é preciso pedir desculpas por sermos quem somos. Se seu instinto lhe diz que uma situação envolvendo um homem que perde um manuscrito precioso é cômica, deixe que seja cômica. Pode parecer uma reação horrivelmente inumana, e seria, na vida real. Mas não estamos lidando com a vida real. Colocar um personagem no palco cria um distanciamento. Agora ele ocupa seu próprio mundo ficcional. Nesse novo contexto, coisas que de outra forma seriam horríveis ou desagradáveis podem parecer atraentes ou engraçadas. Portanto, um autor deve seguir suas próprias reações naturais.
É possível defender, como faz Samson Raphaelson em The Human Nature of Playwriting, que é obrigação do dramaturgo dar vazão a seus vícios secretos quando estiver criando uma peça. Vícios secretos são bem mais interessantes do que virtudes públicas. Se alguém for fascinado por manipulação e exploração, ou por assassinato e vingança, é melhor conter-se na vida real, mas na criação do drama pode ficar à vontade. Se alguém tende a ser frívolo, petulante e sem consideração, as pessoas terão tendência a achá-lo irritante quando chegar a hora de alguma coisa séria, mas no universo das peças ele pode se soltar.
Disciplina
Agora, o outro aspecto da relação personalidade-criação: disciplina. Agradar a si mesmo não é maneira de escrever uma peça. Pode ajudar a começar; pode reanimar um entusiasmo agonizante. Mas alguma outra coisa é necessária para escrever uma peça completa e instigante. Apesar da natureza sumamente pessoal da criatividade, ela requer que o uso da personalidade, de instintos e percepções, esteja de acordo com as exigências do meio. É uma questão de disciplina. Não importa o quão interessante você se achar, os outros terão de ser persuadidos.
Na verdade, a platéia não está interessada em você como personalidade e para ela o que importa é que a peça atraia o interesse. Fique certo de que os espectadores não vão tolerar nem um minuto de aborrecimento: se isto ocorrer, depois de dois ou três minutos vão começar a procurar onde fica a saída e aí sim vão lembrar quem escreveu, para da próxima vez se lembrar de não assistir...
Para mantê-los sentados e trazê-los de volta, é preciso reagir ao mundo à sua volta de uma maneira genuína; mas também é preciso elaborar a experiência dramática de um modo convincente para que a platéia responda genuinamente. Tudo isso requer honestidade, humildade e habilidade: honestidade para consigo mesmo, humildade diante dos personagens e da platéia, e habilidade frente às exigências do meio. Humildade e honestidade são questões pessoais. Mas a habilidade pode ser discutida, pois envolve disciplina e prática.
Paradoxo
A primeira coisa que você pode se perguntar é: “Sobre o que vou escrever?” Apesar de lógica, é a pergunta errada a fazer. Obviamente, terá de ser respondida, se é que algo vai ser escrito, mas não é a primeira a ser feita. É um paradoxo do tipo "o ovo ou a galinha". Pode-se pensar que a criação começa com a inspiração. Esta, no entanto, geralmente não surge do nada. Se ficarmos esperando o momento de ouro da inspiração, provavelmente ele nunca chegará. Mas, se canalizarmos pensamentos, energias e idéias para um trabalho constante com materiais dramáticos, a inspiração virá. Na realidade, encontramos o material trabalhando com ele.
Mas com qual material se vai trabalhar até encontrá-lo? O que experimentamos dia após dia, o que observamos, aquilo pelo que passamos, no que pensamos, e o que lembramos - tudo isso traz farto material. Nesse estágio, manter um caderno de anotações pode ajudar muito. Qualquer coisa pode entrar nele desde que desperte algum interesse; daí o nome "anotações". Esse caderno serve para pelo menos quatro bons propósitos: 1- é um registro de idéias; 2- encoraja o hábito da observação; 3- reforça a disciplina da escrita; e 4- fornece um espaço para experimentar, esboçar e testar material.
Milagre
O novelista Donald Windhan afirmou que uma pessoa escreve mais sobre "o que deveria conhecer" do que sobre o que conhece. Se uma coisa tem um efeito profundo sobre nós, queremos saber o por quê. Queremos explorar isso mais a fundo. Escrever é uma maneira de fazer isso. Não existem duas reações idênticas à mesma experiência e esse é o milagre da criatividade, a força vital da arte. Portanto, o modo pessoal de olhar as coisas importa muito. Se registrarmos os eventos básicos de um único dia, ontem, por exemplo, eles podem parecer desinteressantes, mas sempre são variados e existe a possibilidade de assumir um ponto de vista que desperte interesse. Eis uma espécie de registro de um dia na vida de uma estudante universitária:
Ao acordar, ela encontra a colega de quarto que passou a noite escrevendo um trabalho; ela gostaria que a colega se organizasse melhor para evitar tais maratonas de última hora; lembra-se então que deve entregar um trabalho sobre Henry James em dois dias e mal começou a escrevê-lo. Durante o café, ouve a história das aventuras de um amigo na noite anterior. Depois vai para a aula, onde aprende sobre os fatos que levaram à assinatura da Magna Carta; e depois vai à biblioteca procurar livros sobre Henry James. Amigos a convencem a tomar um café e passam uma hora discutindo política. A aula seguinte é sobre animais metamórficos. Após o almoço, ela vai para o quarto, planejando começar o trabalho. Termina adormecendo. Sonha que se transformou em uma rainha-inseto forçada pelas operárias a assinar um documento abrindo mão de seus poderes. Ao acordar, descobre que perdeu a aula da tarde. Então, decide examinar alguns capítulos de The American, de James. No jantar, se envolve numa discussão em torno de filmes e acaba indo ao cinema. O filme é uma história de aventura. Mais tarde, ela encontra por acaso um rapaz que admira, mas diz alguma coisa idiota e o deixa abruptamente. Volta para o quarto e começa a escrever o trabalho, mas não consegue se concentrar. Termina o dia conversando com a colega de quarto, que entregou o trabalho pela manhã...
Não há nada muito extraordinário nisso. Mesmo assim há possibilidades. Por exemplo, na ironia do ressentimento da moça contra a colega de quarto e seu próprio dia desorganizado, na angústia de ter dito a coisa errada ao rapaz, nos vislumbres de outras vidas nas conversas no refeitório, nas reflexões proporcionadas pelo livro de Henry James, no filme, nas aulas e no sonho. Tudo isso pode fornecer material se pudermos descobrir um ângulo interessante. E foi um dia comum.
Distanciamento
A importância do ponto de vista para tornar o material interessante torna importante também o distanciamento. Não se pode assumir um ponto de vista sobre alguma coisa sem se afastar um pouco. Por isso, a experiência direta e pessoal freqüentemente não é útil para o dramaturgo. Contar a história do rompimento com pai e mãe, do primeiro amor, da confusão de objetivos na vida ou da dor de alguma desilusão vão acordar o monstro da autojustificação, a menos que se tenha passado tempo suficiente para proporcionar um distanciamento. De outra forma, escrever se torna mera terapia. A escrita dramática requer imaginação para elevar a experiência acima do mundano até uma esfera que desafie e provoque. E isso exige um certo distanciamento – só assim o autor pode sentir as ironias, os significados, o humor ou a tragédia inerentes ao material. E aí pode pôr mãos à obra.
Ao fazer isso, é preciso considerar o peso e a totalidade do material. Alguns materiais vão parecer pesados, lentos, sérios, talvez cercados de uma aura ameaçadora; outros podem parecer leves, arejados, calorosos e amigáveis; outros ainda, nervosos e intermitentes. Qualquer que seja o sentimento, deve ser respeitado. Ele vai indicar a direção que se deve tomar. É claro que o material não vai despertar sentimento nenhum se não significar alguma coisa para o autor. Por outro lado, qualquer coisa que produza uma reação imediata e de certa força provavelmente tem um potencial que vale a pena considerar, pois com certeza tem significado.
Ferramenta
Esboçar material dramático é diferente de qualquer outra forma de escrever. Embora o dramaturgo realmente escreva uma peça, o ato de escrever é apenas um meio para alcançar o fim, que é a peça completa sendo encenada. O texto é na verdade uma ferramenta, um projeto dessa peça completa. Afinal, o dramaturgo está tentando controlar ações, e não palavras (embora estas possam ser ações). Muitos dos termos que usamos em relação ao drama trazem sugestões de construção, edificação, estruturação – como estrutura dramática, dramaturgia, roteiro, storyboard e autor teatral. Todos esses termos sugerem que uma peça é menos escrita do que montada, construída.
Um dramaturgo realmente escreve o diálogo de uma peça, mas só como uma indicação das interações entre os personagens. O autor teatral basicamente tenta controlar as linhas de energia trocadas entre os atores e a platéia no espaço tridimensional do teatro. Do início ao fim, peças são edificadas, construídas, estruturadas ou erigidas. A relação entre texto e peça é análoga àquela entre partitura e sinfonia. Como é mais fácil ler um texto teatral que uma partitura musical, às vezes perdemos isso de vista. De qualquer forma, isso nos leva a usar a palavra "compor" para o trabalho do dramaturgo.
Desafio
Visto assim, o desafio para um dramaturgo apresenta-se num espaço vazio (na forma de um palco) colocado diante de uma platéia e acessível por um período de tempo. É preciso se perguntar como preencher esse espaço ao longo desse tempo para melhor captar a imaginação dos espectadores. Espaço, tempo e imaginação: esses são os tijolos básicos. As palavras escritas são apenas indicações. É um desafio excitante. Aquelas pequenas letras que são postas sobre o papel podem um dia desabrochar em um mundo completo ocupado por personagens que vivem e respiram. Mesmo assim, são os atores que respiram; cenógrafos, carpinteiros, eletricistas, costureiras e outros preenchem seu mundo; e tudo acontece naquele local familiar de encontro chamado “teatro”. O próprio dramaturgo descreve esse evento em primeiro lugar.
O encontro descrito no texto pode adquirir proximidade e força inalcançáveis em qualquer outra forma de ficção. Tamanho poder instigador é negado ao romancista, cujo público leitor é vago e amorfo. Um romance assume sua vida mais plena apenas nas mentes de leitores distantes. A platéia do dramaturgo está reunida no momento do encontro, experienciando o mundo ficcional no instante em que acontece. Essa é a emoção do drama.
No entanto, essa emoção tem um outro lado. O dramaturgo tem muito menos controle sobre a experiência que cria do que o romancista. Se tiver a sorte de conseguir uma produção, outros estarão envolvidos no processo de criação. Além disso, no processo de composição da peça, o dramaturgo precisa confiar em conjecturas, pois não pode ver os resultados das decisões. Ao contrário do romancista, que pode observar seu trabalho no meio pretendido à medida que escreve, ou do pintor, que pode dar um passo atrás e julgar o efeito de sua pintura a qualquer momento, o dramaturgo precisa escrever “com o teatro na cabeça”, para usar a frase de Kenneth Thorpe Rowe. Ele põe no papel descrições, diálogos e instruções que acredita poderem funcionar. Compor drama é um trabalho isolado e incerto, e o dramaturgo pode apenas adivinhar o resultado final.
Bondade
Isso também significa que o dramaturgo deve "depender da bondade de estranhos", tanto quanto Blanche DuBois. O compositor pode estar razoavelmente seguro de que os músicos irão executar as notas e os intervalos conforme as instruções. O dramaturgo pode estar seguro apenas de que os atores dirão suas palavras - mais ou menos. Ele não pode ter certeza de que a atmosfera estará correta, as tensões em foco, os atores se comportando adequadamente, o cenário dando a aparência certa, ou mesmo de que o diretor esteja entendendo a peça.
Portanto, embora a composição de uma peça possa ser solitária, o dramaturgo de repente encontra uma multidão a pressioná-lo, todos se acotovelando para apresentar novas idéias. Nessa confusão entre discussão, desenhos e ensaios, a peça pode se perder. Homens de jaleco branco podem vir para levar o dramaturgo embora...
Se ele puder evitar os homens de branco e sobreviver ao caos, pode descobrir que a peça resultante afinal funciona, e pode até assumir valores não previstos. O autor pode se descobrir pensando “eu escrevi isso?”, não necessariamente com aborrecimento. Mas o oposto também pode acontecer. A abertura de uma peça pode tornar-se o clímax de um longo pesadelo, e o encerramento, verdadeiramente um alívio. Admitindo que o texto e os artistas sejam pelo menos decentes, essa agonia pode ser evitada pelo reconhecimento, desde o início, do que significa "compor" uma peça.
Tensões
Compor consiste em controlar tensões, enfocando-as, alterando-as, vivificando-as e canalizando-as. O diálogo é apenas um sintoma dessas tensões. Na verdade, a parte mais importante do trabalho do dramaturgo não é escrever o diálogo, e sim mapear energias através de uma ação que possa captar o interesse da platéia. As palavras faladas são apenas um tipo de ação que a energia pode assumir. Forças externas – objetos, atmosfera, ritmo, tempo, efeitos visuais – também podem gerar ação. Compor uma peça requer que se mantenha tudo isso em mente.
A primeira tensão, a mais fundamental, é estabelecida entre espetáculo e espectador. A peça luta fundamentalmente para entreter. O significado etimológico da palavra “entreter” é “ter entre”, o que sugere que a principal tarefa do dramaturgo é manter a audiência. Se puder fazer isso, a peça "funciona", como dizem, e ele não precisa prender-se a nenhuma outra regra. Ninguém pode dizer exatamente como fazer isso, mas fazê-lo envolve, sem dúvida, extrair as tensões disponíveis na história, nos personagens, no seu mundo, no meio (o palco) – onde quer que possam ser encontradas – e colocá-las em foco.
Quanto mais familiarizado o autor estiver com o drama e seus meios, mais rapidamente encontrará tensões úteis. Uma tensão requer polaridade, opostos que estabeleçam linhas de energia. Dentro da história, amor, ódio, medo, ansiedade, inveja, assombro, crueldade podem cada um estabelecer uma polaridade entre personagens ou entre um personagem e as circunstâncias. O palco, como veremos, é um meio que possui um conjunto próprio de polaridades, tais como cena versus fora de cena. Não é uma questão de “quanto mais melhor”. O dramaturgo não quer usar todas as tensões disponíveis e sim isolar e definir tensões para canalizar energia e concentrar a atenção.
Naturalmente, isso também requer alterar as tensões, modificando-as à medida que a peça avança, para manter a atenção. Se o dramaturgo está alerta para as polaridades disponíveis no material e no meio, ele pode traçar tensões significativas e controlá-las de modo mais eficaz. A peça resultante será genuinamente composta – não apenas escrita – e terá mais chances frente às vicissitudes do processo de produção.
Coragem
“Coragem de criar”. Essa expressão foi tirada do título de um livro inspirador e profundo de Rollo May. O autor argumenta que a coragem é a virtude mais básica, pois libera as outras. Não se pode amar sem coragem, nem ser caridoso, ter esperança, fé, ser paciente. Todos esses são atos de coragem. Coragem é a afirmação do eu, sem qualquer garantia de recompensa. É um salto rumo ao desconhecido. May identifica quatro tipos de coragem: física, moral, social e criativa. Dessas, declara, a última é a mais difícil e talvez por isso a mais importante.
O ato criativo é corajoso. Requer o comprometimento por inteiro do eu sem qualquer sinal objetivo e confiável de que a tentativa irá funcionar ou valer a pena, mesmo que vagamente. É uma perspectiva assustadora. Pode-se muito bem ser “expulso do palco pelas gargalhadas”. O mundo está cheio de pessoas que têm peças maravilhosamente perfeitas na cabeça. Nos coquetéis, uma dessas pessoas pode regalar novos conhecidos com idéias saborosas para uma peça, apenas alguns petiscos tentadores, e depois ir para casa convencida de que esse lampejo de uma mente criativa despertou admiração. Os anos passam, e podemos muito bem ouvir a mesma história da mesma pessoa em outro coquetel. A peça nunca foi escrita. O medo impediu.
É mais fácil conversar casualmente sobre uma idéia do que realizá-la, especialmente porque os resultados podem não corresponder ao previsto. Certamente, em 99% dos casos, o medo se justifica. Mesmo assim, seria mais saudável parar de falar e começar a trabalhar – ou desistir. Não fazer nem uma coisa nem outra cria um sentimento de vazio, incompletude, e até desespero. Chega a ser um ato de covardia.
Decepção
Não há maneira de testar uma idéia a não ser exibindo-a. Na maioria das vezes isso causa decepção, e é quase certamente assustador, mas as boas idéias não vêm de outra forma. Mesmo o dramaturgo mais amadurecido precisa repetir esse ato de coragem várias vezes, pois cada nova peça apresenta um novo conjunto de desafios e ameaças de fracasso.
A composição dramática exige uma coragem maior que outras formas de arte. O dramaturgo sempre trabalha em uma dimensão afastada da obra que está criando. A folha de papel em que escreve não tem nenhuma semelhança com o palco, que será o meio verdadeiro. As palavras no papel são meras indicações do que acontecerá muito depois, se acontecer, entre um grupo de atores. Uma produção final vai exigir um total comprometimento interior e uma compreensão sensível por parte de vários outros artistas. Vai exigir também sorte, porque as coisas no palco nunca correspondem exatamente à visão inicial. O acaso pode revelar fraquezas e potenciais nunca imaginados até o texto cair nas mãos do diretor, cenógrafos, atores e outros. Isso pode causar uma paranóia no dramaturgo e convencê-lo de que todos, até a natureza, conspiram contra ele.
Conseqüentemente a platéia e, com certeza, os críticos tornam-se co-conspiradores. A relação entre o dramaturgo e os outros apresenta uma certa qualidade de antagonismo. Fundamentalmente, no entanto, deve ser uma relação de compreensão e comprometimento mútuos: compreensão e comprometimento quanto ao que é mais crucial na experiência dramática preparada conjuntamente por todos. Todos compartilham um propósito. Isso também implica coragem.
Dúvida
Essa coragem deve ser temperada com um saudável toque de dúvida. Nada disso significa que a coragem de criar exija uma absoluta certeza de si. Pode-se errar. Como afirma Rollo May, “São perigosas as pessoas que afirmam estar completamente convencidas de que sua posição é a única certa. Tal convicção é a essência não só do dogmatismo, como também de seu primo mais destrutivo, o fanatismo. Impede que a pessoa aprenda novas verdades”. E um dramaturgo sempre pode aprender uma nova verdade, mesmo que seja (talvez especialmente se for) sobre seu próprio trabalho.
Vista assim, a criatividade assume valor como uma faculdade essencial à nossa busca mútua pela verdade. A aplicação da criatividade por artistas e platéias pode produzir percepções inalcançáveis de outra forma. Esse ideal de uma visão compartilhada pode incentivar o artista solitário a trabalhar. Criar uma peça é mais que um ato de satisfação do ego (embora com certeza o seja também). É um ato compartilhado, de generosidade, que alguém executa, em última instância, por amor aos outros. E isso torna a criatividade importante para a sociedade em geral, a qual a exige para se reexaminar e seguir em frente.
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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
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