quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

‘Lear’ pode ser encenado?

Peter Brook fala a Peter Roberts durante os ensaios de Rei Lear em Stratford-upon-Avon, 1962. Artigo extraído do livro O Ponto de Mudança (Editora Civilização Brasileira, 1994, tradução de Antônio Mercado e Elena Gaidano)

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Roberts: O ‘Lear’ de Shakespeare não pode ser representado, disse Charles Lamb. “Ver Lear no palco é ver um velho de bengala, trôpego, sendo jogado porta a fora por suas filhas numa noite chuvosa!”. Você obviamente discorda disso, caso contrário não estaria dirigindo ‘Lear’. Mas não acha que existe pelo menos alguma verdade nas palavras de Lamb?

Brook: Não, absolutamente nenhuma. Lamb se referia aos espetáculos de seu tempo e ao modo como as peças eram montadas naquela época. Quem disse que Shakespeare estabeleceu que você devia ver um pobre velho trôpego com sua bengala na tempestade? Acho que isso é pura bobagem.
Eu diria que Rei Lear é provavelmente a maior peça de Shakespeare e por isso mesmo a mais difícil. A todo instante constatamos uma terrível verdade: é mais difícil montar obras-primas do que qualquer outra coisa. Estávamos nos queixando disso outro dia, no ensaio, e James Booth, que havia levado uma corda de pular, sugeriu: “Não seria gozado se fizéssemos a cena toda pulando corda?” E eu respondi: “A tragédia de estar montando uma peça tão maravilhosa é que não se pode fazer esse tipo de coisa. Somente quando se tem absoluta convicção de que certos momentos foram mal escritos ou são maçantes pode-se tomar a liberdade de inventar cordas, pular e coisas assim”.
Você sabe que eu já fiz uma montagem de Rei João (1), há alguns anos, onde havia um cine-jornal medieval e um homem que era o equivalente do cineasta oficial do reino seguindo o Rei por toda a parte. Desgraçadamente, não se pode fazer isso numa obra-prima. Esta só pode ser feita de um jeito: do jeito certo. E por isso é muito difícil descobri-lo.

Descobertas
Agora estamos reconhecendo cada vez mais que as últimas peças de Shakespeare possuem não apenas coisas fantásticas a serem descobertas, mas que isso vale também para os papéis menores. Lear, por exemplo, tem sido muito prejudicada e mal feita porque as pessoas não perceberam o fato de não ser uma peça sobre o rei e os outros, como, sob certo ponto de vista, Hamlet é sobre Hamlet. Todas as outras personagens são essenciais, papéis maravilhosos, mas todos relacionados a Hamlet. Hamlet é o pivô de todas as ações da peça, ao passo que em Lear a estrutura total da peça é a somatória de oito ou dez linhas narrativas independentes e talvez igualmente importantes.
As linhas que começam em toda a subtrama sobre Gloucester acabam por tornar-se, quando se entrelaçam, a peça completa. A conclusão é que temos que encarar a evidência de que a peça, tal como escrita por Shakespeare, só pode ser verdadeiramente revelada no palco se tiver não apenas um desempenho magistral do papel de Lear, mas também interpretações igualmente luminosas o tempo todo. E acho que é nesse ponto – muito mais do que no problema de encenação da tempestade – que residem o verdadeiro desafio e a real dificuldade de Lear.

Cortes
Examinando os cortes tradicionais (você sabe que aqui no teatro (2) há livros com todos os cortes feitos ao longo dos anos), foi interessante constatar que, embora muitos deles tenham razão de ser, todos levam à perda de alguma coisa. Os cortes impedem que os atores nos papéis menores tenham material para construir personagens tridimensionais, o que ocasiona, no fim das contas, a destruição da textura real da peça.
Descobri que existem inúmeras passagens onde, restaurando-se os cortes tradicionais, surge de repente todo o fascínio da peça. Nota-se, por exemplo, que na maioria das vezes em que a peça é feita em versão cortada, Goneril e Regan ficam indistintas, como duas mulheres idênticas, e seus maridos, Cornwall e Albany, não passam de dois companheiros. No entanto, a diferença entre eles é espantosa.

Relação
A relação Goneril-Regan, por exemplo, é idêntica às que Jean Genet estabelece em As criadas – Goneril é sempre dominadora e Regan, submissa e frágil. Goneril usa botas e Regan usa saia. A masculinidade de Goneril incita continuamente Regan, cuja natureza retraída e branda é totalmente oposta à inflexibilidade férrea de sua irmã. Esta relação tem um desenvolvimento muito interessante na segunda parte da peça (que estou dividindo em duas partes) porque vemos que os reveses e problemas tornam Goneril cada vez mais dominadora e empedernida.
Regan, por outro lado, perde-se por completo e no fim rasteja ignominiosamente para fora do palco com veneno no estômago, como uma aranha esmagada, enquanto Goneril sai de cena desafiadoramente. Existe também uma tremenda diferença entre Albany, com toda a sua fraqueza, tolerância e confusão, e Cornwall – impetuoso, irascível e sádico. Todo esse material interessante das personagens vem à luz quando não se corta.

Problema
O problema básico, sobre o qual tenho refletido durante este ano que passei preparando a encenação, é se convém ou não situar o espetáculo em determinado tempo e lugar. Não se pode dizer que Lear é atemporal, o que ficou provado pela interessante porém mal-sucedida experiência de Noguchi no Palace, em 1955. Em seu artigo no programa desse espetáculo, escreveia George Devine: “Estamos tentando mostrar, com figurinos e cenários atemporais, a atemporalidade da peça” – uma apologia que em verdade não chegava ao âmago da questão. Embora seja atemporal em certo sentido (o que é uma espécie de leitura crítica), Lear de fato transcorre em circunstâncias vastas, violentas e portanto muito realistas, com atores de carne e osso envolvidos em situações fortes, cruéis e realistas.
O problema-chave é: como estão vestidos, quais são seus trajes? Observando as evidências da peça, chega-se a duas necessidades contraditórias: a menos que seja transformada em ficção científica, a peça tem que ser situada no passado; no entanto, não pode ocorrer em nenhum período posterior a William, o Conquistador. Embora eu já tenha esquecido há algum tempo os reis e rainhas da Inglaterra, lembro-me vagamente de sua ordem e sei que 90% de nossos espectadores não ignoram que, entre Henrique IV e alguém depois, nunca houve nenhum Rei Lear.

Ferocidade
Por isso, há algo que fere nosso senso de verossimilhança numa montagem elizabetana de Lear, especialmente porque existe outro elemento forte na peça sua natureza pré-cristã. A ferocidade e horror da peça são destruídos quando tentamos transplantá-la para a cristandade. A imagística do texto os deuses freqüentemente invocados são pagãos.
A sociedade de Lear é primitiva. Por outro lado, é claro que não é primitiva do tipo Stonehenge (3), porque se recuarmos até lá cairemos em outra falsidade, já que em Lear a sociedade é, ao mesmo tempo, muito sofisticada. Não é uma tribo de gente que vive ao relento, cercada de monolitos cerimoniais. Recuar a peça até esse período é perder a essência de sua crueldade - a crueldade de jogar o homem para fora de sua casa. As pessoas que moram em casas sentem a diferença entre os fenômenos naturais e o sólido mundo feito pelos homens, do qual lear é expulso. Se o rei costuma dormir ao relento, a peça desaba. Além disso, a linguagem da peça não é como a daquele livro de William Golding em que as pessoas só dizem “Og” e “Gug”. É linguagem típica da alta renascença.

Renascentista
Parece-me então que o problema consiste em criar uma sociedade pré-cristã que, para o público atual, pareça pertencer a um período remoto da História. Ao mesmo tempo, esse período tem que ser um momento da História onde essa sociedade esteja num estágio de desenvolvimento tão elevado quanto a mexicana antes de Cortez ou o auge do Egito antigo. Assim, Lear é bárbaro e renascentista, pertence a esses dois períodos contraditórios.
Voltamos então ao moderno, à escola atemporal. Não porque o tema da peça seja sobre o rei, um louco e filhas cruéis. Em certo sentido, paira tão acima de qualquer cenário histórico que só podemos compará-lo a uma obra moderna, como as de Beckett. Quem sabe qual é a época de Esperando Godot? Está acontecendo hoje, embora tenha seu próprio tempo na realidade. Isso é também essencial em Lear, porque para mim Lear é o exemplo primal do Teatro do Absurdo, do qual tudo deriva na boa dramaturgia moderna.

Simplificação
Nesse sentido, o objetivo do cenário é atingir um grau de simplificação que faça com que as coisas importantes apareçam mais, pois a peça já é bastante difícil sem o acréscimo do eterno problema causado por qualquer forma de decoração romântica. Para que a decoração numa peça ruim? Para isso mesmo – para decorá-la. Em Lear, ao contrário, temos que remover tudo que pudermos.
Com Keegan Smith, chefe de idumentária em Stratford, elaboramos figurinos que trazem apenas o mínimo de definição necessária a cada personagem. O próprio Rei Lear, por exemplo, tem que usar um manto porque acho inevitável. O ator que faz Lear precisa de algumas coisas. Mesmo se o despojarmos de tudo o mais, ele terá que entrar com algo que cubra suas pernas, para evidenciar uma certa majestade da personagem. Portanto, só ele usa manto, ninguém mais. Os outros não precisam de manto. Assim, no começo da peça, ele usa um manto riquíssimo e depois veste uma roupa muito simples feita de couro.

Segredo
Simplificamos todos os outros trajes para que o essencial permanecesse. Quando você vê 30 ou 40 figurinos igualmente elaborados num espetáculo de Shakespeare, seus olhos se confundem e fica difícil entender a história. Aqui fizemos figurinos elaborados apenas para oito ou nove personagens centrais. É interessante ouvir as pessoas comentarem: “Como a peça ficou clara!” – sem perceber que o segredo está nos figurinos.
Também estamos simplificando ao máximo o cenário. Meu objetivo real é tentar criar as condições que nos permitam, no teatro moderno, acompanhar o que Shakespeare faz no texto – ou seja, colocar lado a lado estilos e convenções completamente diferentes, sem que o anacronismo cause qualquer constrangimento. É preciso aceitar os próprios anacronismos como elementos de força dessa forma de teatro, indicadores dos métodos que temos que encontrar para encená-la.

Robert: Qual é o papel da música e dos efeitos sonoros nesta produção?

Brook: Acho que não há lugar para música em Lear. Quanto aos efeitos sonoros, o grande problema é a tempestade. Para encená-la realisticamente, você tem que ser radical como Reinhardt (4). Se tentar o extremo oposto, fazendo a tempestade ocorrer na imaginação da platéia, não vai funcionar, porque a essência do dramático é o conflito e o drama da tempestade é o conflito de Lear com ela. Lear precisa lutar contra a muralha da tempestade, o que é impossível se a tempestade for apenas sugerida intelectualmente – como, por exemplo, em letreiros suspensos com dizeres: “Eis a tempestade”. Isto seria delegar o conflito com a tempestade ao intelecto do público, quando deve ter também uma carga emocional.
Depois de trabalhar durante meses nesta questão, de repente nos ocorreu que uma “folha de trovoada” à vista seria um elemento muito forte no palco. Qualquer pessoa que já tenha visto um contra-regra sacudindo uma dessas enormes chapas de metal escuro sabe que as vibrações dessa “folha de trovoada” tem uma qualidade curiosamente perturbadora. Ficamos transtornados pelo barulho, é claro, mas também pelo fato de vê-la vibrando. As “folhas de trovoada” à vista nesta produção de Lear dão ao rei um sólido elemento de conflito e ao mesmo tempo evitam uma encenação realista da tempestade, que nunca funciona realmente.

Roberts: Com o passar dos anos, cada vez mais você tem feito a cenografia dos espetáculos, como agora com este Rei Lear. Por quê?

Brook: Embora eu adore trabalhar com cenógrafos, acho que é tremendamente importante, particularmente em Shakespeare, que eu mesmo conceba a cenografia. Você nunca sabe se as suas idéias e as do cenógrafo estão se desenvolvendo do mesmo modo. Chega um momento da peça que você não sabe resolver. Aí o cenógrafo encontra uma solução que parece dar certo e você tem que aceitar, fazendo com que sua própria reflexão sobre a tal cena fique imobilizada. Se o cenógrafo é você mesmo, o resultado é que durante um longo período sua imagística e sua montagem evoluem conjuntamente.
Aliás, duvido que exista algum cenógrafo que tenha paciência de trabalhar comigo. Depois de um ano trabalhando neste Rei Lear, joguei fora todos os cenários que havia criado, quando a produção foi adiada. Mas quando o novo cenário custou cerca de 5 mil libras a menos, ninguém se importou.

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1 - King John, de Shakespeare.
2 - O autor refere-se ao teatro da Royal Shakespeare Company, em Stratford-upon-Avon.
3 - Stonehenge - monumento circulares de monolitos em Salisbury Hills, Inglaterra, provavelmente feitos por uma sociedade pré-histórioca do período neolítico.
4 - Max Reinhardt, diretor alemão da primeira metade deste século, famoso por suas montagens espetaculares.


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