quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Lee Strasberg:
lições de um mestre

Por muitos considerado o mais brilhante seguidor dos preceitos de Stanislávski, criador do famoso Método, Lee Strasberg (1901-1982) foi ator, encenador, teórico e professor - dentre seus alunos constam
nomes como Marlon Brando, Geraline Page, Paul Newman, Marilyn Monroe, Jane Fonda, James Dean, Anne Bancroft, Al Pacino e Dustin Hoffman. No presente artigo, reproduzimos os ensinamentos do mestre
na abordagem de um conto (You were perfectly fine, de Dorothy Parker), de uma peça curta (O urso, de Tchecov) e de uma cena (a “cena da poção”), de Romeu e Julieta, de Shakespeare.


* * *

Durante mais de 50 anos de atividade como ator, diretor e professor, descobri que se o ator enfocar uma cena intelectualmente, isso raramente o levará a resultados no palco. Continuará a pensar uma coisa e a fazer outra. Por outro lado, quando um ator examina uma cena com a intenção de descobrir a seqüência de ações que ela contém - quais são as “circunstâncias dadas” que deve preparar antes de chegar a cena? O que estaria fazendo ali como resultado daquelas condições se a cena, como está escrita, nunca acontecesse? etc. – inevitavelmente será levado em direção das ações lógicas, do comportamento e do ajuste de seu personagem. Se ele sabe criar as experiências sensoriais e emocionais apropriadas que motivam e acompanham o comportamento do personagem, estará então cumprindo a principal tarefa do ator: atuar – isto é, fazer alguma coisa, seja ela psicológica ou fisiológica. Deve utilizar completamente suas capacidades e equipamento para criar um ser humano no palco, atuando dentro das condições estabelecidas pelo autor.
Através de minhas experiências, atestei também que quando os atores estão trabalhando em contos cômicos de Tchecov, sempre objetivam fazer graça. Pergunto então: “Quando leu a cena, ela era engraçada?” Invariavelmente respondem que sim. Explico a eles que o autor realizou o trabalho de criar uma situação que é engraçada. O ator deve apenas criar o mais completamente possível a realidade daquela situação. Ele não precisa ser engraçado - mas o resultado será.

Necessidade
Existe um conto de Dorothy Parker, You were perfectly fine, que oferece um exemplo excelente da necessidade de o ator lidar com a simples realidade sensorial, deixando o desenvolvimento cômico para o autor.
A cena mostra um personagem que acorda de ressaca, no meio da tarde, depois de passar a noite na cidade, sem lembrar-se de nada do que aconteceu na noite anterior. Aparece então a garota com quem passara a noite. Não existe qualquer descrição de como o homem reage a ela, mas ele pergunta se ocorreu alguma coisa na noite anterior. Ela responde que ele se comportara perfeitamente bem, que nada acontecera – exceto que ele quase entrara numa briga, que derramara caldo de mariscos nas costas de alguém, que pensara que o garçon fosse seu irmão, e que quando finalmente saíram do local onde estavam, ele escorregara no gelo e caíra, e que depois a levara em casa de táxi, pedindo ao motorista que rodasse pelo parque durante um longo tempo.
Ela está certa de que ele se recorda do último episódio, que fora maravilhoso. Sem saber do que se trata e embaraçado por ter que admitir que não se lembra, ele finge que se recorda. Fica então sabendo que lhe declarara amor eterno e que a pedira em casamento. Quando descobre isso, diz simplesmente: “Preciso de uma bebida”.

Realidade
Quando esta cena é representada com indicações simples, temos a atividade do homem acordando ou a sugestão da ressaca. A garota chega e tem que tentar ocupar-se sem ter na realidade nada para fazer. A cena às vezes é divertida, mas nunca engraçada. Mas se o ator consegue criar a realidade da situação – o modo com que uma pessoa acorda de um sono profundo e ainda por cima, de ressaca; sentir a dor física, que descobre depois ter sido causada pela queda no gelo, bem como o estupor do esquecimento; se conseguir tornar significativos cada um dos embaraços descritos pela mulher, concentrando-se na identidade do indivíduo que foi o alvo da brincadeira; se criar com credibilidade o choque interior de surpreender-se numa situação da qual não sabe sair – então os resultados serão hilariantes.
Isso deve contrastar com a alegria da mulher ao narrar os incidentes; para ela, são os elos da cadeia que levam à conclusão feliz de que vão casar-se. Quanto mais ela se comportar como se fosse a dona da casa e tivesse motivos e direitos de auxiliá-lo, mais a cena levará a uma conclusão surpreendente. Naturalmente, o diretor pode encontrar alguma visão social incomum ou algum artifício teatral extraordinário; mas as realidades básicas que já descrevemos ainda teriam que ser preenchidas, se a idéia ou a interpretação do diretor quer tornar-se visível no palco.

Ilustração
Já virou moda afirmar que nossa visão diretorial é válida para peças atuais, porque cria um grau adicional de realidade e intensidade que não existe na capacidade do ator que não possua treinamento pelo Método. Em oposição, muitas pessoas acham que é necessária uma aproximação diferente para peças cômicas ou para os clássicos. Uma ilustração de como o gênero comédia pode ser estudado pelos nossos métodos, pode ser encontrada na farsa O urso, de Tchecov.
A peça começa com uma mulher, toda de preto, sentada diante de um ícone religioso. Está de luto pela morte do marido, que a traía quando vivo; mas ela lamenta sua morte e retira-se do mundo para provar o que deve ser uma devoção verdadeira. Ouve-se um burburinho no corredor. O velho criado tenta impedir a entrada de um estranho, mas este invade assim mesmo a intimidade da viúva. O estranho explica que o marido dela lhe devia um dinheiro, de que ele agora necessita para pagar a hipoteca de suas propriedades. Ele tentara arranjar o dinheiro em outro lugar mas não conseguira. Está chegando de uma viagem que durou a noite inteira, desesperado e lamentando ter que pedir o dinheiro. Ela concorda em pagar-lhe, mas precisa aguardar a chegada do inspetor, pela manhã. O homem discute que precisa do dinheiro naquele momento. Procede de maneira rude e grosseira, o que a obriga a abandonar o aposento. Expressa sua frustração mas ao mesmo tempo está impressionado com a beleza da mulher e por seu comportamento admirável em relação a um marido que não o merecia. Mesmo assim, diz a si mesmo que não pode permitir ser persuadido pela astúcia de uma mulher.
Ela retorna e descobre que ele está inflexível; vai ficar ali até receber o dinheiro e não será dissuadido. A discussão cresce e ela finalmente o desafia para um duelo. Ele está furioso, mas ao mesmo tempo impressionado, pois ela confessa que nunca participou de um duelo e pede a ele que demonstre como se usa uma pistola. Ele fica deslumbrado com sua coragem e beleza e lhe declara que não vai usar a pistola. Ela pode usar a sua, mas ele ficará imóvel. Ela se sente irritada com tanta obstinação, mas ele se atira a seus pés e lhe declara seu amor.

Desordem
Quando atores vão estudar esta cena – vi isso muitas vezes – invariavelmente estão preparados para a discussão. A cena acontece desordenadamente; finalmente, argumentam, supõe-se que o homem seja um “urso” e a situação desenvolve-se de uma maneira divertida, quase que um vaudeville. No entanto, quando se estuda a cena dando ênfase às realidades físicas e sensoriais, torna-se mais engraçada e interessante. Encorajo os atores a trabalhar no que aconteceu antes da cena começar.
Com a atriz, tento criar a realidade do modo como uma pessoa se comportaria se estivesse atravessando o processo de luto sugerido pelo autor. Para criar a sensação de estar sentada imóvel por longas horas, faço uma coisa simples, como forçar a atriz a sentar-se durante quinze minutos sem se mover, concentrada na fotografia do marido e em alguma experiência sensorial e emocional comparável à realidade que sente em relação ao marido.
A atriz desenvolve o ritmo da palavra, movimentos e expressão necessários que seriam os resultados das circunstâncias descritas pelo autor. Costumo encorajar a atriz a tentar manter esta atitude em lugar de antecipar a disputa. Assim, ela apresenta ao estranho a imagem da esposa fiel e devotada, mas gradualmente revela seus sentimentos revoltosos para com o procedimento escandaloso do marido.

Desespero
Sigo a mesma linha de preparação com o ator. É descrito que viajou a maior parte da noite e que tentou dormir um pouco, recostado próximo a um barril em uma estalagem. Nós o ajudamos a criar a realidade sensorial que o levaria tanto a um cansaço físico, como a uma perturbação mental. Ele precisa criar um sentido de desespero. Embora seu comportamento seja rude, tinha sido soldado e oficial. Eu o aconselho a não antecipar o enredo da peça. Portanto, depois que entra no quarto, a tendência natural do ator é começar a falar. Tinha decorado o discurso que faria à viúva e já está pronto para despejá-lo. Mas ele acabou de criar uma comoção; o quarto está às escuras e a única luz ali existente é a lâmpada sagrada em frente ao ícone. A mulher está vestida de preto; seu rosto está coberto por um véu. Para estimular a percepção do ator da realidade da situação, freqüentemente escondo a atriz ou a faço ficar fora de cena quando o ator entra. Desse modo, ele tem que impressionar-se com o aposento e sua estranha atmosfera e não consegue estar bem certo do objeto que se encontra na cadeira.

Inesperado
Isto leva a um comportamento mais inesperado e impressionante que sua entrada precipitada. Sente respeito para com o ícone e não está seguro quanto a quem está se dirigindo. Ela não dá mostras de ter sido perturbada. Decente e graciosamente, promete pagar a soma devida. Ele reage alegremente, mas logo a seguir fica decepcionado quando ela lhe revela a impossibilidade de cumprir imediatamente o prometido. Preocupada apenas com sua própria concentração interna e sem qualquer desejo de criar uma cena, ela logicamente insiste que não possui dinheiro naquele momento; mas que o entregaria no dia seguinte. Cheia de dor, expressa alguns de seus sentimentos em relação ao marido.
Numa ocasião, durante um ensaio, o ator que fazia o homem não conseguiu suportar a visão daquela mulher em tal estado de tristeza e, assim, emprestou estranho sentimentalismo ao personagem. Ao mesmo tempo, seu desespero financeiro levou-o a comportar-se com rudeza e desrespeito. A cena já estava preparada, portanto, para uma situação cômica bastante estranha, que contém em si mesma as possibilidades da conclusão derradeira.

Ênfase
Essa ênfase dada à realidade física, lógica e sensorial continua através da cena. Quando a mulher deixa o aposento, o homem fica frustrado e desesperado. Ao mesmo tempo, está cansado e afunda-se numa cadeira, tentando não cair no sono. Quando a mulher retorna, ele tem que lutar para manter-se de pé. Ainda tem o comportamento de um antigo oficial de cavalaria, mas seu desespero o leva ao comportamento rude exigido pela situação.
Na cena em que demonstra o uso da pistola para o duelo, a lógica física, ditada pela proximidade dos dois, excita sua crescente paixão. O humor aumenta pela necessidade de colocar os braços dela na posição apropriada para o duelo, sem tocar as áreas mais sugestivas de seu corpo. Permite-se um desenvolvimento segundo a estrutura concebida pelo autor, com os atores preenchendo os dados físicos, sensoriais e emocionais que ajudam a dar vida à situação. O autor não deseja que os intérpretes apenas representem a briga e o comportamento grosseiro; devem criar a realidade de cada momento que motivará as falas. Dirão os diálogos tirando as palavras não da estrutura do enredo, mas do comportamento imediato dos personagens. Assim, a realidade permitirá que a comédia se expresse.

Poção
Um exemplo de cena clássica que ganha incomensuravelmente com esse tratamento é a da poção de Julieta, em Romeu e Julieta, de Shakespeare. Essa é uma das cenas favoritas de todas as atrizes, embora seja impressionante quão pouca lógica e significado possam apoiar-se nela.
A própria referência “cena da poção” já traz intrínseco o enfoque convencional com que geralmente a abordam. Sempre foi representada como se a atriz estivesse cometendo suicídio. A última parte da peça torna-se anti-climática; Julieta morre, ou parece ter morrido, muito antes da cena na tumba. Mas se examinada mais cuidadosamente, descobrimos que embora a cena contenha elementos da confusão e do terror crescentes de uma jovem obrigada a representar esse ato sombrio sozinha, o enfoque convencional não sugere com propriedade os outros elementos da situação. É claro que Julieta não possui a menor intenção de suicidar-se; está embarcando em um ato perigoso e excitante, através do qual pretende juntar-se a seu amado. Ela está mais próxima de uma garota que está fugindo com o namorado do que de uma moça cujo comportamento demonstre que vai tomar veneno. O sentimento que motiva Julieta é o da excitação e do perigo.

Aventura
Julieta não pode dividir sua excitação com a Ama, que não conhece seu plano. Mas pode esperar que esta a deixe sozinha. Quando ela sai, Julieta fica ao mesmo tempo aliviada e exaltada. Pode continuar a execução de sua aventura emocionante. É uma jovem a caminho do encontro com seu apaixonado. Quando fica sozinha, não tem a menor idéia se irá ver sua Ama novamente. Quando se lamenta e expressa “um medo frio e sufocante”, Julieta só está pensando na separação de sua família e no banimento de seu amado. Ainda não se trata do medo da morte, mas do medo natural que surge diante de qualquer dado novo e perigoso.
Quando resolve chamar a Ama de volta, geralmente o faz em um tom que indica que a atriz conhece o resto da peça e que sabe que a Ama não voltará. Se a atriz a chama com uma voz suficientemente alta, temendo que a Ama não possa ouvi-la, isso dará à platéia uma sensação de realidade. Vai parecer que a Ama poderá retornar a qualquer momento.

Motivação
Julieta pega o frasco – o meio pelo qual completará sua aventura – em seu esconderijo. Quando está pronta para tomar a poção e começa a imaginar as possíveis conseqüências, não está pensando em morrer, mas no acordar dentro da tumba, com os ossos de seus antepassados em torno dela. É esse pensamento que a alarma. O clímax de sua imaginação é quando repentinamente julga ver Teobaldo. A atriz é geralmente obrigada a ficar de pé ou ajoelhada no palco, encarando o espaço. Alguma motivação deve ser utilizada para que pareça possível à jovem imaginar essa aparição. Ela luta com essa crença e chama: “Fique, Teobaldo, fique!”. Então Julieta percebe que não existe tal aparição e que seus temores, portanto, são infundados; toma a poção da maneira mais lógica. Percebe que deixou sua imaginação carregá-la e retornando ao ponto de partida, toma a bebida. Para sua execução adequada, esta cena vai necessitar do auxílio da memória emocional.
Verdi, que foi um dramaturgo da música, por certo acompanharia esta cena com uma Ave-Maria. Não existe qualquer motivo para que a atriz não possa, no início da cena, investigar o comportamento normal de uma moça que vai deitar-se e diz suas orações. Na realidade, isto pode auxiliá-la a fazer a transição para os medos que a atormentam, apenas para retornar, no final, com uma fé renovada em seu ato.

Caminho
A descrição que faço dessas cenas serve apenas como ilustração para elucidar o caminho pelo qual tudo o que foi conseguido no processo do treinamento do ator é de uso direto no processo de representação.
A parte analítica do trabalho do intérprete é, naturalmente, essencial para seu desenvolvimento como artista. Mas Stanislávski procurava substituir as atividades mentais, intelectuais e teóricas do ator por credibilidade, experiência e comportamento. Fez isso para garantir que seu resultado não fosse apenas um comportamento teatral, verbal, mental ou formal, que está mais relacionado com as idéias do diretor do que com a execução do ator.

Verdade
Alguns diretores discursam vaga e filosoficamente sobre a verdade da peça ou a verdade do autor, quando o que querem dizer é nada mais do que sua própria interpretação da peça. A verdade do ator é em primeiro e último lugares, a verdade da experiência, do comportamento e da expressão! A escolha da verdade particular a ser criada surge da interpretação pessoal da peça. Mas a interpretação correta de uma peça não garante a veracidade da interpretação, a menos que o ator seja capaz de criar convincentemente a realidade necessária que pretende expor e revelar ao mesmo tempo a idéia da peça.
Vários professores de atuação se vêem de tal modo preocupados com sua própria interpretação de uma peça que, na verdade, jamais exercitam um ator, são apenas seus treinadores. Os atores, assim, jamais aprenderão a ser criativos. Os atores que foram treinados da maneira que eu descrevi podem criar uma realidade no palco e, ainda assim, preencher as exigências da peça. Podem também fazer as adaptações pedidas pelo diretor e continuar mantendo a verdade. É por isso que Peter Brook, um diretor em busca constante de um estilo mais elevado de montagem, expressou sua satisfação por trabalhar com os chamados atores do Método, pois pode lhes fazer todas as exigências e eles estão treinados para executá-las à sua própria maneira.
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Este texto foi extraído do capítulo Os frutos da viagem: processos para o aprendizado do ator, que consta do livro Um sonho de paixão - o desenvolvimento do Método (Editora Civilização Brasileira, 1990, texto original editorado por Evangeline Morphos, tradução de Anna Zelma Campos)

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