segunda-feira, 25 de maio de 2009

O pouco que conheço de moral aprendi
nos campos de futebol e no palco

Albert Camus

(Dramaturgo, filósofo e novelista francês, fundador do Teatro do Trabalho, mais tarde rebatizado de Teatro de Grupo. Suas principais obras teatrais são: "O mal entendido" (1944), "Calígula" (1945), "Estado de sítio" (1948 - adaptação de sua novela "A peste") e "Os justos " (1949). O absurdo da existência humana foi o tema central de sua obra. Camus faleceu em 1960).

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Por que trabalho em teatro? Muitas vezes eu me fiz essa pergunta. A resposta poderá soar desanimadoramente banal: simplesmente porque o teatro é um dos lugares do mundo em que me sinto feliz. Mas essa reflexão não é tão banal assim. Hoje em dia, a felicidade é um assunto delicado. As pessoas têm mesmo a tendência de ocultar de si próprias a sua busca de felicidade, vendo-a como uma espécie de róseo balé, de que devem excusar-se. Às vezes leio que homens de ação, que deram tudo a uma atividade pública, encontram refúgio ou abrigo em sua vida privada. Há um certo menosprezo, não é - em tal noção? Menosprezo e - um não existe sem o outro - contrasenso. Tenho observado muitos casos em que a situação é o reverso, pessoas que encontraram refúgio na vida pública a fim de fugir de suas vidas particulares.

Pecado

Viver feliz hoje é como viver em pecado. Nunca se deve admití-lo. Não diga inocentemente, sem pensar mal, "sou feliz". Imediatamente lerá a condenação em todos os lábios à sua volta: "Oh! Você é feliz, meu filho! E o que está fazendo - diga-me - pelos órfãos de tal lugar, pelos leprosos?...Não se pode dizer que eles sejam felizes!" Que fazer? Então, imediatamente, ficamos sombrios.

Tentativa

Ainda estou dolorosamente tentado a crer que, para sermos realmente úteis aos que estão na miséria, temos que ser fortes e felizes. A pessoa que considera a vida como um fardo e que afunda sob seu próprio peso, não pode ajudar ninguém. Mas aquele que controla seus sentimentos e sua vida, pode dar efetivamente. Conheci um homem que não gostava da mulher, e vivia desesperado com isso. Um dia ele resolveu devotar-lhe a vida (uma supercompensação, em outras palavras). A partir daí, a vida dessa mulher, que até então fora suportável, tornou-se um inferno absoluto, com o ostensivo auto-sacrifício do marido. Assim é hoje em dia: as pessoas se dedicam mais àqueles seres humanos de que menos gostam.

Doença

Não admira, em tais circunstâncias, que o mundo pareça doente e que seja difícil dar-lhe um atestado de felicidade, principalmente se se trata de um escritor. Todavia atesto meu respeito pela felicidade e pelas pessoas felizes; e nem que seja por higiene, procuro estar o mais tempo possível na esfera da minha felicidade, que é o teatro. Diferentemente de outras alegrias mais transitórias, a minha, no teatro, persiste por mais de 20 anos, e não sei o que faria sem ele.

Defunto

Em 1936, reorganizei um grupo defunto, na Algéria, e montamos peças de Malraux a Dostoiewski, até Ésquilo. Vinte e três anos mais tarde, no Teatro Antoine, realizei uma adaptação de "Os possessos", de Dostoiewski. Eu mesmo estava admirado de tão rara fidelidade - ou de tão longa intoxicação. Indagava os motivos dessa obstinada virtude, ou vício. E verifiquei que era de dois tipos: um relativo ao meu próprio temperamento e outro relativo à própria natureza do teatro.

Razão

A primeira e menos maravilhosa razão de que me lembro, era que através do teatro eu escapava daquilo que me aborrecia em minha carreira de escritor. Primeiro, de tudo aquilo que chamo de frívolo comércio, quer seu nome seja Fernandel, Brigitte Bardot, Ali Khan ou, mais modestamente, Paul Valéry. De qualquer maneira, vocês têm seus nomes nos jornais. E assim que você tem o nome nos jornais, tudo começa. O correio o caça; os convites chovem e presume-se que devam ter uma resposta. Grande parte de seu tempo é gasto em recusá-los. Metade de sua energia humana é gasta, assim, no dizer não, de todas as maneiras. Não é estúpido? Claro que é. Mas esse é o modo de se punir a nossa vaidade pela própria vaidade.

Medo

Entrementes, tenho notado que todo mundo considera o trabalho teatral com medo, mesmo sendo ele uma profissão vã, e tudo que você tem a fazer é anunciar que está ensaiando. Forma-se, imediatamente, um deserto em torno de você. E quando você tem a idéia astuciosa, como eu faço, de ensaiar o dia todo e parte da noite, bem, francamente, é o paraíso. A esse respeito, o teatro é um mosteiro. O tumulto do mundo morre à sua porta; dentro de seu confinamento sagrado, por dois meses dedicada a uma única meditação, essa comunidade de monges trabalhadores, isolada do mundo, prepara o rito que será celebrado uma noite pela primeira vez.

Surpresa

A palavra monge surpreende? Uma imprensa sofisticada que dorme tarde e se divorcia muitas vezes? Vou decepcioná-los, sem dúvida, se lhes disser que teatro é mais banal que isso, ou mesmo, que as pessoas nele se divorciam menos que aqueles que trabalham em têxteis, em açúcar, ou em jornalismo. É que, quando há um caso de divórcio entre gente de teatro, outras pessoas falam, naturalmente, mais dele. Isso é compreensível. Representar é uma profissão em que o corpo conta, não pode ser usado libertinamente, mas sempre se é obrigado a mantê-lo em forma. Ser virtuoso é um caso de necessidade, e é talvez o único caminho para ser virtuoso.

Preferência

De qualquer maneira, prefiro a companhia de gente de teatro, virtuosa ou não, à dos intelectuais, meus irmãos. Como todos sabem, os intelectuais são raramente amáveis, nunca se dão bem juntos. Há outra razão que não posso expor inteiramente. Na companhia de intelectuais sempre me sinto como se algo em mim tivesse que ser pedoado; sempre tenho a impressão que quebrei algumas regras do clã. Esse sentimento dispersa minha espontaneidade e, sem espontaneidade, eu me aborreço. No palco, sou espontâneo. Não penso naquilo que tenho ou não tenho que ser, e as únicas coisas que partilho com meus colaboradores são as experiências e as alegrias de um empreendimento comum. É um estado, acredito, que se chama companheirismo, e tem sido uma das grandes alegrias de minha vida. Eu o perdi no dia em que deixei um jornal que fazíamos em equipe, e encontrei-o noamente assim que voltei ao teatro.

Saúde

Um escritor trabalha em solidão, é julgado solitariamente e, acime de tudo, julga a si mesmo em solidão. Isso não é certo, e não é saudável. Se ele tem uma constituição normal, chega a hora em que precisa ver outros rostos, para sentir o calor do contato humano, que explica mesmo muitos dos desenvolvimentos de um escritor: o casamento, a academia, os políticos. De qualquer modo esses expedientes não arranjam nada. Assim que perde a solidão, logo começa a sentir sua falta. Ele gostaria de ter, ao mesmo tempo, não só os chinelos, como um grande amor; gostaria de ser um acadêmico, sem deixar de ser um inconformista. Acreditem-me, a carreira de um artista hoje em dia não é uma sinecura.

Companhia

O teatro oferece a companhia de que preciso, junto com a pesada servidão e as limitações de que todos os homens e todos os espíritos necessitam. Na solidão, o artista reina - mas sobre o vácuo. No teatro ele não pode reinar. O que deseja depende dos outros. O diretor precisa de ator, e o ator precisa de diretor. Essa mútua dependência, quando reconhecida com humildade e bom humor apropriado a ela, forma a solidariedade da profissão e dá um corpo a esse companheirismo diário. Nele, estamos todos ligados um ao outro sem perda de liberdade de ninguém (ou quase isso). Não é uma boa receita para a sociedade do futuro?

Engano

Mas sejamos mais diretos: os atores enganam-se tanto quanto outras espécies humanas, inclusive seu diretor, e às vezes mais, como quando você se permitiu amá-los. Mas as disilusões (se o são) acontecem muitas vezes depois que passou o período de trabalho, quando retorna à sua natureza solitária. Nessa profissão, em que as pessoas não são fortes em lógica, diz-se com igual convicção que o fracasso dissolve a companhia, e assim o sucesso. Não é nada disso. O que acaba a companhia é o fim da esperança que os unia durante os ensaios. É a proximidade do objetivo (a estréia) que os manteve unidos numa ligação tão íntima. Uma reunião, um movimento são também sociedade; mas o objetivo que buscam se perde na noite do futuro. No teatro, o fruto do trabalho será colhido, para o melhor ou o pior, numa noite de antemão sabida, numa noite da qual cada dia de trabalho mais se aproxima. Homens e mulheres, individualmente, se tornam um time partilhando uma aventura comum, e tentando um lindo gol que nunca será melhor ou mais belo do que na noite longamente esperada, quando os dados são lançados.

Exaltação

As corporações de construtores e os estúdios coletivos de pintura, durante a Renascença, devem ter sentido essa espécie de exaltação conhecida por aqueles que trabalham num grande espetáculo. Suas realizações ultrapassam o momento da execução; o show, ao contrário, é transitório - e seus participantes o amam mais porque ele morrerá um dia. Somente na minha juventude conheci isso: o mesmo forte sentido de esperança e união que acompanha os dias de treino até o dia da partida. O pouco que conheço de moral, aprendi nos campos de futebol e no palco. Eles foram minha verdadeira universidade.

Fuga

O teatro também me ajuda a fugir da abstração que ameça todo escritor. Nos meus dias de jornalista, preferia compor as páginas a trabalhar nesses quase sermões que são os chamados editoriais; como também em teatro, gosto de ver como o trabalho cria raiz na confusão dos holofotes, das plataformas, lonas e sarrafos. Não sei quem me disse que para ser um bom diretor você tem que "conhecer o peso dos cenários com os braços"; mas esta é uma grande regra em arte. E gosto da profissão que me obriga a considerar simultaneamente a psicologia dos pesonagens, a colocação de uma lâmpada ou de um vaso degerânios, a textura de uma roupa, o peso e o contrapeso de um volume que deve correr sobre o palco. Quando meu amigo Mayo desenhou os cenários de "Os possessos", concordamos que tínhamos que começar pensando em termos de construção sólida (um quarto feio, mobília - realidade, em resumo), de maneira a erguer a produção, aos poucos, até um plano mais elevado, menos preso ao tema; por fim, estilizamos o cenário. A peça surgiu numa espécie de loucura irreal, mas partiu de um local preciso, escravizado ao assunto. Não é isso a verdadeira definição de arte? Não somente realidade, nem imaginação apenas, mas imaginação tomando vôo da realidade.

Verdade

Basta de motivos pessoais para a minha presença no teatro. Estas são as razões de um homem, mas tenho também os motivos de um artista - e estes últimos são mais misteriosos. Antes de tudo, acho o teatro o lugar da verdade. Para ser exato, as pessoas geralmente o chamam de um lugar de ilusão. Não creio nisso! É a sociedade, acima de tudo, que vive no meio de ilusões. Tome, por exemplo, um desses atores não profissionais, que faz figura nos círculos da moda, ou na administração ou, simplesmente, nas noites de estréia. Coloque-o no palco, sob o refletor exato; jogue quatro mil watts de luz sobre ele e a peça se tornará insuportável. Você o verá, em certo sentido, inteiramente nu sob a luz da verdade. Sim, o brilho do refletor é impiedoso e nenhuma tapeação poderá ocultar a verdadeira identidade do homem ou da mulher, no palco, mesmo com o disfarce das roupas. E estou absolutamenmte certo de que todas essas pessoas que conheci muito bem na minha vida, revelar-se-iam a mim se elas se dispusessem a ensaiar e representar comigo numa peça com personagens de outra época e de outro tipo. Aqueles que amam os mistérios do coração - e a verdade oculta nos seres humanos - devem vir ao teatro. É aí que sua curiosidade insaciável recebe pelos menos uma retribuição parcial. Sim, acreditem, para descobrir a verdade, ponha-o no palco.

Conciliação

Às vezes me perguntam: "Como pode conciliar o teatro e a literatura em sua vida?". Para ser exato, tive muitas profissões, por necessidade ou por gosto, e desde que continuo sendo um escritor, é de presumir-se que consegui de alguma forma reconciliá-los. Sinto que no momento em que consinto em ser apenas escritor, tenho que parar de escrever. Mas com relação ao teatro, a conciliação é automática. Para mim o teatro é a mais elevada forma de literatura, e também a mais universal. Falar para todo mundo não é fácil. Sempre se arrisca a ficar ou muito abaixo ou muito acima. Há autores que desejam dirigir-se ao que há de mais estúpido no público e, acreditem, eles o conseguem muito bem. Há outros que desejam dirigir-se apenas àqueles que supõem inteligentes, e sempre erram o alvo. Quando um autor consegue dirigir-se a todo mundo com simplicidade, em vez de ser ambicioso a respeito do tema, ele está servindo à verdadeira tradição artística e consegue unir todas as classes e todos os espíritos na platéia, numa simples emoção ou numa simples gargalhada. Somente os muito grandes conseguem isso.

Aflição

Perguntam-me também (como uma solicitude que me aflige): "Por que adapta textos quando poderia escrever suas próprias peças?. Tenho escrito minhas próprias peças, e continuarei escrevendo outras. Quando escrevo minhas peças, é o escritor que está funcionando, mas de acordo com um largo esquema. Quando eu adapto, é o caso de um diretor trabalhando de acordo com os termos de seu conceito teatral. De resto, acredito no espetáculo total, concebido, inspirado e produzido pela mesma alma; escrito e dirigido pelo mesmo homem. Esse trabalho torna possível a consecução de uma unidade de tom, estilo e ritmo, que são o essencial de um show, e ao qual me proponho mais livremente do que outros que não foram, como eu fui, escritor, dramaturgo e diretor. Em resumo, eu sirvo aos textos (traduções, adaptações ou o que seja), mas quando são postos no palco, reservo-me o direito de modelá-los de acordo com as necessidades da direção. Colaboro comigo, em outras palavras, de modo a eliminar o atrito existente entre o autor e o diretor. E acho que há tão pouca degradação nesse trabalho que continuarei a fazê-lo sempre que houver oportunidade. Sentirei que faltei aos meus deveres como escritor somente quando montar espetáculos que agradarão ao público por meios degradantes - uma espécie de produção de grande êxito que se costuma ver em Paris, e que revolta meu estômago. De certo não acho que fugi à minha carreira como escritor quando montei "Os possessos".

Dúvida

Talvez não seja possível continuar servindo ao teatro naquilo que gosto. A própria nobreza dessa exigente profissão está hoje ameaçada. A alta incessante dos custos e a burocratização das companhias profissionais estão levando o teatro, pouco a pouco, para o maior comercialismo. Será esta uma razão para parar de lutar? Acho que não. Um espírito de arte e loucura oculta-se sob os balcões e atrás das cortinas. Ele não pode morrer, e evita que tudo se perca. Ele espera de cada um de nós. Devemos evitar que ele seja banido pelos balconistas e pelos produtores de massa. Em troca, devemos ficar firmes e salvar nosso sólido bom-humor. Para receber e para dar - não é esta a felicidade de que falei no início? E necessitamos da própria vida, forte e livre. Agora, vamos ao próximo espetáculo.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 109/1986, edição já esgotada.

























































































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