quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Cuidado com o Nelson

Luiz Arthur Nunes


Nelson Rodrigues é contraditório até nisso: exaltado como o dramaturgo que botou no palco o corpo e a alma do povo carioca, que criou um diálogo incrivelmente próximo do falar das ruas, que fala de gentes, costumes, lugares, valores genuinamente nossos, este autor é dificílimo de montar. Por mais que os atores se deleitem com o "jeito redondinho" que o texto cabe na boca, por mais que nos identifiquemos com as histórias (até as violências, o sexo degradado, os tabus rompidos, se não os vivemos, sabemos deles, acontecem ao nosso lado), o mais brasileiro de todos os autores do nosso teatro é traiçoeiro, fugidio, ao passar para o palco.

Mil tentativas de solucionar o problema já foram experimentadas. Hoje em dia, desde as montagens de Antunes Filho, a moda é rejeitar o naturalismo e cultivar uma expressão poética, expressionista, uma teatralidade radicalmente anti-ilusionista. Fazer aqueles personagens brasileiros até a medula (mesmo nas peças míticas) trocarem o sotaque do malandro e da suburbana e seus ademares típicos, por uma elocução do texto exaltada, operística e por um gestual igualmente estilizado, ritualístico, ambos sem nenhuma relação com os modelos que os inspiraram. Essa tentação é maior ainda nas chamadas peças míticas, onde a brasilidade está presente sem a menor dúvida, mas de forma atenuada, ao contrário da enxurrada de detalhes de observação social que se encontra no drama realista.


GRITOS E CONTORÇÕES

Na minha opinião, é um equívoco ignorar, contrariar esse aspecto - essencial e inseparável - da obra de Nelson, sob pena dela se desmanchar em nossas mãos. É claro que não basta ficar na mera reprodução da vida real, há que passar por ela e atingir níveis mais profundos de expressão e significação. Mas o realismo rodriguiano não desaparecerá, ele é o enquadramento, a moldura onde se encaixa uma percepção bem menos superficial do real, que mergulha no mito e na poesia.

Os atores, pois, deverão fazer um desenho d'aprés nature de seus personagens, e só depois de firmado isso, poderão investigar camadas mais profundas. As peças míticas são poéticas, fantásticas, absurdas, ritualísticas, o que quiserem. Mas todas essas loucuras são ditas e feitas por figuras que exalam brasilidade. Não fosse por sua aberração e loucura, soariam como minha mãe, ou como as tias do Mauro Rasi.

Então eu me pergunto se, em vez de transformar Senhorinha ou Virginia em figuras de Pina Bausch, não será mais óbvio fazê-las dizer e cometer aquelas barbaridades com a maior naturalidade do mundo, com emoção, pois são passionais, mas sem contorções e principalmente, pelo amor de Deus, sem gritar o tempo todo! Acredito que o horror, o absurdo e a tragédia emergeriam mais intensamente desse choque. Sem falar no humor, presente nessas peças e quase sempre ignorado.


COERÊNCIA

O problema que tenho sentido em muitas das últimas encenações de Nelson é que não se consegue acompanhar a história, acreditar nos personagens, deixar-se envolver por eles. Em certos casos, são de admirar o requinte visual, a riqueza de invenção cênica, mas aí não está presente NR. Mas você poderiam me perguntar: e A vida como ela é, não era cheia de efeitos, de jogos teatrais anti-ilusionistas? Sim, ela tinha tudo isso: máscaras, quadros vivos, sombras, bonecos, deformação, estilização, metaforização etc. etc. Mas todo o desenho corporal foi composto dentro do mais fiel naturalismo, assim como a elocução; e os processos de alteração que sofreram não perderam nunca essa base, esse referencial. Propunha-me um tratamento épico, teatralizado, distanciado na maneira de apresentar, de organizar a ação cênica. Mas essa ação, mesmo nas suas formas mais bizarras, era realista.

Essa exigência de uma âncora no realismo para se permitir o vôo só diz respeito à atuação. Ela não se aplica à cenografia, figurino, luz. A Bonitinha mas ordinária, do Eduardo Wotzik, quase não tinha cenário. Mas os atores causavam uma profunda impressão de verdade. A questão está aí: no ator, na interpretação. Fidelidade ao modelo, podendo, conforme o caso, extrapolar um pouco na caricatura, no exagero (sabemos que Nelson exaltava o ator canastrão).

Ao encenar NR, minha receita é levar os atores a compor com autenticidade as figuras típicas desse universo tão nosso conhecido. A infundir verdade nelas. A partir daí, façamos as loucuras que quisermos, mas cuidando para preservar esse lastro de verdade. Só assim NR baixará no palco.
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Artigo extraído do jornal Boca de Cena nº 3/1995. Luiz Arthur Nunes é diretor teatral e especialista em Nelson Rodrigues.

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