terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Tributo a Ivan e Rubens

Lionel Fischer

Como vocês têm visto, venho publicando várias matérias que constaram do jornal "Boca de Cena". Mas agora resolvi encerrar a série, mostrando a primeira matéria de capa da primeira edição do jornal, em agosto de 1995, assinada por Mônica Riani. Acho que ela será bastante útil sobretudo para os jovens estudantes de teatro, que talvez nem saibam quem foram Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque e a importância que tiveram para o teatro carioca, em especial a partir do momento em que criaram sua própria casa de espetáculos: o Teatro Ipanema.

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As almas gêmeas do Ipanema

Rubens Corrêa (66) e Ivan de Albuquerque (65) dispensam maiores apresentações. Afinal, já foram mais de 30 estréias e alguns bons Molière e Mambembe, entre outros tantos prêmios que a dupla conquistou desde que se irmanou em 1955 num despretencioso curso de dicção, onde conheceram a mestra Maria Clara Machado. Ator e diretor, diretor e ator, eles se confundem com a história do teatro carioca. Fundaram dois, o Teatro do Rio (hoje Cacilda Becker, no Catete) e o Ipanema, palco de loucuras como o fenomenal Hoje é dia de rock, de José Vicente, e de viagens sérias e respeitadas como O jardim das cerejeiras (Tchecov), Diário de um louco (Gogol) e O arquiteto e o imperador da Assíria (Arrabal). Completando 40 anos de carreira, a dupla inaugura as páginas centrais do "Boca de Cena", revendo alguns lances maravilhosos dessa jornada de vida cênica que se mescla à própria existência dos dois.


Boca de Cena - Como explicar 40 anos de ligação profissional como a que vocês têm? É um recorde em termos de "casamento"...

Ivan de Albuquerque - Somos muito cúmplices. Talvez por sermos do mesmo estado, Mato Grosso. Quando nos conhecemos, íamos muito ao cinema. Conversávamos até altas horas sobre os filmes que víamos, sobre teatro. O Rubens é mais que um irmão. E nos completamos também porque ele sempre quis representar e eu dirigir. Então foi perfeito. A vontade de trabalhar pelo teatro nos ligou muito.

Rubens Corrêa - Junguianamente falando, sempre procurei realizar o mito do herói, no qual há várias especificações e uma delas é "twins" (gêmeas). Ela determina que há pessoas com afinidades espirituais e artísticas: um completa o outro. É assim que nós somos.

BCD - Como vocês se conheceram?

I.A. - Foi pouco antes de entrarmos num curso de dicção na Fundação Escola Teatro Dulcina, em 1955. Eu entrei porque queria melhorar a minha voz. Cursava a Faculdade de Filosofia por causa da cadeira de Psicologia. Queria ser professor. No curso, porém, tive aulas com Maria Clara Machado e João Bethencourt. Fui na secretaria questionar, afinal estava tendo curso de teatro. Me disseram que eu tinha que aprender aquilo para dominar a pequena platéia de uma sala de aula. Acabei trazendo o Rubens, que queria estudar teatro na Inglaterra. Quando assisti Nossa cidade, dirigida pelo Bethencourt no Tablado, fiquei estarrecido. Ele tinha acabado de chegar dos Estados Unidos, onde foi fazer o curso de Doctor in Art, e realizou um espetáculo belíssimo. Vi que era teatro mesmo o que eu queria fazer. E chamei o Rubens para entrar no Tablado. O engraçado é que eu nunca teria coragem de ser ator, por causa da minha timidez.

R.C. - Devo tudo a ele. Jamais teria capacidade de criar com todas as dificuldades que o teatro oferece se não fosse o Ivan.

BDC - Foram três anos no Tablado até vocês arrendarem o Teatro São Jorge (hoje Cacilda Becker) e o transformarem no Teatro do Rio. Foi muito difícil o começo?

I.A. - Vivemos numa montanha russa, com altos e baixos constantes. Nosso escritório era um banco na Praça Nossa Senhora da Paz. Os dois primeiros trabalhos foram um caos. Com A ratoeira, de Agatha Christie, fizemos sucesso de público mas fomos cuspidos pela crítica. Ao montarmos O prodígio do mundo ocidental, os críticos aplaudiram e ganhamos vários prêmios, mas ficamos um bom tempo sendo tratados como "os meninos".

BDC - Mas vocês alcançaram logo um lugar de prestígio, não?

I.A. - A maior prova de prestígio que tivemos foi quando recebemos A invasão, do Dias Gomes, para montar. Eram 45 atores em cena e o Dias tinha acabado de receber a Palma de Ouro, em Cannes, por O pagador de promessas. Procurei Tom Jobim e Vinícius de Moraes para fazer a música e eles criaram de graça O morro não tem vez. Ganhamos todos os prêmios da época. Foi quando vi que estávamos dentro do teatro, sendo respeitados. Sempre fomos sérios como profissionais e empresários.

BDC - Ivan, você sempre diz que O jardim das cerejeiras, de Tchecov, a primeira peça levada no Ipanema, em 68, era um dos seus sonhos no teatro. Por quê?

I.A. - Eu amava o autor! Foi com ela que ganhei meu primeiro Molière. A peça, porém, foi prejudicada pelo movimento político de 68. Era para ser trilogia russa com Diário de um louco, de Gogol, e A mãe, de Gorki. Mas a censura proibiu a última e só pudemos fazer as duas primeiras.

BDC - Vocês praticamente "descobriram" o José Wilker, aliás um dos três "Zés (os outros foram o autor José Vicente e o ator José de Abreu)...

I.A. - O arquiteto e o imperador da Assíria foi um presente que a Maria Fernanda nos deu. Aliás, as mulheres sempre foram maravilhosas conosco. E com esse texto começamos a trabalhar com o Klaus Viana, que desenvolveu um processo de corpo muito intenso. Quando chamamos o Wilker para atuar conosco ficamos preocupados. Ele era muito feio, tinha um gogó enorme, usava uns óculos grossos, um horror. Mas o Klaus promoveu uma transformação nele e, ao estrear, todos diziam que ele se parecia com o Nureyev, pois ficou com um corpo perfeito. E nunca mais voltou a ser feio.

BDC - Um dos maiores sucessos do Ipanema foi Hoje é dia de rock, do José Vicente, em 1970. Foi realmente um fenômeno, com lotação sempre esgotada e se tornando cultuada pelo público. Como surgiu o projeto?

R.C. - Queríamos fazer um trabalho lisérgico. Tomamos ácido direto para criar o espetáculo, inclusive o Zé Vicente, que tomava para escrever. Sem contar que para encenar também tomávamos. Houve uma empatia muito grande por causa do movimento hippye. Formavam-se multidões na saída do teatro, era uma coisa incrível. Só a Isabel Ribeiro e o Klaus não se drogavam. Mas um dia o Cacá colocou colocou ácido na garrafa de café e nem a bilheteira escapou. Trabalhou vendo no guichê um túnel cheio de mãos e gritando para as pessoas pararem de jogar dinheiro ali.

BDC - Os altos e baixos financeiros foram frequentes na vida de vocês. Qual a lição que se tira?

I.A. - Olha, quando há um fracasso você começa a sangrar. É feito um jogo de roleta: ou dá preto ou vermelho. Parei de fazer teatro porque sofro demais. Perdi a conta de quantas vezes fiquei de cama por causa dos problemas do Ipanema. O ideal é ter um equilíbrio, mas a gente nunca aprende essas coisas. Eu e o Rubens choramos muito à noite por causa do teatro.

R.C. - O que fica é o prazer. O teatro te faz evoluir como ser humano. Cada personagem é um terremoto. Se pudesse voltaria a cada papel. Apesar da precariedade do Brasil, o teatro tem me dado mais prazer do que o sexo, banho de mar ou qualquer outra coisa. Se eu parar de representar, morro.

BDC - A última montagem de vocês foi A promessa, no CCBB, em 1990. Por que pararam?

I.A. - Não tenho mais aquele ardor juvenil. E não gosto de ser escolhido. Em todo caso, escrevi o texto Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire e ando à procura de patrocínio. Mas me sinto satisfeito com o que vivi. O Rubens, não. Ele acha que se parar, morre. É um obstinado e teimoso, mas tão bom que às vezes parece um santo. Ele é capaz de chegar cansado do teatro e lavar uma louça. Diz que é bom para a humildade.

BDC - Uma década depois de sua inauguração, o Ipanema se tornou um dos principais points de shows. O que motivou essa mudança?

I.A. - Em 1977 fizemos A chave das minas, que não foi muito bem. Na mesma época,a música começou a viver um momento muito rico. E como existiam poucos espaços para shows, resolvemos experimentar. As gravadoras pagavam bem e era uma forma de testar o público para cantores novos. No Ipanema foram lançados nomes como Marina, Olivia Byington e Beto Guedes. Os shows faziam muito sucesso e durante anos acabamos abrindo as portas para muitos artistas. Um dos grandes momentos foi o show do Milton Nascimento com a Sarah Vaughan. Nos anos 80, porém, as gravadoras começaram a se retrair e os shows foram empobrecendo. Não vejo nada de mais no fato de ter aberto o Ipanema para a música. Afinal, ela também é uma manifestação cultural.

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ESPÉCIE EM EXTINÇÃO


José Wilker

"Quando conheci o Ivan e o Rubens eu já estava quase destinado a fazer teatro. Meu objetivo era me formar em Sociologia, na PUC. Foi então que eles me deram para ler O arquiteto e o imperador da Assíria, do Arrabal. E aí o teatro adquiriu um sentido todo especial para mim. Ivan e Rubens são uma espécie em extinção. Porque são verdadeiros homens de teatro. O Ivan é um diretor que te provoca sem jamais perder a doçura. O Rubens, além de ator fantástico, é um diretor que, quando percebe que você deve seguir um determinado caminho de interpretação, ele te permite esgotar todas as possibilidades."


Maria Clara Machado

"Quando conheci Rubens e Ivan vi os dois apenas como mais alguns alunos da escola da Dulcina, onde eu lecionava. Acabei chamando-os para o Tablado. A vida se encarregou de mostrar que seriam grandes profissionais. O que me chama a atenção neles é a seriedade com que encaram a carreira e como vivem tão intensamente o teatro".


Domingos Oliveira

"Sem o Rubens e o Ivan o teatro carioca não teria se desenvolvido tão rapidamente. No Teatro do Rio cada estréia era um acontecimento. No Ipanema, unidos ao Wilker, ouviram todas as vozes da contracultura. Nós do teatro carioca exigimos o mais breve possível no palco do Ipanema um espetáculo com os dois. Eles não podem frustrar gerações inteiras".


Fauzi Arap

"Acho que o Ipanema foi a última trincheira do teatro carioca ao manter uma companhia estável. Lastimo os problemas econômicos que praticamente paralisaram as atividades do espaço. O Rubens tem uma grande sublimidade como ator, é como uma escola viva, um exemplo a ser estudado. Ele e o Ivan se confundem. Os dois são gigantes do teatro".


Telma Reston

"Comecei minha carreira com eles, em 1960, no Teatro do Rio. Tinha acabado de sair do curso de teatro e tinha três convites. Fiquei com eles por terem um projeto melhor e com eles aprendi o que levaria cinco anos para aprender em outro lugar".


Jacqueline Laurence

"Nunca trabalhei com os dois, mas eles foram meus companheiros na primeira turma da Fundação Escola de Teatro Dulcina, onde fizemos A ratoeira como amadores. Há grupos jovens que trabalham para firmar uma nova estética. Eles foram a essência disso".


Vanda Lacerda

"Adoro aqueles dois! Hoje tenho uma ligação de trabalho com o Rubens, principalmente. Fizemos recentemente O futuro dura muito tempo, e foi mais uma vez maravilhoso. As maiores virtudes deles são a humildade, a inteligência e a capacidade de doação no trabalho".


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MONTAGENS QUE MARCARAM


TEATRO DO RIO

A ratoeira - estreou em 1960 (foi o primeiro sucesso da dupla no Teatro do Rio) debaixo de goteiras e problemas técnicos que deixaram Ivan de cama. Depois, se transformou em sucesso, sendo um coringa no repertório da dupla, que a montou sempre que estava com o caixa em baixa.

A invasão - Ivan define esta montagem como um " momento pleno".

Diário de um louco - montada com recursos escassos, acabou dando início a um ciclo de montagens sobre a loucura, que seria concluído com Artaud. "Foi uma das melhores coisas que fizemos na vida", diz Ivan, que recorda a primeira sessão, fechada para amigos: "Todos choraram de emoção".

A escada - Ziembinski, diretor convidado, dirigiu este espetáculo onde Ivan foi seu assistente. Rubens levou o Molière no ano de sua criação.


TEATRO IPANEMA


O jardim das cerejeiras - valeu o primeiro Molière a Ivan pela direção. Melhor começo impossível para quem estreava o Ipanema.

O assalto - produzida graças a Norma Benguel e Gilda Grillo, começou mal mas foi levantada pelas duas, que correram os quatro cantos do Rio para divulgar a peça. Foi um sucesso estrondoso e rendeu até casos de demissão dos bancários que iam assistir.

O arquiteto e o imperador da Assíria - revelou José Wilker, que virou galã nas mãos de Klaus Viana, que além disso mudou a interpretação dos atores com seu inovador trabalho de expressão corporal.

Hoje é dia de rock - a lisérgica montagem ficou um ano em cartaz e, em sua última apresentação, foi levada na praia, tamanho o número de pessoas que se aglomerou no Ipanema.


Outras montagens importantes do Ipanema:

Aprendiz de feiticeiro e Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado

Como se livrar da coisa, de Ionesco

As moças, de Isabel Câmara

A china é azul, de José Wilker

O beijo da mulher aranha, de Manuel Puig

Quase 84, de Fauzi Arap

Artaud


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