terça-feira, 31 de agosto de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO IX


Não gastarei o precioso tempo do amigo leitor relatando as minúcias do inferno em que vivi durante quinze dias até recolocar na ordem correta a vida de Ambrosina, o que só foi possível com a ajuda do vinho que ingeria em grande quantidade, sempre que meus nervos ameaçavam se despedaçar. Talvez seja mais apropriado falar de um outro calvário, paralelo à insana tarefa acima mencionada: o meu isolamento. Assim que retornei de minha expedição e comuniquei à irmã Geovana que estava de posse de tudo o que precisava para dar início à hercúlea missão que me impusera, ela teve comigo uma longa conversa, que pode ser assim resumida:

1) Minha presença ali quebrava uma tradição, nascida com a Ordem, de jamais admitir um homem no convento e no convívio;

2) Se ela havia resolvido abrir uma exceção para mim isto se devia, por um lado, a um sentimento de gratidão por minha atuação no que diz respeito à tragédia e por outro ao fato de que eu teria que morar em algum lugar até a chegada do próximo trem, que só passava pela cidadezinha uma vez por mês;

3) Quanto ao livro que pretendia escrever, do ponto de vista da comunidade religiosa ele não constituía um motivo suficientemente forte para justificar minha presença no convento;

4) Mas eu poderia permanecer ali pelos próximos vinte e seis dias, desde que recluso ao meu quarto e sem nenhum contato com quem quer que fosse, exceção feita à irmã que me levaria comida.

Tal proposta, por me parecer não apenas desumana como contraditória, nos levou a um acalorado debate. Disse-lhe, entre outras coisas, que não acreditava na rigidez da Ordem no tocante ao sexo masculino, já que só entrara ali porque fora raptado e justamente pela facção mais ortodoxa do convento, em princípio a mais interessada na preservação dos ancestrais costumes. Questionei igualmente meu confinamento forçado, já que não era nenhum criminoso e como tal não merecia ser tratado. E terminei meu inflamado discurso afirmando, como Hamlet, que havia algo de podre naquele reino e que partiria imediatamente, nem que fosse para agonizar aos pés daquelas inóspitas muralhas.

Foi a primeira vez que vi irmã Geovana alterar-se. Tendo-me levantado, dando a entender que por mim a conversa estava terminada, foi com surpresa que a vi erguer-se também e me ordenar, com certa rispidez, que voltasse a me sentar, alegando que ainda tinha coisas a me dizer. Obviamente que obedeci de imediato, não apenas porque não tinha a menor vontade de ir embora, mas igualmente para usufruir a visão de minha deusa, cuja cólera tornava isuportavelmente bela.

- Escuta aqui, Gabriel - a inesperada intimidade fez meu coração dar forte bombada - se você acredita ou não na rigidez da Ordem no que se refere à presença de homens nesta casa, isso me parece tão ridículo que não me darei sequer ao trabalho de explicar-lhe as razões de tal costume. E por que será que você tem que assumir esse ar de condenado, já que nada lhe faltará enquanto estiver sob nossa guarda?

- Me faltará o essencial! - bradei -: a liberdade de ir e vir, garantida pela Constituição!

- Eu fiz por você tudo o que estava ao meu alcance! - retrucou no mesmo tom a materialização perfeita da beleza -: permiti até mesmo que você trouxesse para cá os escritos de Ambrosina, porque achei que isso o ajudaria a se sentir menos só. Mais é impossível, você não percebe? - e me olhou de forma tão direta e intensa que quase desmaiei. Em seguida, deu-me as costas e iniciou circular e tensa caminhada pela sala, o que me pareceu indício de que nada mais diria e apenas aguardava que eu me manifestasse. E eu o fiz, naturalmente, só que formulando um desejo inteiramente descabido:

- Irmã, já que falamos em solidão, a minha haveria de ser menos dolorosa se eventualmente aplacada pela visão daquela que ora circula à minha frente com injustificada cólera...

Assim que ouviu minha frase, cujo absurdo conteúdo e afetada construção fugiam por completo ao contexto, irmã Geovana me fitou, inicialmente com espanto, e logo com incredulidade:

- Você está me propondo que lhe faça visitas?

- Que mal há nisso? Ou será que este bendito regimento interno também proíbe a superiora da Ordem de circular por onde lhe der na telha?

- Este bendito regimento interno, ao qual você se refere com tanta ironia, deve ser seguido por todas as irmãs. E mais ainda pela superiosa, a quem cabe dar o exemplo!

- Irmã Geovana, tenha a santa paciência! - e então eu me ergui, com um desembaraço que desconhecia. - Nem mesmo nos quartéis mais rigorosos...

- Mesmo porque, senhor Aquino - bradou a divina serva de Jesus, interrompendo-me e retomando a forma de tratamento cerimoniosa, com o evidente propósito de me exasperar - eu não teria nenhuma razão suficientemente forte para querer visitá-lo. Tudo o que tínhamos a nos dizer já me parece que foi dito...- e ao inflexionar tal frase o fez com uma ponta de ironia, tal como o faria uma mulher "normal" ao descartar um pretendente indesejado.

- Nem tudo! - retruquei, tentando ao máximo camuflar o brutal sentimento de rejeição que me invadira. - Se me fosse dada, por exemplo, a oportunidade de vir mais vezes a este soturno gabinete, eu sugeriria algumas alterações, como enfeitá-lo com begônias e acácias. Também aposentaria aquele quadro pavoroso - e apontei para a reprodução de um mártir qualquer sendo espancado por centuriões romanos - cuja única finalidade parece ser a de nos convencer de que a vida não passa de um interminável calvário. E outras sugestões me ocorreriam, certamente capazes de tornar menos melancólico o diário exercício de suas nobilíssimas funções...

Ao concluir minha bizarra réplica, fiquei um tempo sem me atrever a olhar para irmã Geovana. Mas quando o fiz, não percebi nenhum sintoma de cólera ou ironia em sua renascentista face. Pelo contrário: sua expressão denotava, ainda que de forma discretíssima, a possibilidade de um iminente sorriso, que em minha opinião só não se consumou porque irmã Vôncia surgiu do nada, assustando-nos com sua cavernosa voz:

- Já é pra levar ele? - inquiriu o colosso abestalhado.

- Sim...- e então minha deusa desapareceu por uma porta, após contemplar-me com um gracioso aceno de cabeça. Ao me ver a sós com Vôncia, tive vontade de estrangulá-la, só não o fazendo por razões óbvias. Mas a possibilidade daquele sorriso não consumado me gerou tal felicidade que, ao ser escoltado por Vôncia até meu quarto, eu me sentia flutuar, como se irmã Geovana e eu tivéssemos agendado um novo encontro!

Ao me ver a sós, abri uma das inúmeras garrafas de vinho que roubara e comecei a festejar. E foram tantas as canções românticas que recordei, tantas as danças que dancei, tantos os copos que inebriado esvaziei que, quando irmã Vôncia irrompeu trazendo o jantar, eu quase já nem me lembrava com clareza do motivo que me fizera tomal a memorável bebedeira. Tinha uma vaga idéia de que ela se relacionava com o amor, mas seria incapaz de garantí-lo. Tanto isso é verdade que a primeira coisa que fiz foi indagar à mitológica figura, cujo tamanho a bebida aumentava em mais de um metro, se ela poderia me ajudar a descobrir a causa de tão poderoso efeito. Depois de uma breve reflexão, se é que tal termo pode ser aplicado à dita Vôncia, a giganta retrucou:

- Senhor Aquino: não sei nem estou interessada em saber por que o senhor tomou esse porre. Sei apenas que neste estado o senhor não pode ficar ...- e logo começou a arregaçar as mangas de seu hábito.

Ao vê-la fazer isso, mesmo embriagado como estava, me invadiu a suspeita de que Vôncia preparava alguma ação que não me agradaria. Mas quando a vi descalçar os botinões e enrolar o hábito até os joelhos, aí então tive certeza. Temendo pelo pior, escapei do quarto e saí tropeçando pelos corredores aos gritos de "socorro!". Mas fui alcançado antes da primeira curva e reconduzido nos ares para o quarto. Aliás, só não morri durante este trajeto porque ele era curto. A energúmena Vôncia, temendo que meus gritos pudessem ser ouvidos, resolveu tapar minha boca. Acontece que, devido às dimensões de sua mão, a mesma me tapava tanto a boca como as narinas, de maneira que quando ela me depositou no chão do banheiro, por sinal demonstrando total desconhecimento da fragilidade da ossatura humana, eu estava roxo como um bebê recém nascido.

Em seguida, ela fechou a porta do banheiro com um coice, abriu a torneira do chuveiro - de onde só rolava uma água absolutamente gélida - e nele me enfiou de roupa e tudo. Escusado dizer que, a essa altura, o pânico praticamente já me havia curado. Tentei, inclusive, explicar esse detalhe, mas irmã Vôncia fazia ouvidos de mercadora. Manipulando-me como se eu fosse um abjeto pequinês - o único cachorro que, exceção feita às pessoas idosas, toda as demais têm vontade de estrangular - a sequoia tanto me girou e sacudiu que acabei vomitando tudo o que em meu êxtase amoroso ingerira. E quando começaram as golfadas, a torturadora teve o desplante de me virar de cabeça para baixo, agarrando-me pelos tornozelos, ao mesmo tempo em que soltava estranhos grunhidos, provavelmente de satisfação. Irmã Vôncia só interrompeu o massacre quando, penso eu, concluiu que se o prolongasse mais alguns segundos meu estômago, baço e demais órgãos sairíam pela minha boca. Então ela desligou o chuveiro, me estendeu no chão como um tapete de cozinha e desapareceu.

Foi somente às custas de enorme esforço que consegui chegar até o quarto. Não deveria, por orgulho, tocar na refeição que ela me trouxera, mas como estava morto de fome, devorei-a com a maior sofreguidão. Em seguida, coloquei a bandeja do lado de fora - não tinha a menor intenção de rever a louca Vôncia, cujo nome retratava perfeitamente sua dona: uma mistura de violência e onça. Depois, pendurei no banheiro as roupas encharcadas, me deitei e adormeci.

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