terça-feira, 24 de julho de 2012

Duas pantomimas:
Ato Sem Palavras I
Ato Sem Palavras II

Eugene Webb


          Em suas duas pantomimas, Samuel Beckett apresenta de maneira muito simples e estilizada certos aspectos da condição humana. O primeiro deles enfatiza o problema da relação do homem com um mundo exterior que está além do seu controle e que frustra todos os seus esforços para torná-lo habitável. O segundo se concentra na relação do homem com as forças internas que o impulsionam e que, apesar de estarem dentro dele, permanecem igualmente fora do seu controle.

          Ato Sem Palavras I, montado pela primeira vez em 1957 no mesmo programa que a primeira produção de Fim de Partida, parece intimamente relacionado tanto com aquela peça quanto com Esperando Godot. Em Godot, a derrota da esperança leva ao reacender dessa mesma esperança, um círculo vicioso em que as relações rejeitadas são teimosamente transformadas em objetos de fixação, como se essa fosse a única defesa contra a visão de uma realidade sem sentido.

          Fim de Partida apresentava a possibilidade, se não o ato, de romper com esse círculo. Ato Sem Palavras I leva seu protagonista, "o homem", a um ponto em que ele finalmente apreende a futilidade de todas as esperanças que o mundo lhe oferece e consegue enfrentar isso resistindo a todas as tentações de retornar a elas.

          A cena é um deserto, numa luz "ofuscante". O cenário seco e estéril é um símbolo do vazio e da inospitalidade do mundo em que o homem se encontra, e a luz ofuscante corresponde à consciência que é ao mesmo tempo desconcertante e difícil de evitar. É significativo que o homem seja "lançado" no palco: Martin Heidegger, filósofo cuja obra Beckett parece conhecer relativamente bem, fala em Gewofenheit, o estado de ser "jogado" ou "lançado" na existência, como se fosse a situação existencial básica do homem.

          O homem se vê vivo e consciente num mundo que não escolheu e com várias limitações específicas em si, sobre as quais não tem nenhum controle. Isso constitui aquilo que Heidegger chama de a "facticidade" do homem. A facticidade do homem em Ato Sem Palavras I é a de uma pessoa que se vê jogada numa condição humana que o deixa com sede e com calor. Ele não gosta da situação, mas quando um apito das coxias o seduz a tentar sair, ele se vê jogado de volta imediatamente.

          Quando responde a outro apito do outro lado do palco, a mesma coisa acontece de novo. Ele já está começando a aprender não só que não pode fugir da existência, mas também que o mundo em que ele é obrigado a viver é governado por forças que estão além do seu controle e que gostam de provocá-lo. Tendo aprendido isso, ele ignora o apito seguinte.

          O resto da pantomima é uma sequência de outras ofertas e frustrações, e a ação é o lento processo de aprendizado que enfim leva o protagonista à percepção clara e aparentemente final de que buscar qualquer bem oferecido pelo mundo é fútil. O homem fica tentado por diversas delícias em potencial. Uma árvore desce das bambolinas, oferecendo-lhe a possibilidade de sombra para aliviar o calor do sol, e ele vai e se senta embaixo dela.

          Então, quando se senta e olha para as mãos, evidentemente pensando que suas unhas parecem estar precisando de um corte, desce uma imensa tesoura de alfaiate, e o apito chama sua atenção para ela. Ele pega a tesoura e começa a cortar as unhas. Quando a fronde da palmeira se fecha, porém, e a sombra desaparece, ele começa a ficar um pouco desconfiado, deixando a tesoura cair, e reflete.

          Depois disso, uma pequena garrafa com a etiqueta "Água" desce e flutua quase três metros acima do chão. Sem conseguir alcançá-la do chão, ele recebe primeiro um cubo e em seguida outro, de tamanhos diferentes, para que possa empilhar e então subir neles. Claro que ele demora um pouco a dominar a técnica - as caixas têm de ser amontoadas com a menor em cima da maior e não o contrário - e leva um tombo enquanto aprende, mas enfim tem sucesso.

          O processo, tal como se apresenta, possui uma interessante semelhança com aquele descrito por Wolfgang Köhler em A Mentalidade dos Macacos, que descreve o estudo dos processos de aprendizado dos macacos que, vendo bananas suspensas no alto, recebem varas com que puxá-las para baixo ou caixas em que subir para pegá-las. A diferença entre os experimentos de Köhler e aqueles a que o protagonista da pantomima é submetido é, naturalmente, que se os macacos ao menos puderem aproveitar as bananas em paz após tê-las alcançado, o homem não tem essa alegria.

          Quando o protagonista está prestes a alcançar a garrafa, ela é erguida um pouco, ficando pouco acima do seu alcance. Um terceiro cubo é oferecido, para mais uma tentativa, mas quando o apito chama sua atenção para ele, o homem não se move, e o cubo é retirado. Ele está aprendendo.

          Contudo, ele aprende devagar; quando uma corda com nós para trepar desce das bambolinas, ele sobe nela, e é deixado cair assim que vai alcançar a garrafa. A situação dele é como a de Tântalo no Hades, mas a realidade completa disso só fica clara para ele aos poucos. Ele nunca poderá receber nenhum benefício substancial das gratificações que lhe são oferecidas, e buscá-las só vai levar a frustrações cada vez maiores, porém ele tem de passar por um número bem grande de tentativas antes de perceber como elas são fúteis.

          E não há jeito de ele poder vingar-se dessa situação, nem de escapar dela. Ele comete o erro de experimentar cortar a corda com a tesoura, talvez numa tentativa de vingar-se, mas então é levantado do chão, de modo que, ao cortá-la, cai de novo. Com a corda que resta, tenta laçar a garrafa, mas ela é imediatamente tirada de vista. Depois pensa em enforcar-se no galho de uma árvore, mas, esquecendo de uma de suas lições anteriores, ele se deixa ficar tentado a buscar sair de novo do palco quando ouve o apito das coxias.

          Claro que essa tentativa é tão fracassada quanto as outras: ele é "lançado" de volta ao palco, levando o mesmo tombo de sempre. Ele resiste ao apito seguinte, do outro lado do palco, mas comete o erro de pensar de novo que talvez seja capaz de fugir se matando. Ao pegar a tesoura para cortar as unhas, nota suas pontas afiadas, e abre o colarinho para cortar a garganta. Exatamente quando está prestes a fazer isso, claro, a tesoura desaparece. Ele se senta no cubo maior para refletir a respeito disso tudo, mas isso também se mostra um erro: o cubo é puxado de baixo dele e levado para as bambolinas.

          Agora, tirando a árvore, ele está sozinho. Tendo caído no chão quando o cubo foi removido, dessa vez não faz nenhum esforço, mas simplesmente fica ali, com o rosto virado para a plateia. A garrafa é abaixada de novo, e o apito tenta provocá-lo a olhar para ela, mas dessa vez ele a ignora. A garrafa se sacode e se move na frente do seu rosto, entretanto ainda assim ele não dá bola, e ela é removida.

          O galho da árvore retorna à posição horizontal, e a fronde da palmeira abre-se para que a sombra volte, mas quando o apito tenta seduzi-lo a mover-se para lá, ele fica onde está. Finalmente a árvore é removida e ele é deixado inteiramente só, olhando suas mãos. O que pensa enquanto olha para elas não temos como saber. Pode ser algo do tipo "O que posso fazer numa situação dessas?", ou poderia ser "Agora tenho de contar comigo mesmo". Também pode ser um pouco das duas coisas. De todo modo, ele entendeu sua situação. Ele vê que não pode contar com nada fora dele mesmo, e está determinado a não se deixar seduzir e esquecer isso.

          Ato Sem Palavras II (1959) explora a dimensão interna do homem. Se o homem não pode contar com nada fora dele mesmo, existirá alguma coisa dentro dele que possa ser mais digna de sua esperança e de sua confiança? O que Ato Sem Palavras II tem a dizer a respeito disso é que o homem é impelido por uma força compulsiva que nunca o deixará retirar-se por muito tempo na inação.

          Essa ideia foi apresentada anteriormente em minuciosos detalhes na trilogia. Aqui ela é apresentada de maneira simples nos padrões de vida de dois homens, A e B. Assim como Vladimir e Estragon, A e B são dois tipos muito diferentes que, considerados em conjunto, apresentam um retrato complexo do homem. A é "lento, esquisito" e "ausente". Ao contrário de B, rápido, eficiente, ele tem pouco interesse neste mundo, preferindo colocar suas esperanças em outro, como indicado por sua prece no começo e no final de suas sequências.

          A ação começa com a chegada de um aguilhão, que representa a compulsão interna do homem à atividade. O aguilhão vai até o saco em que A dorme e o cutuca para acordá-lo. A relutância de A em começar sua rotina diária é sugerida pelo fato de que o aguilhão tem de cutucar duas vezes para acordá-lo.

          O dia de A não é longo, nem cheio de entusiasmo. Ele rasteja para fora do seu saco, matuta, reza, para para pensar e assim por diante, detendo-se após cada atividade para pensar alguns momentos antes de passar á seguinte. Ele coloca as roupas que divide com B e que B claramente arrumou com muito cuidado, já que elas estão dobradas numa pilha perfeita ao lado do saco de B.

           Ele começa a comer um pedaço de cenoura, mas cospe enojado, e depois leva os sacos dele e de B para o meio do palco, pensa, tira as roupas e as deixa cair amontoando-as desordenadamente, pensa, reza e finalmente rasteja para seu saco. Está claro que levar os sacos para uma nova posição é a tarefa que lhe cabe e, uma vez que fez isso, já pode voltar a dormir.

          O aguilhão retorna, e dessa vez cutuca B para acordá-lo. B só demanda uma cutucada e tem muito mais entusiasmo por seu dia do que A. Tudo que ele faz, faz vigorosamente. Se A parava para pensar entre as atividades, B olha o relógio, onze vezes ao todo, ou então sua bússula ou seu mapa. Está claro que ele é o tipo que gosta de orientar-se precisamente no espaço e no tempo.

          Ele se veste com rapidez e cuidado. "Mastiga e engole com apetite" seu pedaço de cenoura. Ele não se dá ao trabalho de rezar; é claro que acha que este mundo o absorve o bastante e tem confiança em sua capacidade de lidar com ele. Após cumprir seu próprio dever levando os sacos a um lado mais distante do palco, tira as roupas que A deixou numa pilha desarrumada e as dobra perfeitamente de novo, dá corda no relógio e rasteja de volta para o saco.

          O aguilhão retorna, vai até o saco de A e cutuca. Não há resposta. Após outra cutucada o saco começa a se mover e A rasteja para fora, para, pensa e reza. A rotina vai começar de novo. A impressão que nos fica é a de que esse ciclo de despertar, agir e retornar a descansar tem se repetido desde o início dos tempos e que vai continuar para sempre, se não com as pessoas A e B, então com aquelas que vão substituí-las e ser substancialmente idênticas a elas.

          O mundo em que o homem é jogado pode ser absurdo, e o progresso em cujo nome o homem trabalha pode ser tão sem sentido quanto a mudança indefinidamente repetida das posições dos sacos, mas ele não tem escolha quanto a viver nisso e para isso. As condições que o governam, tanto interiores quanto exteriores, asseguram isso.
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Extraído de As Peças de Samuel Beckett, Realizações Editora, tradução de Pedro Sette-Câmara

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