terça-feira, 31 de julho de 2012


Exercício Findo


Lançado em 1987 pela Editora Perspectiva, o volume Exercício Findo reúne dezenas de críticas de um dos maiores críticos brasileiros, Décio de Almeida Prado, publicadas entre 1964 e 1968. Mas aqui transverei apenas a análise que faz dos textos selecionados. (Lionel Fischer)


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TARTUFO


          Molière é eterno porque exprime de maneira exemplar uma das constantes do espírito humano: aquele bom senso que Descartes julgava a coisa mais bem repartida sobre a terra (ninguém se queixa de tê-lo de menos) e a que se refere Cleanto, opondo-se ao mesmo tempo a Tartufo e a Orgonte, como sendo la juste nature e la droite raison. A crença, em síntese, de que a natureza é sábia, bastando saber ouvi-la para evitar o erro, não a submetendo a excessos ou distorções irracionais.


           Tartufo, claro está, é uma dessas horríveis contrafações da natureza humana. Ainda que fosse sincero (e a sua insinceridade é a primeira e já imperdoável distorção), haveria sempre qualquer coisa de extremado, de pouco natural, no encarniçamento com que ele combate os instintos humanos, desde os sexuais até os de sociabilidade, e que, no seu caso particular, como ficamos logo sabendo, tem sobretudo o propósito de mascarar um temperamento sensual, fortemente tentado por todos os prazeres carnais.


          Mas, ao lado da hipocrisia e da carolice, há, na comédia de Molière, outras formas, menos condenáveis porém não menos risíveis, de distorção. Assim, a cegueira passional de Orgonte e da Sra. Pernela, que, apaixonando-se por Tartufo, negam-se obstinadamente a encarar a realidade até que esta lhes entre pelos olhos adentro, ou a exaltação permanente de Damis, sempre pronto a injuriar, a bater, a descabelar-se, com um ardor que serve apenas para atrapalhar a ação das personagens mais realistas, como Elmira, Dorina e Cleanto.


          Não é com arrebatamento, com ingênuas explosões de cólera, que se combatem os Tartufos, parece dizer Molière, mas com inteligência e pleno domínio de si mesmo. Até o próprio amor poderia sem dificuldade ser incluído neste quadro de irracionalidade, pelo menos na imagem que dele nos dão Mariana e Valério, com as suas rusgas pueris e seus desentendimentos tolos.


          Temos assim vários planos da mesma falta de moderação, da mesma desobediência àquele ideal de justa medida que o racionalismo francês herdara da Grécia. Entre Tartufo, "o impostor" (tal é, com efeito, o subtítulo da comédia), e Orgonte, legítima vocação de cocu magnifique, não há muita escolha. O ponto de perfeito equilíbrio entre a hipocrisia torpe e a credulidade inepta está por assim dizer fora dos participantes diretos do drama, entre as testemunhas e os espectadores.


          São eles Cleanto, o irmão, e Dorina, a empregada (ou dama de companhia), faces opostas da mesma sabedoria compreensiva e terra-a-terra. Cleanto, que é a consciência moral da peça, exprimindo em nível elevado o que Dorina traduz em termos impulsivos e populares, não se cansa nunca de deplorar a estranha tendência revelada pelos homens para violentar as fronteiras da razão e da natureza humana.


          Se a carolice é uma contrafação insuportável da verdadeira fé, uma exploração descarada do métier de prude, não será em Orgonte e Damis que irá encontrar adversários à altura. Não admira, portanto, que o desfecho feliz, obrigatório na comédia, venha rex ex machina, por intervenção pessoal de Luís XIV (a quem, de resto, Molière devia a liberação da peça perante a censura).


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ELECTRA


          Electra é a história de um crime. E de um crime monstruoso: um filho que para vingar o pai, mata a própria mãe. Tem assim o fascínio equívoco de todos os atos que excedem os estritos limites humanos. Mas Electra é também outra coisa: a razão do homem procurando sobrepor-se a esse fascínio, tentando impor os seus critérios à violência desmesurada. Agamenom sacrifica Ifigênia. Clitemnestra, através de Egisto, mata Agamenon. Orestes assassina Clitmnestra e Egisto. Cada crime tem a sua possível justificativa moral.


          Mas o que começa a parecer insuportavelmente irracional ao pensamento grego é esse própria cadeia de crimes, baseada no princípio da retaliação e destinada por isso mesmo a nunca ter fim.
Quando colocamos o episódio de Electra e de Orestes em sua exata perspectiva histórica, como elo de uma longa cadeia, percebemos que o objetivo último da peça é superar esse tipo primitivo de justiça, executada com as próprias mãos.


          A tragédia de Sófocles liga-nos dessa forma a velhíssimas maneiras de ser da humanidade. Por trás dos seus quatro ou cinco protagonistas paira todo um universo carregado de sacralidade, exprimindo-se obscuramente através de oráculos e pressentimentos. Tudo o que acontece é significativo - os sonhos, os vôos dos pássaros - porque o universo é um só: o próprio homem não passa de um elemento entre tantos outros.


          Mas, ainda aqui, o empenho do pensamento grego é no sentido de distinguuir entre o natural e o sobrenatural, de isolar e valorizar o homem, fazendo-o tomar consciência de si mesmo, responssabilizando-o por sua conduta moral. Electra, Orestes, enfrentam uma tarefa em certo sentido sobre-humana mas revelam-se capazes de assumir corajosamente o próprio destino, não reservando aos deuses senão a limitada parte que lhes cabe. E por esse lado a peça é inteiramente moderna. Toca-nos, portanto, duplamente: como documento histórico e como obra de pensamento atual.
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TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA


          O ponto de partida de Toda Nudez Será Castigada é aquela velha idéia da psicanálise (pois é: também a psicanálise começa a envelhecer) de que as reações humanas escondem geralmente em seu bojo o contrário do que pretendem exprimir. "Todo casto é um obsceno" - proclama o meneur du jeu da peça (e so mesmo tempo o seu gênio do mal), refletindo essa ambivalência amor-ódio, atração-repulsão, que é a própria dialética de quase toda a dramaturgia do autor de Vestido de Noiva.


          Em outras palavras, Nelson Rodrigues voltou mais uma vez ao seu grande tema: o puritanismo. Tema que ele desenvolve pelo absurdo, mostrando o seu reverso, isto é, a inconfessada fascinação pelo vício que constituiria a natureza profunda do puritanismo.


          É a mesma idéia de Chuva (o conto e a peça), expressa em termos relativamente semelhantes: a paixão entre o puritano e a prostituta, entre o homem que nega sem reservas e a mulher que aceita sem peias a própria sexualidade (e que pertenceriam ambos, como vimos, à imensa categoria humana).


          Claro está que esta analogia de situações nada significa artisticamente porque uma obra de arte define-se pelos meios, não pelo assunto - e não há autores mais diversos, pelos processos, pelo temperamento, pela simbologia, do que Nelson Rodrigues e Somerset Maugham.


          Todo o primeiro ato é de uma grande ferocidade, parecendo o texto estar sempre se divertindo à custa das personagens. Mas estas se vingam: se a peça vive dramaticamente é sobretudo porque uma delas, a prostituta, se rebela contra o sarcasmo do autor, afirmando-se com um primitivismo, uma elementaridade animal, que acaba por se impor como uma verdadeira força da natureza, para além de qualquer noção de bem ou de mal.


          Depois, ao invés de se ater ao conflito que havia proposto, a peça começa a contar uma história muito comprida, cheia de incidentes, de padres, de psicanalistas, esvaindo-se a tensão incial por entre as complicadas malhas do enredo. Ainda aqui, curiosamente, prevalece a dialética do contrário. Tudo deseja ser surpresa - o rapaz força o pai a se casar com a prostituta, as tias velhas recebem-na de braços abertos na família, o filho foge com o "ladrão boliviano" - mas estas reviravoltas, estas passagens de um determinado estado para o seu oposto, em vez de parecerem um aprofundamento psicológico ou moral, apresentam-se apenas como o jogo de efeitos prórprios do melodrama (não faltando nem o clássico vilão).


          A história desfaz-se em peripécias - e para exprimir o que? Nada. É o enredo pelo enredo, mas, mesmo neste nível, a peça não se sustenta porque o fio narrativo acaba por se afrouxar irremediavelmente em face dos cortes e mudanças de cena desnecessários. Não há dúvida de que o teatro moderno dá inteira liberdade ao escritor mas isto não o dispensa de organizar o seu material. Nelson Rodrigues, em suas últimas peças, não parece estar mais pensando em termos de teatro: limita-se a contar a história, episódio por episódio, narrativamente, como se o palco não exigisse um mínimo de concentração dramática.
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DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA


          Em Dois Perdidos numa Noite Suja, Plínio Marcos explora um filão típico do teatro moderno, a partir de Esperando Godot: dois farrapos humanos ligados por uma relação complexa, de companheirismo e inimizade, de ódio visível e, também, quem sabe, de afeição subterrânea. Juntos, não chegam a constituir um par de amigos. Mas, separados, mergulhariam na solidão, o que seria ainda pior.


          O diálogo que travam é uma exploração constante das fraquezas recíprocas, um intercâmbio de pequenos sadismos. Um deles sente a sua miséria física e moral como uma decadência provisória, um estado de envilecimento passageiro do qual é necessário a todos custo emergir. O seu sonho é retornar à vida normal, possuir um par de sapatos decente (símbolo, a seus olhos, do decoro burgês), recuperar o nível econômico e social que já fora o seu, voltar a estudar ou a trabalhar como pessoa civilizada.


          O outro, ao contrário, está instalado definitivamente e diríamos comodamente na abjeção. Criado em reformatórios, estranhando que alguém possa ter pai e mãe (mãe é natural, pai já é um luxo ridículo), não conhece via diversa, nem valores diversos. Não é um desesperado porque nunca soube o que fosse esperança. O seu modo habitual de expressão é a hostilidade, desde a picuinha, o insulto, o achincalhe, a intriga, até, se for o caso, o roubo e o assassínio. Qualquer concessão, qualquer generosidade, é sempre interpretada por ele como sinal de fraqueza, quando não de falta de virilidade. As suas normas de existência não admitem a neutralidade: ele está sempre na ofensiva ou na defensiva. Vencedor, procura espoliar e espezinhar o vencido. Vencido, aceita sem pestanejar os termos do vencedor, para poder continuar a luta. Paga, em suma, o duro preço que a vida diariamente lhe impõe mas trata de cobrá-lo dos outros com juros.

          O mais inteligente, o mais sensível, o mais corajoso fisicamente, o mais equilibrado dos dois, é também, por uma dialética facilmente compreensível, o mais frágil e o mais vulnerável. A simpatia que sente eventualmente pelo próximo, os laços de solidariedade que ainda o unem aos outros homens, fazem-no ceder sempre ante a obtusidade (disfarçada em esperteza), a total ausência de compreensão do seu parceiro. A exploração do melhor pelo pior, dos mais forte pelo mais fraco, eis o tema que a peça desenvolve até a explosão final.


          São duas figuras dramáticas - e o desfecho bem o comprova - mais vistas freqüentemente pelo ângulo cômico, na medida em que este tipo de maldade é primário, infantil, não concebendo sequer a existência de padrões morais.


          A linguagem da peça é tão suja quanto a noite que envolve as personagens, segundo o título, certamente a mais desbocada que já vimos em peça nacional (também neste setor sofremos de ligeiro subdesenvolvimento em relação aos Estados Unidos) - mas não poderíamos imaginá-la abrandada porque nível mental e expressão acabam por se confundir. A gíria e o palavrão, em casos como este, passam a ser a própria força do pensamento.


          Dois Perdidos numa Noite Suja, inspirada num conto de Moravia (e até que ponto não saberíamos dizer), está longe de ser uma peça acabada e perfeita. Cremos inclusive que ganharia em consistência e intensidade se os seus dois atos fossem condensados num longo ato único. Mas revela em Plínio Marcos uma poderosa, ainda que incipiente, vocação teatral. Ele tomou uma só situação dramática, investigando-a e aprofundando-a até tornar translúcida a relação humana que lhe deu origem.
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Um comentário:

  1. Como faço para enviar um espetáculo para crítica? Para qual email posso enviar?

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