quarta-feira, 15 de maio de 2013

A Restauração da Narrativa

por Luis Alberto de Abreu



           Sempre admirei o surpreendente processo que leva um paleontólogo a refazer, a partir de um fragmento de osso, não só toda a ossatura de um animal pré-histórico como seu aspecto, hábitos, costumes, o meio em que viveu e uma multidão de informações sobre aquele espécime. Guardadas as devidas proporções é como um fascinante jogo de investigação policial onde um pequeno e significativo detalhe se compõe com inúmeros outros, formando uma geometria que nos dá o rosto do criminoso, o aspecto de um animal ou o retrato de uma sociedade. Penso que foi por causa desse fascínio que me habituei a querer ler sinais e me tornei dramaturgo. Dramaturgia não é mais do que ler sinais por trás de uma ação ou de uma expressão humana. Em Medéia, Eurípedes nos revela um universo profundamente humano a partir de um crime bárbaro. O mesmo faz Ibsen que, a partir de uma pequena nota de página policial constrói Casa de Bonecas, um texto fundamental na moderna história da dramaturgia.

          Foi a capacidade de ler sinais, imagino, que levou Mikhail Bakhtin, a escrever "Cultura popular na Idade Média e no Renascimento", um livro que considero fundamental para qualquer dramaturgo ou estudioso ligado a teatro ou não[1]. Nele, o filólogo russo, a partir de um sinal (o riso) discute, entre outras coisas, todo o processo que levou a sociedade a transitar de uma forte noção de corpo social presente na Idade Média à afirmação de corpo individual como noção predominante no período do Romantismo. No bojo dessa transformação (e isso já é dedução minha), valores, procedimentos, ações, imagens, histórias coletivas perdem a importância em relação a valores, procedimentos, ações, imagens e histórias individuais.

          Foi também a tentativa de ler sinais que me levou a prestar atenção na organização urbana das cidades coloniais brasileiras e no que elas têm em comum tanto com o estudo de Bakhtin quanto com a questão proposta no título dessa reflexão: a restauração da narrativa.

          Nas cidades coloniais brasileiras as moradias eram construídas segundo um padrão determinado. Suas portas abertas durante o dia e apenas cerradas à noite, suas janelas sem trancas, davam acesso direto à rua ou à praça e vice-versa, sem espaços intermediários entre o domínio público e o privado. Portas e janelas, mais do que instrumentos de iluminação, arejamento ou segurança tinham o valor simbólico de proporcionar o acesso fácil, livre de embaraços ao espaço íntimo e privado da casa. O portal da casa permitia o fluxo constante de informações, a relação estreita entre o mundo público e o privado.

          As moradias atuais são construídas de acordo com um padrão diferente. Entre a soleira da casa e a rua, estabeleceram-se quintais, calçadas, muros, portões, grades, lanças, cacos de vidro, interfones. As explicações para essas diferenças na maneira das pessoas se relacionarem com o espaço urbano, com certeza, vão além de razões de segurança. A relação íntima entre os espaços físicos público e privado, sugerida pela urbanização "caótica" daquelas cidades (ruas de traçado tortuoso em razão da distribuição das casas, moradias desalinhadas que avançavam sobre a via pública, ruas sem saída que terminavam abruptamente numa porta de residência) indica que a mesma indefinição de fronteiras se estabelecia nos mais variados níveis das relações humanas. E, em especial, na cultura. No interior de uma noção forte de "corpo social" estabelece-se um imaginário comum de mitos, crenças, histórias, memória, etc. É do interior desse imaginário comum, público e permeável, que ao mesmo tempo em que invade a memória e os valores do indivíduo, abriga e agrega suas contribuições, que as pessoas extraíam o material para suas expressões simbólicas - ritos, mitos, arte. É foi de dentro de um imaginário e de experiências tornadas comuns que floresceu a narrativa como transmissora de conhecimento e, mais importante, de experiências individuais para o repertório coletivo. Qualquer alteração em quaisquer dos planos - o concreto e o simbólico - provoca alteração na forma de expressão humana. Esse é o raciocínio do filósofo Walter Benjamin, em seu ensaio primoroso "O Narrador - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov" [2], onde analisa a decadência da forma narrativa a partir das relações concretas do homem e o trabalho. A decadência da narrativa está intimamente ligada à decadência do imaginário comum.


O IMAGINÁRIO

          Não existe experiência coletiva. Existem acontecimentos, fatos coletivos, como a guerra, peste e morte que em determinado momento podem atingir indivíduo ou sociedade como um todo. No entanto, a experiência de cada um desses acontecimentos só pode ser absorvida individualmente. O que não quer dizer que uma experiência não possa ser compartilhada, imaginada, comunicada e sensibilizada. Ao contrário, é de fundamental importância que toda experiência humana significativa possa ser comunicada tendo em vista a criação de um repertório comum de experiências, material básico para o desenvolvimento de uma consciência coletiva. E consciência coletiva é o que plasma o surgimento de um destino comum. E destino comum é o que orienta e dá forma ao que chamamos de comunidade, cidadania ou nação.

          Essa transmissão de experiências individuais para a esfera coletiva dá forma ao que chamamos "imaginário". Um imaginário - repertório de imagens comuns a uma cultura e, em decorrência, de histórias, tipos, crenças, conceitos e comportamentos - é necessariamente uma criação coletiva. Mais, um imaginário é determinado por condições objetivas, sociais, históricas. Ou seja, não há a possibilidade de um indivíduo criar uma imagem fora do imaginário de seu meio. Por exemplo, na Idade Média seria possível haver um herege mas nunca um ateu dentro daquele imaginário totalmente religioso. O que não quer dizer que o imaginário não seja algo profundamente dinâmico. Cabe ao artista, ao homem criador, perceber, nas condições objetivas do processo histórico e social, as possibilidades de surgimento de novas imagens e dar luz a novas histórias, idéias, crenças, que vão integrar o imaginário de sua época.

          Juntando as coisas todas: o fato de as casas coloniais serem voltadas para as ruas e praças; a gradativa perda, através dos séculos, da noção de corpo social; a necessidade de compartilhamento de experiências (individuais) para a constituição de um imaginário (coletivo), tudo isso, creio, tem relação direta com o tipo de arte que fazemos e, em especial, com a dramaturgia.

          Antes, porém, é necessário esclarecer que o processo de perda da noção de corpo social não é, por si só, negativa. Ao contrário, correspondeu à abertura do fantástico caminho de fortalecimento da noção de indivíduo e decorrentes noções de independência, liberdade individual, humanismo. O gradativo afastamento do homem da natureza e do corpo social, o homem que se sabe diferente e isolado, que tem um destino próprio, quase desenraizado de seu meio, fez derivar a história da civilização para outro rumo. O Davi, de Michelângelo, com seu semblante pensativo e algo aflito, como se carregasse o peso de seu próprio destino, é tido como um marco no processo que haveria de colocar o homem no centro da História e da criação. Na dramaturgia, Hamlet, de Shakespeare, é igualmente considerado o protótipo do homem moderno, um homem em conflito, envolvido com a pesada herança de seus pais e que oscila, indeciso, na busca um novo caminho. Essas duas imagens iluminaram o caminho da afirmação do indivíduo perante a natureza e o corpo social.

           A questão que se coloca é se não é necessário, hoje, avaliar ambos os caminhos (o público e privado, indivíduo e corpo social, criação individual e imaginário) e talvez equilibrar novamente os elementos. A questão se coloca porque, no âmbito do teatro, foi o progressivo isolamento do indivíduo de seu meio que possibilitou o fortalecimento e subseqüente predominância de um gênero de invejável poder dramático, mas significativamente frágil no que se refere à apreensão do mundo real. A predominância do melodrama, como veremos mais adiante, determinou o afastamento dos conteúdos narrativos antes fortemente presentes no teatro.


DA TRAGÉDIA AO MELODRAMA

           Talvez a perda de um imaginário onde os homens possuíam bravura heróica, coragem e habilidade para afrontar os grandes desafios da existência, diminuiu em nós mesmos a capacidade de nos reconhecermos com tais valores. E se isso é verdade, diminuiu bastante em nós esses poderes. Mais precisamente diminuiu nossa capacidade de reconhecê-los em nós próprios.

          Parece haver relação direta entre o enfraquecimento da capacidade de luta, força moral e grandeza dos objetivos dos personagens e o progressivo abandono do gênero trágico e a conseqüente adoção do melodrama como gênero preferencial no século passado. Preferência esta que permanece até os dias de hoje. Não creio que caiba estabelecer juízo de valor sobre assunto. Os gêneros todos, da farsa ao melodrama, passando pelo drama e pela tragédia, são importantíssimos enquanto revelam esferas da alma e dos conflitos humanos com vigor e propriedade que os tornam insubstituíveis. Se a afirmação da noção de indivíduo foi um bem inestimável para o ser humano o mesmo se pode dizer do desenvolvimento e aperfeiçoamento de novos gêneros como o drama e o melodrama. A questão que se coloca é o que perdemos nesse processo.

          Visto sob a ótica da mitologia, o melodrama está relacionado a uma mentalidade adolescente. Nada de negativo nisto se não considerarmos a adolescência uma experiência humana negativa - tanto a adolescência quanto o melodrama estão relacionados à aquisição dos sentimentos e força. Na mitologia, o herói adolescente porta uma pequena faca (não uma espada que é símbolo do herói-guerreiro adulto) e sai pelo mundo. É ajudado por um parceiro poderoso e não humano e está sujeito ao acaso e às forças mágicas ( na trajetória adulta -drama e tragédia- o herói depende fundamentalmente de si e seu destino é determinado pela sua ação). Nas trajetórias míticas relacionadas ao herói adulto não existe o acaso, elemento fundamental no melodrama (doenças repentinas, golpes da sorte são acontecimentos que tem forte interferência num melodrama).

          Ao contrário do drama e da tragédia, o herói do melodrama é necessariamente uma vítima. Despossuído de força, ele sucumbe à ação dos elementos externos, de vilões e vilãs, é incapaz de suplantar os limites das leis e da moral. Não investe contra e nem consegue se libertar do poder da família ou da sociedade. Muitas vezes é incapaz de perceber que a origem de seus males é social. Em geral, o herói melodramático não vai além de seu quintal, não vai além de relações familiares e humanas de pouca profundidade. Digo em geral porque algumas peças desse gênero tratam os sentimentos humanos de forma profunda e verdadeira, tornando, em minha opinião, obras primas, apesar de não descerem às vastas complexidades da tragédia ou do drama. Personagens trágicos como Electra e Orestes matam Clitemnestra, sua mãe; Dr. Stockman, personagem dramático de "O Inimigo do Povo", de Ibsen, abre luta aberta contra seu próprio irmão e contra a sociedade; Nora , protagonista do drama "Casa de Bonecas", também de Ibsen, abandona marido e família. Mas a família Tyrone, no primoroso melodrama "Longa Jornada Noite Adentro", de Eugene O'Neil, decai e sofre sem identificar a origem de seus males.[3]

           Encerrados dentro de seu próprio mundo individual, os heróis melodramáticos desconhecem as forças da terra, do mundo e das ruas dos quais ele se exilou. Enquanto os heróis trágicos chegam ao mundo como "heróis de cultura", personagens que vão transformar o mundo, derrogar velhas leis e trazer novas, lutar decididamente contra a herança e imagens dos pais e das tradições do clã ou da sociedade, o enfraquecido herói melodramático sucumbe a um mundo que desconhece e a leis morais e regras sociais que não consegue mudar. O mundo é algo misterioso e assustador, um "sistema" indecifrável, e o palco de luta do herói melodramático não é o mundo caótico ou a sociedade organizada sob leis opressoras e injustas. O universo de luta do herói melodramático é o dos seus sentimentos. E esses sentimentos são limitados pelas leis, pelos preceitos religiosos e pelos bons costumes.

            E, ainda mais, poderíamos dizer que, embora os sentimentos sejam o elemento fundamental do melodrama esse gênero sobrevive principalmente não do exercício dos sentimentos mas de sua negação. Os heróis dramáticos ou trágicos vivem os sentimentos com toda a intensidade e, muitas vezes, são punidos exatamente por isso, pelo descomedimento, pela falta de medida com que o vivem. Os heróis melodramáticos "tentam" viver seus sentimentos sem conseguir alcançá-los, seja por acidente, pela ação do vilão ou por fraqueza moral.

          Ao perder o contato com a praça, com as ruas, com a comunidade, enfim, o homem perde seu imaginário, abandona a fonte de sua cultura e diminuem-se consideravelmente a quantidade e a qualidade das experiências que podem ser comunicadas. Seu repertório de imagens, sem o acréscimo das imagens apreendidas no contato e conflito com outros homens, reduz-se àquelas geradas apenas a partir de si próprio (os sentimentos) e advindas no contato e conflito com seu reduzido meio familiar e círculo social (moral). Os próprios sentimentos sem o sadio conflito com a complexidade do mundo real tendem a permanecer na superfície ou a se tornar idealizados. Ao abandonar as ruas o homem diminui substancialmente sua capacidade de aprender. O saber distancia-se do sentir.

          É bem característico que nossa época tenha especial predileção pelo melodrama. É um gênero que retrata fielmente a perplexidade da maioria de nós com um mundo que não mais conhecemos. Um mundo complexo, vil, caótico, violento e inimigo, do qual nos afastamos para o aparente porto seguro de nossa casa e dos nossos sentimentos (desde que não escavemos esses sentimentos até as profundidades abissais dos instintos). Que distância enorme do drama ou da tragédia em que os personagens investem em direção ao mundo para transformá-lo em algo possível de ser ordenado e habitado!

A CRISE

          Desde que comecei minha carreira profissional como dramaturgo, há vinte anos, ouço falar em crise. Hoje me pergunto se é possível fazer arte em qualquer lugar do mundo sem crise. Isso não quer dizer que tenha me habituado a ela, mas que a considero elemento fundamental do processo criativo, situada no mesmo nível de importância da observação, da reflexão, da atenção ou da intuição. A crise norteia e nos faz mais espertos.

          É interessante verificar que o afastamento da íntima convivência entre o público e o privado, o indivíduo e a cultura, expresso nas moradias das antigas cidades, é um símbolo que oculta mudanças muito expressivas nas relações humanas e artísticas. A perda do imaginário levou a danos que somente agora começam a ser percebidos de forma evidente. Por exemplo, a tão comentada crise relacionada ao fluxo de público no teatro, cinema, literatura e outras artes, é uma dessas evidências. Obviamente, a crônica crise determinada pela falta de interesse do público pela produção cultural tem múltiplas e importantes raízes. São levantadas desde razões históricas até a quase nula sensibilidade das instituições governamentais em incentivar o acesso da população aos bens culturais; o peso da mídia e os interesses da indústria cultural, entre outras. Todas essas razões possuem sólidas justificativas. Mas uma razão pouco aventada, e, talvez a mais importante, seja a que explica que o desinteresse do público se deve ao fato de que talvez a produção cultural não esteja falando a mesma língua que ele, nem veiculando as imagens extraídas de um imaginário comum. Talvez a grande aventura da busca da individualidade iniciada no Renascimento tenha se exacerbado de tal forma a ponto de esquecermos da existência de um corpo social, de um imaginário cultural.

           Talvez o artista tenha renunciado a ser o meio de expressão das variadas experiências humanas para expressar a si próprio. Talvez o artista tenha aberto mão de expressar o mundo e a vida para expressar o próprio mundo e os próprios sentimentos. E talvez o próprio mundo e os próprios sentimentos não sejam assim tão importantes. Pelo menos para o público. Não que a totalidade da produção cultural atual seja apenas feita de considerações em torno do umbigo de seus próprios realizadores. Ao contrário, percebe-se em grande parte da produção artístico-cultural um empenho decisivo em questionar e encontrar formas de comunicação mais eficientes com o público. A pergunta é se essas formas eficientes não estão intimamente ligadas à recuperação de um imaginário comum.


RESTAURAR A NARRATIVA

          O longo e lento processo de afirmação dos valores do indivíduo alcança até os dias de hoje. E se, durante esse processo, houve época em que tanto os valores coletivos quanto os do indivíduo conviveram, hoje, está claro, existe uma sobrevalorização dos valores individuais em detrimento dos outros. E, paradoxalmente, é na época da chamada cultura de massa que a noção de indivíduo se impõe de maneira tão avassaladora. Ou talvez o próprio conceito de "massa" como agrupamento infinito, amorfo e semiconsciente de seres propicie a sobrevalorização do indivíduo. O apelo da propaganda é para que o indivíduo se destaque da massa amorfa! Isso só pode ser feito apoiando-se e reafirmando em si, ad infinitum, a noção de indivíduo em contraposição à massa informe.

          Sem pretender aqui discutir o conceito de massa - para mim no mínimo uma impropriedade -, o fato é que, neste fim de século, o poder transformador da arte parece ter se esgotado e seus caminhos parecem ter conduzido a becos sem saída. Parece que enquanto as populações aumentam geometricamente dinamizando de maneira aguda as relações sociais, inversamente as manifestações artísticas vêem minguar seus públicos e, como que excluídas do poderoso processo que movimenta a sociedade contemporânea, recolhem-se a seus guetos com suas diminutas platéias.

          Fato característico e, a meu ver, revelador do distanciamento entre espetáculo e público é a perda que o teatro vem sofrendo, nos últimos três séculos de seus conteúdos narrativos. O que era elemento constitutivo do espetáculo entre os gregos ou mesmo na época de Shakespeare hoje se limita a resquícios, praticamente. Uma ou outra reminiscência deste ou daquele personagem nos informam que a narrativa também está presente num espetáculo, como um apêndice de que, se não estiver inflamado, não se percebe a existência. O fato é que os conteúdos narrativos numa peça teatral não são apenas elementos estilísticos e sua perda corresponde a um prejuízo tão gigantesco que chega quase a descaracterizar a arte teatral. Atualmente tomamos arte dramática como sinônimo de arte teatral esquecendo-nos de que a arte da narrativa sempre teve lugar marcante na arte teatral. E, dada a importância da conjugação dessas duas artes no teatro creio ser útil abrir um parêntese para a discussão desse tema.

O "ONTEM" E O "AQUI E AGORA"

          Existem, a meu ver, dois elementos fundamentais que estruturam o que se convencionou chamar fenômeno teatral. E não é coincidência que esses mesmos elementos estejam também presentes tanto no mito quanto no rito religioso: o aqui e o agora. Teatro é uma arte efêmera e presente e isso quer dizer que sua existência se dá no momento em que o espetáculo acontece em sua relação com o público. Terminado o espetáculo, terminou a arte teatral. Teatro é uma arte que só tem existência em seu momento presente. Isso parece uma obviedade, mas é sua própria essência. Teatro é a ação presente, a emoção presente, o ator e o público presentes. Teatro não é simplesmente uma história contada, é uma experiência viva, na definição de Eric Bentley. Sensações como êxtase, gozo, catarse, emoções, alheamento, vivência além do concreto da existência, são elementos necessariamente presentes tanto no rito religioso quanto no mito ou no teatro. Com uma grande diferença: embora a experiência viva, o "aqui, agora" defina o teatro, há outro elemento que o separa tanto da religião quanto do mito e lhe dá outra geometria e alcance.

           Teatro, embora seja um bem do espírito é também algo profano, concreto, onde o êxtase é algo comedido, onde as alturas das emoções - que podem não ter limites no rito religioso - são circunscritas ao mundo real. No teatro, o contato com o espiritual não é um fim em si, como no rito religioso o contato com a divindade é o objetivo final. No teatro, e não falamos apenas do teatro grego, o êxtase necessita de um sentido, um lógos, uma razão. Ouso até refletir que o lógos também está presente nas religiões, afinal existem a doutrina, os preceitos e se não existissem, existe a organização, a geometria do rito. Religião e arte, no entanto, abrigando os mesmos elementos possuem objetivos opostos: o lógos na religião visa ao êxtase, ao contato com o divino, à teofania. Na arte, o êxtase é código de acesso ao logos, ao re-conhecimento da trajetória humana. Teatro é também uma forma de saber.

          Reflito que se a ação teatral no geral e os diálogos, no particular, dizem respeito ao presente, à re-presentação, ao "aqui, agora", a narração diz respeito aos fatos acontecidos, ao ontem, ao passado. Bem, fatos acontecem em determinado lugar e em determinada época. Por conseqüência, o universo preferencial da narração é o universo histórico, o tempo e os acontecimentos concretos da história do homem. E, nesse sentido, a narração funciona como código de acesso ao lógos, ou seja, tem o poder de inserir, com vantagens, na ação teatral o território concreto das relações humanas (sociais, políticas, econômicas e outras) onde se dá a trajetória dos personagens. O personagem, assim, através da narração, se insere no território, no tempo e no espaço históricos, e, aí, busca um sentido pra sua ação e para sua existência. E desse conflito, das relações entre a personagem e seu universo histórico é possível surgir o lógos, a razão entre dois elementos contraditórios: personagem e meio.

           Isto posto, uma questão se levanta, óbvia: Não é possível obter-se o lógos tão somente com a ação representada, sem a inserção da narrativa? A resposta é também um óbvio "sim". Mas por que, então, os gregos e Shakespeare utilizavam tanto a narrativa? Não seria porque a narrativa potencializa a representação? E se ela tem essa potência como isso se dá na cena?


O SISTEMA NARRATIVO

          O teatro desde o seu surgimento tem sido um sistema integrado de elementos épicos e dramáticos: em épocas mais remotas com forte predominância de elementos épicos e em épocas mais recentes com mais acentuada presença do elemento dramático. No século XIX o equilíbrio desses elementos foi fortemente alterado. Uma série bastante grande de fatores contribuiu para isso. E o teatro tornou-se um sistema fundamentalmente dramático. O exílio da narrativa no teatro provocou distorções. Uma delas pode ser verificada na artificialidade de alguns textos melodramáticos, no idealismo extremado, na bonomia inverossímil, no caráter maniqueísta de seus heróis e vilões. Os personagens, extraídos do contexto das relações humanas reais, tornam-se apenas emblemas de virtude ou vício. Afastados do fazer real, das relações humanas, a única realidade que resta é a subjetividade dos sentimentos. O teatro torna-se mais e mais "sentir", torna-se mais êxtase e emoção e menos saber.

           Nesses textos melodramáticos é até admirável a capacidade técnica dos seus autores em provocar emoção no público com personagens absolutamente desprovidos de humanidade. Personagens nessas peças são ferramentas hábeis para extrair emoção das platéias, mas muitas vezes não são, absolutamente, personagens pertencentes ao mundo real. A emoção paira exacerbada na atmosfera, mas carece de sentido. Talvez seja por isso que, hoje, nos causa riso o tom exageradamente emotivo desses velhos textos. Foi contra essa emoção fora de contexto que Brecht se insurgiu e com seu teatro épico propôs um novo re-equilíbrio dos elementos épicos e dramáticos presentes no teatro.

          Mas o ostracismo da narrativa no teatro provocou outras mudanças. O espetáculo teatral tomou uma nova configuração: de arte sonora, cujo sentido privilegiado de acesso era a audição (em inglês, platéia ainda é audience) o espetáculo teatral tornou-se algo a ser, em primeiro lugar, visto. O público torna-se espectador, aquele que vê. Isso provocou alterações profundas na relação do espetáculo teatral com o público. Este passa a assistir o espetáculo. Esse "assistir" não é desprezível nem deixa de ser uma boa relação com a platéia, mas o fato é que fomos levados ao esquecimento de outras relações. No bojo do assistir, a quarta parede torna-se de fato uma instituição e o ato teatral torna-se profundamente representado. O espetáculo começa a acontecer fundamentalmente no palco. O assistir à representação ainda preserva a imaginação do público, mas, talvez, como menos intensidade.

          No sistema narrativo, ao contrário, o público é o interlocutor privilegiado, a relação "olho no olho" entre personagens no palco transfere-se para "olho no olho" entre ator/narrador/personagem e público. A ponte obstruída pela "quarta parede" é novamente aberta. O sistema narrativo também lança mão da maior contribuição que público pode trazer ao espetáculo: uma imaginação ativa. Através da narrativa o público é também construtor das imagens do espetáculo e o espetáculo teatral, ao invés de ser um sistema predominantemente sensível, torna-se também um sistema fortemente imaginativo[4].

          No entanto, a vantagem maior do sistema narrativo é que ele não exclui o vigor da representação dramática. Ao contrário, a abriga dentro de si, possibilitando inumeráveis combinações entre narração e representação. O limite é, de fato, a imaginação do palco e da platéia.

CONCLUSÃO

          Esta é, de fato, uma conclusão precária. Tanto no que se refere às infinitas possibilidades do sistema narrativo quanto no que diz respeito a alguns tópicos levantados nesta generalizada reflexão. Cada um dos elementos e afirmações aqui levantados exigiria espaço maior, reflexão mais arguta e, seguramente, a contribuição de outros artistas e teóricos interessados no tema.

          O que podemos concluir dos elementos aqui expostos é que a restauração da narrativa e o aprofundamento da pesquisa cênica em torno de suas características (a transmissão de experiências humanas e não de meras informações é apenas uma delas ) pode se juntar a uma série de iniciativas que visam a restauração de um imaginário comum entre palco e platéia e, a partir disso, construir um novo relacionamento. Bertolt Brecht com seu teatro épico apenas iniciou um caminho que pretendia um novo equilíbrio entre os elementos épicos e dramáticos existentes no teatro. Peter Weiss, Heiner Müller, Bernard-Marie Koltés e outros aprofundaram esse caminho, mas a pesquisa das possibilidades do sistema narrativo apenas se inicia. Creio firmemente que o sistema narrativo é um sistema de ganhos. É um sistema complementar ao sistema dramático/representativo e não exclui nenhuma conquista desse último. Ao contrário, provoca, lança desafios a todos os criadores e re-introduz o público como elemento construtor do espetáculo teatral. Sem a imaginação do público o teatro narrativo não existe.

          Ao propor a partilha imaginativa de experiências humanas, o teatro narrativo solicita algo além da mera geometria estética. Propõe e pede a restauração da antiga unidade entre o público e o privado, o indivíduo e sua comunidade, a força progressista e de ruptura da imaginação individual e a solidez do imaginário coletivo.
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Luís Alberto de Abreu é dramaturgo e estudioso de dramaturgia. Há mais de dez anos desenvolve estudos nessa área com autores jovens, no Grupo dos Dez (São Paulo) e Grupo ABC de Dramatugia (Escola Livre de Teatro de Santo André). Prepara livro sobre a relação entre a estrutura dramatúrgica e os mitos e arquétipos. Escreveu "Foi Bom, meu Bem?", "Bella Ciao", "Lima Barreto, Ao Terceiro Dia" e "Guerra Santa", entre outras peças. Há sete anos mantém , em São Paulo, com o diretor Ednaldo Freire a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, o Projeto de Comédia Popular Brasileira. Atualmente voltado ao teatro narrativo desenvolve pesquisas que tem como base o teatro Nô, visando à criação de uma forma teatral breve e intensa. Entre suas peças criadas dentro do sistema narrativo destacam-se "O Livro de Jó", dirigida por Antonio Araújo com o Grupo Teatro da Vertigem, "Iepe" e "Till Eulenspiegel", com a Fraternal, dirigidas por Ednaldo Freire.
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