terça-feira, 14 de maio de 2013

UM RETRATO RETOCADO DE WILDER


Autora relata, "com reservas", a vida e a obra do premiado dramaturgo americano

BLAKE BAILEY , THE NEW YORK TIMES - O Estado de S.Paulo

          Ao escrever suas memórias, Tennessee Williams visitou Thornton Wilder após a estreia de Um Bonde Chamado Desejo (1947). Wilder - então no auge com Pulitzers por Our Town (Nossa Cidade) (1938) e The Skin of Our Teeth (A pele de nossos dentes), de 1942 - menosprezou a obra de Williams com o ar de alguém "emitindo uma bula papal", nas palavras de Williams. Uma "dama" como Stella, declarou Wilder, jamais se casaria com um "grosseirão" como Stanley Kowalski. "Esse sujeito", refletiu Williams sobre seu colega na época, "nunca teve uma boa transa". Com a perspicácia que o levaria a ser, possivelmente, nosso maior dramaturgo do pós-guerra, Williams acertou na mosca.

          É fato que Wilder conseguiu suas inibições honestamente. Seu pai, Amos, havia sido um esnobe bem-intencionado: como editor e proprietário de The Wisconsin State Journal, gostava de dizer que o seu era o primeiro diário a recusar anúncios de bebidas alcoólicas, e, mais tarde, como um cônsul-geral inepto da Colônia de Hong Kong da Coroa Britânica, ele cuidou que nada mais forte do que suco de uva e água fosse servido na festa de 4 de julho no consulado, até então uma comemoração bastante efusiva.

          Thornton e sua irmã mais nova, Charlotte, foram obrigados a fazer promessas de temperança para toda a vida e junto com seus irmãos eram contemplados nos sabás com leituras tempestuosas da Bíblia e de The Pilgrim's Progress. Impor Bunyan a criancinhas não pode ser perdoado, mas houve coisa muito pior: preocupado com "os modos efeminados" de Thornton, Amos atormentava o jovem por causa de seu interesse pelo teatro, e o proibiu de fazer o papel de Lady Bracknell na produção da escola preparatória masculina de A Vantagem de Ser Prudente.

          Afora isto, Amos considerava Thornton um "ótimo rapaz", embora se desesperasse por ele não ganhar a vida de maneira apropriada. Após um derrame, em 1928, Amos ficou inteiramente dependente do filho sonhador. A essa altura, as pretensões artísticas de Thornton haviam dado frutos, e a recompensa só cresceu ao longo dos anos. Primeiro escritor a ganhar o Pulitzer tanto para teatro como para ficção - o último por seu segundo romance, A Ponte de São Luis Rey (1927) - , Wilder cultivou um vasto público com temas recorrentes em sua obra, derivados principalmente de James Joyce, nada menos.

          Popularizado em Our Town, a peça se tornou prato obrigatório em quase todo teatro de colégio ou comunidade da Terra. Aliás, para Wilder, até um curioso fiasco deu um jeito de dar certo: em 1938, ele deu sequência a Our Town com The Merchant of Yonkers (O mercador de jovens), que só teve 39 apresentações; a peça foi posteriormente refeita, com mais sucesso, como The Matchmaker (O agente matrimonial), e finalmente, em 1964, como o musical Hello, Dolly! Superficialmente, ao menos, a vida de Wilder pareceu um sucesso quase injustificado. Como adolescente romântico, ele esperava pular a faculdade e simplesmente viajar e escrever e acidentalmente tropeçar em escritores a quem admirava.

          Exceto pela parte de pular a faculdade, o resto seguiria em grande parte conforme o planejado: durante toda sua vida, ele viajou constantemente, enquanto formava amizades não só com escritores a quem admirava (Hemingway, Gertrude Stein), mas também com uma multidão de pessoas do mundo dos espetáculos e até o campeão de boxe peso pesado Gene Tunney.

          Com a morte de suas mais fiéis correspondentes - Stein e a decoradora de interiores Sibyl Colefax - Wilder se descobriu "são e salvo", e tratou de se distrair ainda mais com Finnegans Wake, cujo texto ele decodificou por muitos anos. Não espanta que tenha aberto mão daquela promessa de temperança, embora fosse melindroso demais para se tornar um verdadeiro bebedor pesado; ele usava o álcool, em parte, mais para mitigar a timidez para melhor divertir estranhos em bares distantes com os tesouros de sua mente bem preparada.

          Quando um primeiro biógrafo, Richard H. Goldstone, sugeriu que essa vida podia ter sido menos do que ideal, Wilder se indignou: "Dificuldades? Decepções? ... Fiz um sucesso retumbante com meu segundo livro ... ganhei o Pulitzer com minha primeira peça. E as amizades - Bob Hutchins, Sibyl Colefax (400 cartas), Gertrude Stein, Ruth Gordon (centenas de cartas divertidas, até esta semana)".

         Em Thornton Wilder - A Life (Harper/HarperCollins Publishers, 832 págs., US$ 40), Penelope Niven está em grande parte disposta a tomar essa apologia pelo valor de face (400 cartas!), e faz de tudo para enfatizar que Wilder era, afinal, um homem decente. A maior parte do seu dinheiro era gasta ajudando a família: ele comprou uma casa para a mãe sofrida e pagou uma série de hospitais caros para a irmã esquizofrênica, Charlotte.

          Quanto a seu pai religioso e intimidador, Thornton com frequência sentia "uma raiva terrível" das "perpétuas" tentativas do homem de "afogar sua personalidade", mas tratou de recordar vezes sem conta as "qualidades maravilhosas" de Amos.

          Segundo a biógrafa, Wilder deixou revelações profundamente privadas de sua vida em diários, cartas e manuscritos. Ou Niven e eu discordamos sobre o que seja revelação, ou ela está guardando as melhores para si. O que Niven nos dá dessas cartas, com pouca exceção, é a bonomia construída do Wilder público; os diários parecem só ter apontamentos sobre sua obra, meditações tediosas sobre Finnegans Wake, coisas assim, e a estranha reflexão - decorosa - sobre a sua pessoa.

          Os últimos 25 anos de Wilder foram comprimidos em 100 das 703 páginas do livro, e não é por menos: nada de muito divertido pareceu ocorrer ao pobre homem. Ele finalmente deixou Finnegans Wake de lado e escreveu um par de romances mais decentes: The Eight Day (1967) e Theophilus North (1973). Além disso: bem, ele viaja; escreve em seu diário; viaja um pouco mais; aceita um prêmio; viaja. Finalmente, em 1975, e não cedo demais para seu leitor, o bom sujeito morre aos 78 anos.

          O segredo de polichinelo, é claro, é a orientação sexual de Wilder, em torno da qual Niven faz alguns circunlóquios estranhos. A primeira menção explícita ao homossexualismo ocorre na página 99, em referência a um "jovem dançarino" cujas cartas "sugerem interesse em Thornton" embora Wilder "parecesse não ter consciência disso".

           Cinquenta e tantas páginas depois, sobre um ator, Wilder declara que ele era a "coisa mais divina que já tinha visto". Mas Penelope trata de nos lembrar - um sem número de vezes - que Wilder era um homem discreto e o assunto é muito privado. Por outro lado, admite, em muitas palavras, que as vidas dos irmãos de Wilder também foram marcadas pela repressão sexual. Charlotte foi a mais franca sobre o tema e sugeriu seu sofrimento nos poemas de Monólogos da Repressão, enquanto declarava que nunca conseguira uma "consumação homossexual" porque era "frígida demais" até para beijar. A desolação de semelhante vida - que seu irmão certamente conhecia bem - foi talvez "uma raiz importante para o colapso dela", segundo Niven.

          Então, porque Niven reluta em discutir essa raiz no caso de Thornton? Deixemos que ela o diga: "Divergem as opiniões sobre se a vida sexual de um escritor é um campo legítimo para a apreciação pública a menos que ela sirva de tema e/ou matéria temática para o trabalho artístico, ou a menos que tenha, com a cumplicidade do escritor, emergido ao conhecimento público como uma força definidora na vida e na obra. Um homem muito privado" - e assim por diante.

          No entanto há evidências de que o próprio Thornton Wilder desfrutou de uma consumação ou duas (não obstante fugazes e assustadas) com um Samuel Steward, que escreveu sobre o encontro num livro em 1981. Niven ataca Steward como uma freira rígida brandindo uma régua com luvas à prova de germes.

          Primeiro, ela questiona sua credibilidade e diz que ele apresenta seus fatos "ligeiramente distorcidos", a saber: 43 anos após o fato, Steward alegou que ele e Wilder tinham passado "seis ou sete dias" juntos em Zurique, e não os dois dias e meio que os dois revelaram em relatos contemporâneos. Outras coisas duras são ditas contra o caráter de Steward até Niven admitir, a contragosto, que "é possível acreditar" numa bissexualidade de Wilder. Dito isso, Thornton Wilder foi (vocês sabem) "um homem profundamente privado", e devemos proteger sua privacidade "não por hipocrisia, mas por respeito aos outros e por ele mesmo."

          Por onde começar? Antes de mais nada, é "possível acreditar" que, em certo nível, Wilder não era em absoluto um homem especialmente "privado"; era solitário, e há uma diferença aí. Mais ainda: Wilder era um homem com centenas de amigos, mas não íntimos de verdade, e para os primeiros estava disposto a contar tudo sobre a sua vida.

          Ele era "privado", especificamente, sobre sua vida sexual quase inexistente, talvez porque não conseguisse achar palavras para transmitir o assunto mesmo para si mesmo. A quem Niven está protegendo com seu canto sobre privacidade? Wilder? A morte de Wilder, e abandona-se um certo grau de privacidade ao morrer (ou assim pensava Voltaire: "Aos mortos devemos apenas a verdade").

          "Será que algum ser humano percebe a vida enquanto ele a vive?" interroga-se a Emily morta, melancolicamente, no fim de Our Town. Nessa linha ouve-se um pouco da tragédia pessoal de Thornton Wilder, e a da humanidade em geral. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
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