quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Biografia

Flávio Nogueira Rangel (1934 - 1988). Destacado encenador, pertence à primeira geração de brasileiros na era pós-Teatro Brasileiro de Comédia. Atua em muitos conjuntos e constrói sólida e prestigiada carreira, revelando especial talento para os musicais, em que alia a capacidade de trabalhar com grandes elencos ao acabamento estético dos espetáculos.

Ainda aluno de direito, em 1956, inicia sua vida artística escrevendo e adaptando textos para teleteatros do Grande Teatro Tupi. Inicia-se profissionalmente no Núcleo Experimental do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em 1957, colocando em cena realização não muito feliz, Do Outro Lado da Rua, de Augusto Boal, integrando um programa com Matar, de Paulo Hecker Filho, dirigido por Walmor Chagas.

Em 1958, ganha o Prêmio da Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCT), como revelação de direção pela encenação de Juventude Sem Dono, de Michael Vincent Gazzo, peça que trata da presença de um drogado em ambiente familiar.

Em 1959, dirige para o Teatro Popular de Arte (TPA), o espetáculo GimbaPresidente dos Valentes, de Gianfrancesco Guarnieri, com Maria Della Costa vivendo uma mulata de morro carioca. Flávio realiza um espetáculo exuberante. Trata-se de um grande painel que introduz algo de exótico em seu naturalismo, através das cenas de samba e gafieira, ao mesmo tempo que busca movimento e ação através de grandes cenas coletivas, como a invasão policial ou as reuniões dos moradores. Evidenciado no Brasil e no exterior, apresenta-se no Festival do Teatro das Nações, em Paris, Roma e Portugal. É a consagração, para um jovem com menos de 25 anos e pouco mais que estreante.

Com bolsa de estudo, viaja para os Estados Unidos. Estagia em grandes teatros da Broadway e percorre o circuito universitário. Essas viagens são decisivas para sua formação artística, colocando-o em contato com a prática teatral mais moderna da época. Aprende não apenas iluminação como também o rigoroso trabalho nas coxias, espaço onde os maquinistas operam a mágica de cena.

Em 1960 é convocado por Franco Zampari para assumir a direção artística do TBC, o primeiro brasileiro a ocupar tal posto. Imprime ao repertório corajoso apoio à dramaturgia brasileira, escorado no sucesso que os textos nacionais desfrutam junto ao público, após o renovador movimento desencadeado pelo Teatro de Arena.

Os espetáculos que cria na casa tornam-se sucessos firmados não apenas no apelo nacionalista como em sua habilidade em tratar as massas cênicas, movimentações complexas e explorar o teatralismo das situações.

Leva à cena O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, em 1960, tendo Leonardo Villar como protagonista, e no ano seguinte, A Semente, de Gianfrancesco Guarnieri, texto que enfrenta dificuldades junto à administração do teatro e à Censura. Ambos os espetáculos alavancam a carreira do encenador, que acumula os prêmios Saci, Governador do Estado de São Paulo e Associação Paulista de Críticos Teatrais, APCT, de melhor diretor nos dois anos consecutivos. O crítico Décio de Almeida Prado assim descreve a escritura cênica do diretor: "O Pagador de Promessas, sucedendo a Gimba, já nos permite fixar algumas das características de Flávio Rangel como encenador. A sua primeira virtude é saber enxergar o espetáculo como um todo. Ele não vê a palavra impressa, mas a representação, incluindo-se nela os elementos mímicos e musicais (com preferência pela música popular autêntica) que servem para completar e prolongar o alcance do texto. Daí o prazer sensorial, por assim dizer, físico, que este seu espetáculo nos proporciona".

Desde Gimba, Flávio trabalha com o cenógrafo Cyro Del Nero, detentor de apurado senso arquitetônico e teatral nas soluções cênicas desse período. A montagem seguinte, Almas Mortas, de Nikolai Gogol, é vista com ressalvas, mas não abala seu prestígio, recuperado com A Escada, de Jorge Andrade, texto sobre os conflitos familiares transcorridos em apartamentos e partes comuns de um edifício, novamente premiado como o melhor diretor de 1961.

Abrindo a temporada de 1962, obtém novo êxito com A Morte de Um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, levando Dionísio Azevedo e Cleyde Yáconis a grandes desempenhos. Com A Revolução dos Beatos, de Dias Gomes, desliga-se do TBC, com o intuito de transpor Gimba para o cinema, o que só ocorre anos depois. Assume em 1964 o desafio de encenar Depois da Queda, de Arthur Miller. Primeira montagem do texto fora dos Estados Unidos, gira em torno da acidentada relação do escritor com a atriz Marilyn Monroe. Flávio utiliza hábeis jogos de luz na cenografia geométrica de Flávio Império e obtém de Paulo Autran, como Quentin, e Maria Della Costa, como Mag, interpretações amadurecidas e comoventes, resultados que o levam a montar a peça em Buenos Aires, no ano seguinte.

Em Santa Joana, de Bernard Shaw, montagem de 1965, a pressa não o deixa ir além da discrição. Para o Grupo Opinião, ao lado de Millôr Fernandes, escreve e dirige Liberdade, Liberdade,  no mesmo ano, que lhe dá prestígio e poder de voz no debate em torno da liberdade de expressão. Num ato de protesto contra um pronunciamento demagógico do presidente Castelo Branco na reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), no Rio de Janeiro, é preso com outros intelectuais, soltos após semanas de protestos da classe artística. Marcado, desde então, por seus posicionamentos políticos, Flávio passará a escrever crônicas para o Pasquim, desde 1969, o que o conduzirá novamente à prisão, em 1970, e para a Folha de S.Paulo, entre 1978 e 1984.

Duas realizações teatrais competentes seguem-se: O Sr. Puntila e Seu Criado Matti, de Bertolt Brecht, em 1966; e Édipo Rei, de Sófocles, com Paulo Autran no papel-título, em 1967. Faz um espetáculo seguro e fluente lançando Consuelo de Castro em À Flor da Pele, sua segunda obra, em 1969; e cria uma pungente versão para Esperando Godot, de Samuel Beckett, com Walmor Chagas e Cacilda Becker, último espetáculo da atriz, que sofre derrame cerebral no intervalo de uma das apresentações.

Nos primeiros anos da década de 1970, Flávio está às voltas com superproduções, nem sempre bem-sucedidas, mas que solidificam sua condição de artesão da ribalta: uma versão sombria para Hamlet, de William Shakespeare, em 1969, e Abelardo e Heloísa, de Ronald Millar, em 1971. Segue-se A Capital Federal, de Artur Azevedo, magnífico painel da sociedade carioca no século XIX, musical com coreografias de Márika Gidali e cenários de Gianni Ratto, dois colaboradores constantes a partir de então. O Homem de la Mancha, de Dale Wasserman, em 1972, traz Bibi Ferreira de volta ao teatro depois de oito anos na televisão. Em 1973 é a vez de Dr. Fausto da Silva, de Paulo Pontes, montagem com desavenças no elenco, e, no ano seguinte, Pippin, musical da Broadway sobre a vida de Carlos Magno, de Roger O. Hirson e Stephen Schwartz.

A partir de 1975, passa a alternar realizações artísticas com comerciais. Dedica-se a Mumu, a Vaca Metafísica, de Marcílio Morais, obra ligada ao teatro de resistência e metafórica alusão ao milagre econômico; e À Margem da Vida, de Tennessee Williams, em 1976, com Beatriz Segall e Ariclê Perez, em belas atuações num cenário todo em transparências de Tulio Costa. Fracassa na primeira encenação de O Santo Inquérito, de Dias Gomes, no Rio de Janeiro, bem-sucedida um ano após, com Regina Duarte, em São Paulo; além de A Nonna, do chileno Roberto Cossa, obtendo ótimo resultado com Cleyde Yáconis, em 1980.

Na seqüência comercial estão Tudo Bem no Ano que Vem, de Bernard Slade, comédia com Tarcísio Meira e Glória Menezes, 1976; Investigação na Classe Dominante, uma adaptação sua para Está Lá Fora o Inspetor, de J. B. Priestley, em 1979; No Sex...Please!, comédia inexpressiva, e O Rei de Ramos, musical de Dias Gomes e Chico Buarque, com Paulo Gracindo vivendo o Bicheiro Mirandão, 1979. Também uma nova versão para O Pagador de Promessas, com Tony Ramos encabeçando o elenco.

A partir dos anos 1980, assume, sem mais "desvios", sua tendência natural para musicais, dirigindo em 1982, Amadeus, sobre a vida de Mozart, mais uma demonstração de argúcia para espetáculos complexos. No ano posterior, intervém diretamente no texto de Pam Gems, Piaf, tornando a encenação aclamada pela crítica e pelo público, e marcando um momento iluminado de Bibi Ferreira sobre os palcos. Vargas, porém, outro musical de Dias Gomes e Ferreira Gullar, gera polêmicas com políticos do Rio de Janeiro, e nem a aparatosa montagem e a presença de Paulo Gracindo entusiasmam a platéia.

No elogiado e prestigiado espetáculo de 1984, Freud, no Distante País da Alma, texto mediano de Henry Denker, Flávio encaminha Ariclê Perez e Edwin Luisi para excelentes desempenhos, como o jovem Freud cuidando da neurótica Elizabeth. A Herdeira, um melodrama baseado em Henry James, e Negócios de Estado, comédia de Louis Verneuil, com Vera Fisher na cabeça do elenco, são dois momentos menores de um diretor que, no ano seguinte, realiza seu último e bem-sucedido vôo: Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, 1985, a frente da Companhia Estável de Repertório (CER), com Antonio Fagundes e Bruna Lombardi à frente de aparatosa montagem cenografada por Gianni Ratto e vestida por Kalma Murtinho. Esses dois profissionais acompanham Flávio na maior parte de suas encenações, colaborando efetivamente para o sucesso de suas realizações.

Diretor de inovadores shows musicais, soube conduzir a cantora Simone, repetidas vezes, a desempenhos cheios de garra. Suas crônicas jornalísticas foram reunidas em quatro títulos: Seria Cômico Se Não Fosse Trágico, A Praça dos Sem Poderes, Os Prezados Leitores e Diário do Brasil.
Morto em 1988, Flávio tem uma vasta folha de serviços ao teatro brasileiro, onde a dedicação ao ofício mostra-se em patamar superior, visível nas palavras de Gianni Ratto, seu cenógrafo predileto: "[...] o Flávio tinha prazer em erguer o espetáculo. Era um homem de teatro, um diretor de idéias, de colocações práticas. Ele partia de um entusiasmo em relação ao texto, que era contagiante. Ele vinha com o entusiasmo e as idéias. Idéias não teóricas, mas interpretativas. Eu assimilava estas idéias e tentava, imediatamente, interpretar o que ele dizia. Fazia rabiscos e mostrava pra ele. Aí ele partia e ia à frente. [...] Era um processo de osmose. Ele agia como eu acho que um diretor deve agir: te solicitar, te estimular. E nos ensaios, era a mesma coisa. Ele reunia a companhia, explicava tudo. Depois mandava cada um ler solto, à vontade. Aí ele entrava com as observações. Mas cada um se sentia motivado a fazer. Tanto que os espetáculos dele podem ter sido criticados ou não, mas todos eles eram muito unitários. Tinham uma força de união muito grande porque todo mundo estava motivado. Esta motivação eu acho que é a coisa mais importante que um diretor, pelo menos do ponto de vista técnico, tem de realizar. Quando você consegue isso, carismar a companhia, aí a coisa vai".1

Notas1. RATTO, Gianni. Depoimento. In: SIQUEIRA, José Rubens. Viver de teatro: uma biografia de Flávio Rangel.  São Paulo:  Nova Alexandria, 1995. p. 224.

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Exttraído de Itaú Cultural

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