segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Duas vezes um quarto (2x1/4)"

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Belos textos em ótima montagem



Lionel Fischer



Decidido a acabar com a própria vida, um potencial suicida conhece uma prostituta em uma espelunca. Ela o informa que cobra cem reais por um programa "completo". O homem oferece quinhentos reais, mas afirma que deseja unicamente ser ouvido por ela. Os dois seguem para o quarto da prostituta e iniciam uma relação totalmente inesperada. Este é o enredo de "A dama da Lapa".

Uma inundação de proporções bíblicas assola uma cidade. Confinados no banheiro de um prédio, um escritor e uma ex-modelo iniciam uma relação bizarra. Ao que tudo indica, ele precisa de estímulos externos para escrever. Ela materializa esses estímulos. Presta-se a determinados caprichos do escritor, mas ao mesmo tempo os questiona. Este é o enredo de "Dilúvio em tempos de seca".

De autoria de Marcelo Pedreira, os textos estão sendo exibidos simultaneamente no Teatro 3 do Centro Cultural Banco do Brasil, sob o título "Duas vezes um quarto (2x1/4)". "A dama da Lapa" ganha sua primeira versão, enquanto que "Dilúvio em tempos de seca" já foi montada duas vezes. Com direção assinada pelo autor, o espetáculo tem elenco formado por Carla Marins e José Karini ("A dama da lapa") e Lucas Gouvêa e Guta Ruiz ("Dilúvio em tempos de seca").

Embora os contextos sejam diferentes, fica óbvio que ambas as peças têm como tema central a solidão, certamente decorrente da dificuldade que, em maior ou menor grau, todos sentimos no tocante ao estabelecimento de relações, em especial as afetivas. Como se faz para equacionar as diferenças? Como se deve proceder para, sem renunciar à própria singularidade, respeitar integralmente a do outro? Ou nada mais nos restaria a não ser nos conformarmos com um encontro em que uma das partes se anula? Mas isso não seria um encontro, e sim a aceitação de um doentio jogo de poder.

Enfim...o amor ainda é possível? Seria ainda viável em um tempo como o nosso, que prioriza o individualismo, o egoísmo e o "se dar bem" a qualquer preço, sem levar em conta qualquer resquício de algo que parece destinado ao esquecimento, como a ética?

Para tais questões, evidentemente, não tenho respostas precisas. Nem o autor se empenhou em fornecê-las. Mas teve, digamos, a salutar "inconveniência" de abordar outros temas sem relação direta com o amor, mas igualmente pertinentes, tais como o não raro penoso processo de criação artística, a hesitação diante de vários caminhos possíveis, a aparente impotência de se reverter algumas escolhas equivocadas etc. 

Ou seja: Marcelo Pedreira expõe feridas, pouco se importando se as mesmas podem ou não um dia cicatrizar. Mas talvez nos sugira, ainda que muito sutilmente, que reflitamos sobre nosso passado, pois do contrário estaríamos condenados a repeti-lo. Se esta ponderação procede, poderia concluir que o autor, ao menos em alguma instância, estaria nos dizendo: "se você se recusa a refletir sobre o que você foi, você o será sempre". E tal postura excluiria, inexoravelmente, qualquer possibilidade de transformação e, portanto, de felicidade - mas é claro que o que acabo de formular se resume a uma hipótese e, como tal, sujeita a todos os enganos.

Com relação ao espetáculo, Marcelo Pedreira impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Valendo-se de marcações eventualmente violentas e exacerbadas, às vezes impregnadas de uma espécie de ternura que só nasce do mais profundo desespero, o encenador consegue criar uma atmosfera cuja claustrofobia não se resume à exiguidade do espaço, mas fundamentalmente à de almas como que intoxicadas por um veneno que parece não ter cura. 

No tocante ao elenco, poderia tecer considerações sobre cada performance. No entanto, é tamanha a unidade do conjunto, tão visceral sua capacidade de entrega, tão comovente a forma com que todos se dispõem a um mergulho profundo nas questões mais dilacerantes dos ótimos personagens que interpretam que opto por manifestar meu entusiasmo, minha admiração e minha gratidão pela maravilhosa noite que me proporcionaram. 

Na equipe técnica, Paulo Denizot assina uma cenografia que atende a todas as necessidades da montagem, sendo igualmente muito expressiva sua iluminação, certamente responsável pela enfatização dos muitos climas emocionais em jogo. Cabe também destacar a ótima trilha sonora de Marcelo Pedreira e o impecável visagismo de Diego Nardes.

DUAS VEZES UM QUARTO (2X1/4) - Texto e direção de Marcelo Pedreira. Com Carla Marins, Guta Ruiz, José Karini e Lucas Gouvêa. Teatro 3 do CCBB. Quarta a domingo, 19h30.
  



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