terça-feira, 16 de setembro de 2014

Teatro/CRÍTICA

"A estufa"

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Ótima versão de obra inédita de Pinter


Lionel Fischer



"Roote é o diretor-geral de uma instituição que, parece, abriga doentes mentais. Mas podem ser também presos políticos. Ele é massacrado pela burocracia estatal e cercado de pessoas esquisitas, como o eficiente e ambicioso Gibbs, a sedutora e ardilosa Srta. Dutts, o indecifrável e alcoólatra Lush, o inquieto Lamb e assim por diante. Na noite de Natal, acontecem dois eventos que vão balançar a instituição: um dos 'internos', - que também são chamados à vezes de 'pacientes' e são identificados por números - aparece morto e uma outra paciente dá à luz um bebê. A partir daí, os personagens são envolvidos por uma trama repleta de surpresas e revelações, com muito mistério, sexo e violência".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo e o contexto de "A estufa", de Harold Pinter, em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim. O texto, escrito em 1958 e inédito no Brasil, chega à cena com direção de Ary Coslov e elenco formado por Mario Borges (Roote), Isio Ghelman (Gibbs), Paula Burlamaqui (Srta. Cutts), Pedro Neschling (Lamb), Marcelo Aquino (Lush) e Thiago Justino (Tubb e Lobb).

Como ocorre em praticamente todos os textos de Pinter, este pode ser interpretado de várias maneiras. Mas me parece claro que dois temas predominam: o poder avassalador e enlouquecedor da burocracia (e aqui o autor evidencia forte influência de Kafka), e as conturbadas e caóticas relações interpessoais sob um regime ditatorial. No entanto, e ao contrário do que pode imaginar o espectador não muito familiarizado com as obras de Pinter, os temas mencionados são trabalhados de forma simultaneamente séria e muito engraçada, sendo que o humor deriva da aparente incompatibilidade entre os fatos e a forma como os personagens lidam com eles.

No presente caso, um homem aparece morto: teria sido natural a sua morte ou um crime foi cometido? Uma mulher dá à luz: mas quem seria o pai? Tais perguntas, naturalmente, jamais são respondidas com clareza, cabendo à plateia chegar às suas próprias conclusões. E no tocante aos principais temas acima mencionados, a burocracia assume aqui conotações de medonho pesadelo, mas a tal ponto que se torna impossível não rir dos indecifráveis mecanismos que a norteiam, das mesma forma que as relações pessoais entre os personagens acabam se tornando simultaneamente trágicas e cômicas, posto que centradas em artimanhas que, supostamente inteligentíssimas, no fundo revelam uma canhestra obviedade. 

Um dos primeiros textos de um dos mais brilhantes dramaturgos ingleses de todos os tempos, "A estufa" recebeu irretocável versão cênica de Ary Coslov. Especialista no autor, Coslov impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, conseguindo materializar uma imprescindível atmosfera de estranheza, seja através de inusitadas e imprevistas marcas, seja através da maestria com que trabalha os tempos rítmicos. Afora isto, e por ser também um excelente ator, Ary Coslov extrai do elenco atuações maravilhosas. A começar pela do protagonista, Mario Borges.

Ator de vastíssimos recursos expressivos, Borges esgota todas as possibilidades do ótimo personagem que interpreta. Estressado, histérico, chegado a rompantes operísticos e ao mesmo tempo impotente diante de um sistema que jamais chega a compreender, o Roote materializado pelo ator é uma verdadeira dádiva para todos aqueles que amam a dificílima arte de interpretar. O mesmo se aplica a Isio Ghelman, o ator mais elegante do teatro carioca - e ainda mais, como no presente caso, vestindo um impecável terno. Isio é possuidor de notável inteligência cênica, afora um refinado humor que lhe permite, através de comedidos gestos e igualmente comedidas inflexões, transmitir uma vasta gama de significados.

Na pele da Srta. Cutts, Paula Burlamaqui exibe aqui a melhor performance de sua carreira. A personagem é lúbrica e ardilosa, e tais "virtudes" são trabalhadas muito bem pela atriz. Mas é também imperioso ressaltar sua capacidade de fazer aflorar seu lado mais frágil e desprotegido, indispensável para que a personagem não se restrinja aos seus aspectos meramente epidérmicos e deixe transparecer o que os olhos não enxergam.

Pedro Neschling faz muito bem o dispneico e algo acrobático Lamb, valorizando com a mesma eficiência sua paixão e ingenuidade. Marcelo Aquino também exibe desempenho sedutor vivendo o misterioso e alcoólatra Lush, em especial da metade para o fim da montagem, quando o personagem começa a sair dos eixos. Vivendo Tubb e lobb, Thiago Justino revela presença e segurança em personagens com menores possibilidades.

Na equipe técnica, considero irretocáveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta oportuna e curiosa empreitada teatral - Biza Vianna (figurinos), Ary Coslov (cenário e trilha sonora), Aurélio de Simoni (iluminação), e Isio Ghelman e Ary Coslov, responsáveis pela magnífica tradução.

A ESTUFA - Texto de Harold Pinter. Direção de Ary Coslov. Com Mario Borges, Isio Ghelman, Paula Burlamaqui, Pedro Neschling, Marcelo Aquino e Thiago Justino. Casa de Cultura Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.

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