quarta-feira, 31 de maio de 2017

Teatro/CRÍTICA

"ELA"

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Sensível abordagem do amor e da finitude

Lionel Fischer



"Clara e Isabel são lindas, jovens, talentosas e vivem um grande amor. Mas o sentido da vida entra em xeque diante do diagnóstico de ELA. Cada vez mais ausente fisicamente, o tempo de Clara se expande em sua vida interior, comparecendo em cena através de memórias e delírios que nos fazem pensar no que seja a mente humana. Enquanto isso, com apoio de Paula, médica e amiga de infância, Isabel dá conta da realidade, galgando íngremes fronteiras com poder e coragem que jamais soube que poderia ter. Embora a doença as tenha enfraquecido, ELA fortaleceu os laços que as une".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "ELA", de autoria de Marcia Zanelatto. A montagem esteve em cartaz até o último domingo no Teatro III do CCBB, e retorna à cena em 31 de Julho, no Teatro Sesi, com a mesma equipe - Paulo Verlings na direção e elenco formado por Carolina Pismel, Elisabeth Monteiro e Patrícia Elizardo.

Ao contrário do que parece - ao menos para os que não assistiram a montagem - ELA não é um pronome e sim o nome de uma doença degenerativa incurável, que aos poucos, mas de forma inexorável, paralisa os movimentos, ainda que mantendo o cérebro intacto. Ou seja: o portador de tal moléstia jamais perde a consciência do final que o aguarda, assim configurando um quadro terrivelmente trágico.

Como explicitado no parágrafo inicial, estamos diante de uma bela história de amor, teoricamente fadada a durar por muito tempo - o casal alimenta, inclusive, o desejo de ter um filho. Mas aí entra em cena o mais indesejado dos personagens, que podemos chamar de Destino ou simplesmente a Vontade de Deus - há uma cena em que Isabel implora a Deus para que Clara não lhe seja levada, até que, finalmente convencida de que seus apelos são inúteis, lança terríveis imprecações contra o Senhor.   

Como todos sabemos, tudo pode acabar a qualquer momento. Mas a certeza de que existe um curto prazo e que nada pode alterá-lo, gera normalmente duas escolhas. A primeira: uma espécie de resignação, de aceitação do inevitável. A segunda: o desejo desesperado de encontrar uma saída, de acreditar que possa existir algum tipo de tratamento, ainda que não testado o suficiente, mas que talvez dê algum resultado. 

E é isso que Isabel faz, apelando à amiga médica para que tente tudo, insistindo não ser possível a inexistência de uma ínfima possibilidade senão de cura, mas ao menos de retardamento do inevitável. Mas não existe essa possibilidade e Clara acaba propondo que ambas se separem, assim objetivando evitar o atroz sofrimento de Isabel. Mas esta não aceita, como jamais aceitaria alguém que ama verdadeiramente.   

Estamos, portanto, diante de um contexto de alta dramaticidade, que a autora enfatiza através de alternâncias no tempo - se por um lado logo percebemos que a personagem está condenada, tal condenação se torna ainda mais dolorosa quando vemos as personagens felizes, fazendo planos ou até mesmo se desentendendo, o que sempre ocorre com todos os casais. 

Ou seja: se a estrutura narrativa fosse cronológica, a peça nos mostraria o início da relação entre Isabel e Clara, o aprofundamento desta relação, a decisão de morarem juntas e assim por diante, até o momento do diagnóstico. A partir daí, e sempre respeitando a cronologia, tudo se limitaria à forma como as personagens lidariam com a doença. Essa estrutura não seria equivocada e também poderia gerar um texto do mais alto interesse. Mas as já mencionadas idas e vindas no tempo nos obrigam a uma permanente alternância de emoções - ora nos encantamos com o amor entre as personagens, e torcemos por este amor, ora nosso coração se aperta, pois já sabemos o que vai acontecer. Neste sentido, Marcia Zanelatto chega a ser cruel, mas como sua crueldade é de natureza artística, está completamente perdoada.

Outro fator a destacar neste ótimo texto diz respeito às memórias e delírios de Clara, às reflexões que faz sobre seu passado e sobre sua condição atual, as primeiras impregnadas de encantamento e doçura, as segundas de uma lucidez que a leva a perceber que, se por um lado seu corpo se paralisou, em contrapartida sua mente se expandiu. Se não fosse a doença, Clara jamais teria se conhecido tão profundamente. E é isso que contribui ao menos para minimizar sua consciência da própria e próxima finitude.

Bem escrito, contendo ótimos personagens e diálogos que traduzem exemplarmente todos os conteúdos em jogo, ELA recebeu excelente versão cênica de Paulo Verlings. E aqui não me refiro tanto às marcações, ainda que expressivas, mas sobretudo à sua atuação junto ao elenco. E neste particular gostaria de manifestar minha admiração pela coragem do diretor no que diz respeito à valorização dos silêncios. Há momentos em que palavras não são capazes de expressar uma dor que as transcende e então o encenador aposta tudo no grito que não sai, no corpo petrificado pela angústia, nas lágrimas que a alma despeja e que escorrem lentamente por um rosto dilacerado. Sob todos os aspectos, Paulo Verlings evidencia notável capacidade de extrair o máximo do elenco.

Na pele de Isabel, Carolina Pismel exibe a melhor performance de sua carreira, valorizando de forma impecável as principais características da personagem, dentre elas sua personalidade forte, algo intempestiva e autoritária, mas também capaz de amar de forma incondicional e de ser incondicionalmente solidária nos momentos mais dolorosos. Elisabeth Monteiro também exibe atuação irrepreensível, tanto nas passagens amorosas e divertidas quanto naquelas em que se vê obrigada a lidar com a tragédia que sobre ela se abateu. No papel da médica, Patrícia Elizardo funciona como uma espécie de contraponto entre Clara e Isabel, vivendo de forma intensa e convincente os momentos mais dolorosos e, quando o contexto permite, evidenciando ótimo potencial de comediante.

Na equipe técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Mina Quental (cenografia), Marcelo H (direção musical), Lavínia Bizzotto (direção de movimento), Flavio Souza (figurino), Fernanda e Tiago Mantovani (iluminação), Verônica Machado (preparação vocal) e Vini Kilesse (visagismo).

ELA - Texto de Marcia Zanelatto. Direção de Paulo Verlings. Com Carolina Pismel, Elisabeth Monteiro e Patrícia Elizardo. A montagem volta ao cartaz em 31 de julho, no Teatro Sesi.









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