quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Os embrulhos

                                                                                              Peça em 1 ato de
                                                                                              Maria Clara Machado


Personagens:
                        um casal de velhos
                        uma criada jovem
                        um homem
                        figurantes-maquinistas

Cenário:
                        Sala de estar da casa dos velhos. Uma janela dando para o exterior. Uma porta fechada que se supõe dar para fora e outra dando para as dependências da casa. Uma poltrona rodeada de embrulhos pequenos e grandes e de caixas com papel e barbantes. Uma cesta cheia de pequenos objetos. Uma mesa ao centro, cheia de papéis para embrulho. Uma escrevaninha com pequenos embrulhos e alguns livros. Um telefone.

(Quando abre o pano, o Velho está terminando de colar alguns selos num álbum. Ouve-se o barulho de um trator. O Velho pára e olha a janela. Depois guarda todos os selos dentro do álbum e começa a embrulhá-lo. Ouve-se o telefone tocar. Cessa o ruído do trator. O Velho olha o telefone em desafio. Chega a Velha com uma caixa cheia de barbantes. Pára e interroga, com os olhos, se deve atender. O velho faz que sim)

Velha (Ao telefone) - Pronto! Sim...sim...(Faz sinal para o Velho) Mas o que é que nós temos com isso? Não, ele não atende mais. (Ouve, espantada) Recebemos muitas, mas não abrimos nenhuma. (Olhar triunfante para o Velho)
Velho - A primeira!
Velha - Só abrimos a primeira. (Escuta. Fica muito espantada e aflita. Depois, tapando o telefone) Hiii...ele está falando tanta coisa! (Ouve) O que? Ah, isto eu não sei. Um momento. (Deixa o fone e se dirige ao Velho) Nós temos alguma coisa a ver com a estrada nova que vai passar por aqui, Neguinho?
Velho (Pegando o telefone) - A estrada nova que arrange outro lugar para passar. Se estão tão impacientes que arrangem outro lugar para passar essa estrada. Já...já recebemos muitas sim, mas não abrimos nenhuma. Não abro nada que venha desse departamento. (Ouve) Pois que venham. Venham para ver. E querem saber de uma coisa? (Pára. A Velha, que tinha se afastado rindo, volta muito alegre com uma caixa cheia de cartas)Alô! Alô! (Desliga. A Velha joga as cartas para o ar) Não se meta com estas cartas, Neguinha. Isto não são assuntos que te interessam.(Começa a apanhar as cartas)
Velha (Ajudando a catar as cartas e repetindo quase cantando) - Não são assuntos que me interessam. (A Velha pega uma carta e começa a fazer uma brincadeira com o Velho) Esta foi a última. Vai abrir? (Os velhos se entreolham e começam uma brincadeira de esconde-esconde, o Velho perseguindo a Velha para pegar a carta)
Velho - Me dá...me dá...(Finalmente ela entrega a carta ao Velho, que olha o carimbo) O carimbo é de trasanteontem. Já sei o que está escrito! (Triunfante)
Velha (Fingindo mistério) - Já sabe?
Velho - Sei. Ordem de despejo! (Ouve-se o trator, ruídos de rua, cantos de crianças etc. O Velho se enfurece e vai até a janela) Com polícia, com caminhão, com trator...(Depois o ruído cresce e ouve-se um forte desmoronamento, como se alguma coisa estivesse sendo destruída. Entra pó pela janela. Os velhos tossem. Depois, um silêncio) E pensar que não estamos em guerra e que tudo é considerado legal. Bandidos! Não podem levar minhas coisas...não podem...são minhas...a casa é minha! É legal, é justo arrancarrem à força nossa própria casa? (Enquanto isso a Velha recomeça a embrulhar vários bibelôs. O trator recomeça o barulho) Trator desnaturado! Trator desnaturado!
Velha - Eles vêm? (Sempre embrulhando os bibelôs. O Velho fita a Velha e nada responde) Podem? (O Velho repete o mesmo jogo) Não quero, não! E tudo que a gente tem, tão arrumadinho...
Velho - Arrebentam tudo. Vi um trator passar por cima da casa dos Peixoto! (Barulho do trator) É uma coisa horrorosa. Dói ver destruir assim as coisas. As coisas que...(Trator)
Velha - Ah! Já sei! Tive uma idéia. A gente bota tudo num engradado, bem embrulhadinho, não estraga nada e levamos tudo conosco. (Pausa) Será que passa pela porta?
Velho (Com fúria) - Passa o que? O que você está dizendo?
Velha - Não estou dizendo nada de importante. Estava só pensando se as coisas podem sair por esta porta. Eu bem que te dizia que esta porta era muito estreita. (O Velho sai e volta com um embrulho, que coloca na porta) Quando a gente chegou aqui era diferente. A porta parecia mais larga. Enorme. Fomos pondo as coisas na casa, uma por uma. A porta até que parecia mais larga. Era uma porta...
Velho - Você já disse isso, Neguinha.
Velha - Já disse o que?
Velho - Que a porta parecia mais larga. Que a porta...chega!
Velha - Ah! Mas para sair, hum? Quando ela era toda verde, você se lembra? Tinha ali um vidro que era bonito. Mas fazia vasar muita luz, então você mandou botar tinta preta para a luz não entrar com tanta força. Depois, quebraram o vidro. Você colocou outro vidro mais forte. E também mais caro, você se lembra! O primeiro era cheio de florinhas pintadas. Não sei se de miosotes ou de crisantemos. Eu não me lembro mais...(Como em segredo) Dizem que ele passou por cima da casa dos Almeida também.
Velho - Eu vi.
Velha - Por que você não me contou?
Velho - Não ouviu o barulho?
Velha - Venho ouvindo muitos barulhos. Fico muito assustada. Muito mesmo, mas não sabia que era barulho de acabar com a casa dos Almeida.
Velho - Você se assusta à toa.
Velha - Você sempre querendo me assustar.
Velho - Eu já te assustei, já?
Velha - Uma vez, há muito tempo, quando comecei a coleção. (Pega a boneca) Você deixou cair a bonequinha menor...vou embrulhar. (Embrulha a boneca com carinho)
Velho - Mas nada se quebrou, não foi? (Ouve-se a voz da criada cantando na cozinha)
Velha - Graças a Deus!
Velho (Sai e volta com um embrulho) - Que sol horrível, hoje, Neguinha!
Velha (Espiando pela fresta) - E aquela poeira fedorenta que sai da casa dos Peixoto?
Velho - Então, cuidado! Deixa bem fechada. Ontem a criada deixou aberta e o sol  ia queimando a coleção.
Velha (Suspira) - Eles querem todos acabar com nossas coisas. (Apanha um objeto e começa a embrulhar) Não acho muito decente o governo despejar assim um casal de velhos que nunca fez mal a ninguém.
Velho (Trazendo outro embrulho) - Se cada um cuidasse de sua própria vida, em vez de se meter na vida dos outros...(Entregando-lhe outro embrulho). Passa outro papel de embrulho, Neguinha, a poeira aí de fora pode estragar. (Pausa) Você vai levar também o embrulho cor-de-rosa? (A Velha fita o Velho, que espera a resposta, da porta)
Velha - Não combinamos levar tudo, Neguinho? (O Velho sai) Traz mais jornal, Neguinho, que este aqui é pouco. (Terminado o embrulho que fazia, torna a embrulhá-lo. Barulho do trator) 0 que será que as pessoas procuram tanto nas estradas? Não sei para onde vão, e isso me deixa muito aflita. Às vezes sinto até palpitações, só de pensar para onde vão as pessoas nessas estradas...
Velho (Que vinha chegando) - Você não deve se afligir à toa, Neguinha.
Velha (Com o embrulho cor-de-rosa na mão, procura o barbante) - Prefiro barbante amarelo para os embrulhos cor-de-rosa. Para os embrulhos de jornal, prefiro barbante branco. (Ouve-se o som de uma caixinha de música. A Velha procura com rapidez no meio dos pacotes. Acha-a. Coloca-a dentro de outra caixa e embrulha com muito jornal até abafar a música) Tem ainda barbante branco, Neguinho? (O Velho entrega uma cesta cheia de barbantes) Quanto barbante eu colecionei, santo Deus! Também, tantos anos!
Velho (Sai e volta com algumas fotografias) - Como estão cheios de poeira, veja, Nenguinha, os álbuns!
Velha - Ah, os álbuns! (Folheando) Você tinha um cabelo preto...Ah! Aquela cadelinha chamada Zefa...morreu...eu acho, não é, Neguinho?
Velho - Morreu. Que retrato bem tirado! (Apanha na estante uma máquina fotográfica antiga) Com esta máquina aqui, lembra? (O Velho sobe na cadeira, faz que vai bater uma foto. Há um segundo de imobilidade, enquanto a Velha cobriu o rosto, rindo, atrás do álbum)
Velha - Embrulha bem ela, senão estraga a lente. (O Velho embrulha a máquina, enquanto a Velha folheia o álbum. Subitamente, arranca uma foto do álbum e joga ao chão) Você deixou isto aqui de propósito, só para me fazer maldade.
Velho (Apanha a fotografia) - Ele ainda era um menino, Neguinha!
Velha - Não quero levar ele...não quero.
Velho - Então a gente não leva.
Velha - Não quero.
Velho (Embrulha o álbum) - O retrato dele já grande eu tirei do álbum, logo depois que ele embarcou. Pensei que deste, quando ele ainda era um menino, você não se importava mais. (Sai)
Velha - Agora importo. Importo muito. (Pega uma jarrinha) Ah, a jarrinha vermelha! Vou embrulhar ela com papel azul e cordão branco! (O Velho volta com um engradado, contendo pássaros)
Velho - Você acha que os bichinhos vão bem aqui?
Velha - Ora, eles estão muito bem assim. Tudo quietinho e quente. Ainda bem que já foram empalhados, senão teriam muito medo do trator.
Velho - Que bobagem você está falando aí? Que trator? Fomos despejados, mas temos os nossos direitos. Só sairemos daqui levando tudo o que nos pertence e depois que tudo já estiver bem embrulhado. E só quando eu resolver. Se resolver...  
Velha - Sabe, ontem eu sonhei.
Velho - Você sonhou?
Velha - Sonhei que esse trator era mentira, invenção da empregada para tirar nossa casa. Acho que ela quer a nossa casa.
Velho - Se ela quer, vai querendo. A casa é nossa há mais de 40 anos.
Velha - É nossa. Você já disse isso e já mostrou os papéis.
Velho - Você sabe o que eu vou fazer? Vou embrulhar os papéis da casa. (Vai à escrivaninha)
Velha - Mas ela quer assim mesmo. Ontem vi ela na cozinha conversando com um homem...
Velho - Você ouviu?
Velha - Ela contava para ele do despejo e do trator, que já passou em cima da casa do lado. Contou também da estrada.
Velho - O que é que ela sabe da estrada?
Velha - Que a estrada é do governo e que vai passar por aqui. Depois ela riu.
Velho - Riu?
Velha - Muito!
Velho - Então, como é que você sabe que ela quer a nossa casa? Ela disse?
Velha - Não disse nada. Mas riu tanto que só pode ser.
Velho - Só pode ser o que?
Velha - Que ela tem inveja e quer tudo para ela. É nossa! Tudo, não é, Neguinho?
Velho - É, é nossa.
Velha (Começando a embrulhar os bibelôs) - Põe o dedo aqui, Neguinho.
Velho (Pondo o dedo no nó do embrulho) - O que é que ele disse?
Velha - Não disse nada. Mas ela, sempre rindo à toa, de inveja, pensou que não tinha ninguém olhando, porque eu estava escondida atrás do guarda-comida, então...ela tirou um pedaço de pão-de-ló e deu para ele comer.
Velho - E aí?
Velha - Aí eu apareci e perguntei a ela por que estava dando nosso pão-de-ló para ele, e ela disse...disse assim mesmo: “É meu amigo, dona Nenguinha, dei um pedacinho de pão-de-ló a ele...
Velho - E o que é que você disse?
Velha - Não disse nada, eu não sabia o que dizer. O que é que eu tinha que dizer, hein, Neguinho?
Velho - Você tinha que dizer que o pão-de-ló não era dela para estar distribuindo assim a torto e a direito para os que aparecem. (O Velho sai)
Velha - Nunca sei o que dizer numa hora dessas. (O Velho vai trazendo embrulhos de dentro do quarto, alguns maiores. A Velha começa a embrulhar uma árvore de Natal artificial, enquanto cantarola “Noite Feliz”). Não sei porque querem fazer essa estrada. Tudo já está tão parado, ordenado e em paz como está! (Trator)
Velho - Mania...
Velha - Ou então podiam abrir noutro sítio, e não derrubar a nossa casa. O mundo não é grande, Neguinho? Por que não abrem as estradas no mundo desses comunistas que andam por aí querendo tirar as casas dos outros? (A Criada começa a cantar) Se a gente não guarda os bolos e o pão-de-ló a sete chaves, ela abusa sempre.(O Velho ri) Você está rindo, Neguinho?
Velho - Sabe o que é? Estou me lembrando daqueles bolinhos de bacalhau que você escondeu no armário para ela não tirar, e ficaram estragados...
Velha - E o pior é que estragaram meu xale, você ri porque o xale não era seu.
Velho - Não precisa ficar zangada, Neguinha. Foi há tanto tempo...
Velha - Se eu tivesse deixado os bolinhos na cozinha, ela teria dado tudo para esse homem, igualzinho como o pão-de-ló.
Velho - Isso é verdade. (A Criada pára de cantar)
Velha - É preciso mandar fazer um armário de chave, na cozinha.
Velho - Vou mandar fazer.
Velha - Não quero mais essa empregada.(Ele não responde) Já disse que não quero mais essa empregada...
Velho - A gente manda ela embora.  
Velha - É por isso que tinha tão pouco pão-de-ló na mesa, antes do café. Só pude ganhar um pedacinho. Você percebeu?
Velho - Percebi. (O telefone toca. Os dois param de fazer os embrulhos e fitam o telefone)
Velha - O telefone está tocando.
Velho - Você pensa que eu sou surdo? (Empurra a Velha) Você tem mania de pensar que sou surdo. Já ouvi. (A Velha começa a chorar. O Velho atende). Sim. Por que insistem? Não li nada não, já disse. Ameaças, ameaças, ameaças. Onde é que nós estamos? Quero saber se pago imposto para ser protegido ou para ser despejado? Já disse que não ceito, pronto. (Desliga. Depois, procura uma carta na escrevaninha, fita o envelope)
Velha (Assustada) - Você vai abrir?
Velho (Rasgando a carta) - Pensam que me metem medo com palavras...(Pega um livro preto e o folheia) Preciso ensinar essa gente a cumprir as leis. Posso provar a eles que isso é violação de domicílio. Uma agressão contra o cidadão. Não sei mais onde é isso... (Impaciente) Neguinha, embrulha o meu código civil, junto com os outros livros. Não, é melhor você colocar os livros de direito num embrulho e os outros num outro. É!
Velha - Ponho a Bíblia junto com os livros de direito?
Velho - Não disse para pôr os livros de direito num embrulho e os outros num outro?
Velha - Não precisa ficar tão zangado. Eu só queria saber, porque a Bíblia também é preta e eu ia pôr os pretos todos num embrulho, os vermelhos num outro...
Velho - Está bem.
Velha  (Arrumando os livros pretos de um lado e os vermelhos do outro) - Ihhh! Os vermelhos estão todos comidinhos de traças.
Velho - Eu te disse para comprar aquele remédio de matar traças. Você não faz nada do que eu mando e veja o resultado! Os livros estão cheios de traças e de poeira. Tudo se estraga nesta casa.
Velha - E a culpa é minha, é? Não finja que não está ouvindo. Sei muito bem que você só é surdo quando quer. Você sabe muito bem que eu não gosto de comprar nada naquela loja.
Velho (Abre um armário e tira um vidrinho) - Comprei o remédio. (Entrega a ela um vidro)
Velha - Eu sabia, eu sabia que você acabava comprando. Um vidro cheinho! Fica aqui embrulhando os presentes, enquanto arranjo um papel cor-de-rosa para embrulhar todos os vidrinhos.(Sai com o vidro. O Velho fica embrulhando os livros pretos. Entra a Criada)
Criada - Posso falar no telefone, seu Neguinho?
Velho - Pode.
Velha (Da porta, vendo a Criada) - Embrulho o remédio das traças com os outros vidrinhos, Neguinho?
Velho - Pode embrulhar, mas cuidado com as rolhas, senão derrama tudo.
Velha - As rolhas! (A Velha sai. A Criada tenta ligar de novo. Fica impaciente. O Velho continua a fazer os embrulhos. A Velha volta da cozinha, fita a Criada) - Não sei onde está a caixinha de rolhas.
Criada - Pus no lixo, dona Neguinha.
Velha - Você pôs no lixo?
Velho - Por quê?
Criada - Alô! Alô! Diabo de telefone que nunca dá linha...Alô! (Bate o telefone)
Velha - Por que você pôs as rolhas no lixo?
Criada - Estava tudo podre.
Os dois - Podre!?
Criada (Ao telefone) - Alô! De onde fala? Quer fazer o favor de chamar o Alfredo aí ao lado...Botei fora também aquela outra caixinha de cacarecos. A gente não foi despejado? Boa hora para fazer uma faxina nesta casa. (Os velhos estão como que fascinados com a audácia da Criada) Alfredo? Não está? Pois diga àquele safado que eu liguei para ele, e que já sei de tudo do negócio dele com aquela puta. Tchau! (Desliga e sai)
Velha - Ela não tinha nada que botar a caixa de rolhas no lixo. Agora não sei como vou tapar os vidrinhos.
Velho - Não fique nervosa, Neguinha. Tenho outras rolhas guardadas aqui. (Tira um embrulho de rolhas)
Velha - Você pensa em tudo, Neguinho. Agora todos os vidrinhos vão ter rolhas novas.
Criada (Chegando com uma caixa) - Isso também vou botar no lixo, patrão, não serve mais.
Velho - Você...você...você não pode botar nada no lixo sem pedir licença, está ouvindo? Nada disso te pertence. (Toma a caixa da criada)
Criada - Deus me livre de fazer coleção de porcaria. Não tô aqui para discutir. Se o senhor não quer que ponha no lixo, então tira da cozinha, porque trabalhar assim não dá pé! (Sai)
Velha - Não disse, Neguinho, que ela não serve? Não quer cuidar das nossas coisas e ainda por cima fica espalhando por aí a história do trator e da casa dos Peixoto. E que o trator passou por cima...e dizendo que a nossa casa também...(O Velho se enfurece e bate com a caixa na mesa, espalhando as rolhas no chão. Aflita, a Velha começa a catá-las) Se você não tivesse guardado as rolhas novas, não teríamos uma só rolha para os vidrinhos.
Velho - Neguinha, vou falar com você pela última vez. Não toque mais nesse assunto de trator. Isso me põe nervoso.
Velha - Me põe nervosa também.
Velho - É coisa que não suporto é falta de consideração. Pensam que escrevendo umas cartinhas conseguem arrancar a casa de quem bem entendem. Pensam que com meia dúzia de telefonemas podem pôr para fora gente que nunca incomodou ninguém.
Velha - Para onde vai a estrada, hein, Neguinho?
Velho - Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe.
Velha - Também não sei e tenho raiva de quem sabe. (O Velho sai) Acho que a criada sabe para onde vai a estrada. E o homem também sabe. (A Velha começa a arrumar os cacarecos que a Criada deixou. O Velho volta arrastando um enorme embrulho, que continua a empilhar junto à porta de entrada).
Velho - Pensam que têm direitos sobre nós. Ninguém entra nesta casa. (Traz outro embrulho) A propriedade é minha. Aqui estão todos os papéis. Pensam que sou covarde! Que tenho medo de cartinhas ameaçadoras. Se não acreditam que a casa me pertence, aqui estão todos os papéis. (Agredindo o telefone) Claro que nesta hora ninguém vem em minha defesa. Aqui estão todos os papéis. (Mostra à Velha, que não entende nada e olha os papéis com o olhar vazio) Ninguém quer se meter com a vida dos outros. Incomoda, eu sei...(Voltando à Velha, que segura os papéis, medrosa) Aqui está. A certidão lavrada no 23º Ofício de Notas, Tabelião Avelar, em 12 de outrubro de 1923. O papel do Registro de Imóveis com a escritura definitiva. A promessa de venda! Cláusula irrevogável! Olhe! (Depois toma os papéis da Velha, vai até a janela e começa a berrar) Ninguém quer se meter com a vida dos outros. Aporrinha, eu sei. Todos estão vendo que querem destruir nossa casa. (Barulho de trator) O trator está aí para provar, olhem! Mas quem quer se meter? O que adiantam tabeliães, firmas reconhecidas, certidões...todos sabem que vou ser despejado e ninguém quer tomar partido. Por quê? Porque também têm medo de serem despejados. Fazem este barulho todo para celebrarem o meu infortúnio e verem o trator passar por cima de nossas coisas. De nossos embrulhos. Estão loucos de vontade de ver tudo se desmoronar em nossas cabeças. Mas se querem ver o nosso infortúnio é bom irem procurar outro lugar para infernar a vida do alheio, porque aqui nada acontecerá. Neguinha, traz outros embrulhos para empilharmos na janela também. Eles são capazes de querer entrar pela janela. (A Velha sai. Barulho de trator) E digo mais uma coisa: tratem de ir logo fazendo seus embrulhinhos também...
Voz da criada - Porcaria de pia entupida, que não vale mais nada!
Velho (Furioso) - Jogou fora as rolhas e disse que jogou porque estavam podres. O que é que ela sabe disso? (A Velha entra com enormes embrulhos, que entrega ao Velho, que continua a empilhá-los junto à janela. Depois o Velho se senta, furioso) Como pode se permitir de jogar fora coisas que são minhas. Minhas. Recolhidas numa vida toda? Estas coisas me pertencem! Me pertencem!
Velha (Entrando com umas estampas empoeiradas) - Veja, Neguinho, o que achei atrás da cômoda. Podíamos fazer um novo quadro e botar em cima do armário.
Velho (Observando a estampa) - Já está muito rasgada. Não dá mais para pôr no quadro.
Velha - Ah! Então eu vou embrulhar direitinho, junto com as outras estampas. (Sai e torna a voltar) Boto papel de seda em cada estampa?
Velho - É melhor botar. O papel de seda está na segunda gaveta.
Velha - Descobri também a Virgem Maria e o Menino Jesus.
Velho (Vendo que a Velha se perturbou) - O que foi Neguinha?
Velha - Estou com tanta raiva do Menino Jesus...acho que não vou embrulhar ele não.
Velho - E você vai deixar ele aí?
Velha - Eu disse a ele, quando embarcou, para ele levar tudo que era dele. Não tinha nada que deixar aqui o Menino Jesus.
Velho - Vá embrulhar o Menino Jesus, vá Neguinha.
Velha - Então, vou embrulhar ele sózinho, está bem?
Velho - Está bem.
Velha - Com papel de jornal.
Velho - Você está querendo botar ele de castigo?
Velha - Longe da mãe dele e do pai dele. (Entra no quarto) A mãe dele e o pai dele eu vou embrulhar em papel de seda com cordão dourado.
Velho - E ele?
Velha - Vai de jornal e barbante branco, daqueles grossos.
Velho - Você não esqueceu, hein?
Velha - Eu esqueço quase tudo, você sabe disso. Sabe? Esqueci de regar as plantinhas e elas morreram todas.
Velho - Morreram?
Velha - Morreram. (O telefone toca. Os dois ficam parados, olhando para o aparelho. O Velho puxa o fio telefônico e arranca-o da parede)
Velho - Agora quero ver se eles podem soltar palavreados em cima de mim. (Depois de muito rir e gritar, olha com desprezo o aparelho) Não nos amolam mais.
Velha (Pegando o fone) - Alô! Alô! Ficou mudo, mudinho. Sempre disse a você que isso aí só ia nos trazer aborrecimentos. E trouxe mesmo.
Velho (Segurando o fone, dando tapas e fazendo caretas) - Vamos, vamos! Grite agora, se tem força, que vai nos despejar! Conta essa história de estradas passando por cima de minha casa, de direitos do governo! Direitos! Quem são vocês? Quem são vocês contra mim? (Bate no telefone) Viu como é fácil? É só não permitir que ninguém se meta com a sua vida. (Enrola o fio no pescoço) É só arrancar o fio. (Torma a arrancar o fio com força e começa a puxar. Mas o fio tem mais de 20 metros e o Velho vai se cansando de tanto puxar. A Velha vem ajudar e ambos continuam a puxar. Finalmente, a Velha se cansa e dorme em sua cadeirinha, sempre com o fio na mão. O Velho continua, agora mais cansado, e já sentado também em sua cadeira. Finalmente, na ponta do fio aparece um bebê ligado a ele como a um cordão umbilical. O Velho levanta o bebê, tira uma tesoura da gaveta e corta o fio. Depois embrulha calmamente o bebê e volta ao telefone. Começa a falar como se estivesse livre das velhas ameaças) Alô, parou de xingar? Então o senhor não consegue falar mais? Responda agora se pode. (Faz caretas, dá tapas no telefone) Me explique direitinho agora porque querem adiar minhas férias. (A Velha acorda e pega a ponta do fio) Ah! Não responde? Necessidade de serviço. Que serviço? E os meus quinqüênios? Não saíram? Ah, agora está caladinho, hein, seu covarde! Seu covarde! E o navio? Vai me dizer que ele vai mesmo partir às 3 horas? (Nesse momento ouve-se um apito de navio. A Velha, que estava fingindo ouvir tudo na outra extremidade do fio, começa a puxar o Velho, que está enrolado pelo pescoço no fio. Há quase um enforcamento, enquanto se ouvem os apitos do navio. A Velha, num acesso de raiva, começa a puxar até que o Velho, quase estrangulado, consegue falar) Neguinha!
Velha (Como que acordando) - Eu não quero que isto continue a falar, já disse que não quero. Isso não pode mais gritar. (Pega o telefone e começa a embrulhá-lo. Quando já está passando o barbante, ouve-se de novo o apito. Assustada, ela aperta o barbante até cessar completamente o som do navio. O Velho descobre um chapéu velho na sua escrevaninha. Coloca na cabeça. Depois tira um espelho e começa a mirar-se nele)
Criada (Entrando) - O gás acabou, patrão.
Velho (Alheio, continuando a olhar-se) - Acabou...
Criada - E agora, patrão?
Velho - Usa o álcool e o fogareiro.
Criada - O fogareiro? (Pausa) Mas o gás, o senhor vai reclamar, não vai?
Velho - Reclamar, o quê?
Criada (Sem entender nada) - Eu, hein? (Sai)
Velha - Ela é bem desaforada. Parece que nunca viu um fogareiro. (Pausa) Por que será que acabou o gás?
Velho - Governo.
Velha - Sabe o que eu estava pensando, Neguinho?
Velho - Não, não sei não.
Velha - Se os passarinhos não fossem empalhados, eles iam sentir muita falta de ar dentro desse engradado.
Velho - Mas eles estão empalhados, e muito bem empalhados.
Velha - Ainda bem, senão eles iam sentir muita falta de ar. Passarinho empalhado tem vantagens: não suja a gaiola, não tem vontade de voar pelas árvores. Porque passarinho foi feito, primeiro, para voar nas árvores, nas nuvens, nos navios. (Sons de pássaros e de navio apitando) Só depois é que ele resolveu ser passarinho de gaiola. (Enquanto ela fala, descansa a mão sobre a mesa e o Velho, distraidamente, começa a embrulhar seu braço. A Velha, ao ver que ele está embrulhando sua mão, a princípio fica muito espantada, mas depois dá um risinho) Está me fazendo cosquinha...(A Velha vai se deixando embrulhar até o braço.  O Velho, cada vez mais animado, continua embrulhando a Velha, e chega ao rosto. A Velha ri, como se isso fosse uma brincadeira) Quero só ver o barbante que você vai escolher para mim...
Velho - Você prefere fio dourado ou fitinha azul, Neguinha?
Velha - Não ligo. Só quero que você não aperte demais, está bem? Ah, isso eu não gosto.
Criada (De fora) - Porcaria de fogareiro enferrujado que não dá mais nada!
Velha - Psiu! Ela está brigando com o nosso fogareiro.
Velho - Você sabe por que que o gás acabou?
Velha - Como é que ia saber?
Velho - O gás acabou porque eles cortaram o gás (Continua embrulhando a Velha)
Velha - Eles podem fazer isso?
Velho - Não podem, mas fazem.
Velha - Nunca fui muito com essa gente do governo. Lembra do dia em que eles não deixaram você trabalhar mais?
Velho - Me aposentaram.
Velha - Eles podem, sem mais nem menos, aposentar assim as pessoas?
Velho - Podem. Fazem tudo para acabar com a vida da gente.
Velha - Por isso é que eu não vou muito com essa gente do governo.
Velho - Você já disse isso.
Velha - Você também não disse isso?
Velho - Disse, mas não precisa ficar repetindo tudo o que eu disse. E tira esse papel da cara que você está parecendo uma palhaça. (Rindo)
Velha - Você não estava fazendo um embrulho?
Velho - Tira esse papel da cara, que você está aprecendo uma palhaça! (Sai)
Velha - Foi você mesmo que fez eu ficar com esta cara de palhaça. (Chora)
Velho (Traz outro embrulho) - Se a gente conseguir pôr todos os embrulhos aqui na porta...
Velha - O despejo não pode entrar! Você sempre tem idéias ótimas, hein, Neguinho?
Velho - Você fala demais, Neguinha. Assim nunca conseguiremos embrulhar tudo. (Vai e volta algumas vezes, com embrulhos cada vez maiores. Sempre entrega à Velha)
Velha - Estou cansada, Neguinho. Gosto de fazer os embrulhinhos pequenos, mas os grandes me cansam muito. (Senta-se, exausta)
Velho - Deixa que eu faço os grandes. Já estou acostumado.
Velha - E também você tem mais força porque é homem. (Ouve-se um bate-boca vindo da cozinha. É a Criada com o Homem. Os velhos ouvem, atentos)
Criada - Digo e torno a dizer que você é um safado. Pensa que me faz de boba, é?
Homem - Não enche o saco! Você não tinha nada que me mandar recado pelo Alcides. Você sabe muito bem que ele vive me gozando. Tá ouvindo?
Criada - Não me empurra que eu não sou mulher de apanhar de homem nenhum.
Homem - Deixa de frescura, que vim aqui foi para pedir satisfação e não quero ouvir desaforo de mulher à toa! (A Criada entra, empurrada pelo Homem e quase cai sobre os embrulhos)
Criada - Olha aqui, seu filho da mãe, ou você me deixa em paz, ou ponho a boca no mundo! (O homem a empurra novamente e a Criada se esconde atrás dos embrulhos. Ele dá um pontapé em vários embrulhos, que se espalham)
Velho - Oh!
Velha - Este é o mesmo homem do pão-de-ló.
Homem - Puta de uma figa! (Dá-lhe um puxão e se agarra com ela, num beijo demorado. Ela se debate, mas finalmente cede. Enquanto eles se beijam, ouve-se um enorme desmoronamento. Mas os velhos só olham o casal)
Criada (Fugindo) - Tu é sem vergonha mesmo. (Corre para a cozinha, perseguida pelo Homem. Os dois riem, enquanto os velhos estão estatelados)
Velha - Espia, espia Neguinho, senão ela é capaz de dar a ele todo o nosso almoço. Não fico mais sem sobremesa hoje, já disse. (Espiando)
Velho - O gás acabou, ela ainda não cozinhou nada, nem vai cozinhar.
Velha - Já disse a você que não quero mais essa criada.  Ou então você compra um guarda-comida novo...
Velho - Vou mandar botar chave nova no guarda-comida. (Ouve-se outra gargalhada, depois sussurros)
Velha - Ela deve estar contando a ele sobre a estrada nova. Fica espiando bem, Neguinho, senão ela é capaz de dar todos os nossos mantimentos a ele.
Velho - Vou mandar embora essa criada. (De novo chegam gargalhadas da cozinha. Os velhos se fitam em silêncio)
Velha - Rindo à toa...que bobos.
Velho - Gozando da gente, só pode ser.
Velha - Ela tirou todo o nosso pão-de-ló, Neguinho, manda ela embora. Gosto tanto de pão-de-ló! (Ao espiar pela porta, a Velha deixa cair um embrulhinho, que se quebra. A Criada, atraída pelo barulho, vem até a porta e fica olhando. O Homem, por trás do ombro dela. Os velhos ficam envergonhados de estarem espiando) O embrulho caiu e quebrou...
Homem - Diga logo, anda!
Criada - Patrão, quero minhas contas. Vou-me embora.
Velha - Vai embora?
Criada - Vou.
Velha - Assim...sem a gente mandar primeiro?
Criada - Vou trabalhar no armazém. Ganhar mais.
Velha - Ganhar mais?
Criada - É, mais tutu! Grana!
Velha - E ganha-se mais, Neguinho, trabalhando por aí nesses armazéns?
Velho - Você não tem nada com isso, Neguinha.
Velha - E o nosso almoço? (Este diálogo entre os dois é sussurrado)
Velho (Alto) - E o nosso almoço?
Homem - Almoço, é? (Dá uma gargalhada, faz cócegas na Criada e saem. Os velhos fitam a porta por onde eles saíram. Depois, naturalmente, fecham a porta da cozinha e, enquanto conversam, vão empilhando outros embrulhos em frente dessa porta)
Velho - Você deixou cair o embrulhinho cor-de-rosa, hein, Neguinha?
Velha - E ficou tudo em pedacinhos.
Velho (Apanhando os cacos) - A gente só vai aproveitar o papel, para fazer outro embrulho.
Velha - Será que você não dá um jeito de colar os caquinhos?
Velho - Guarda com os outros caquinhos que depois eu vejo.
Velha - Já tem um monte assim de caquinhos. De todas as cores. Era uma jarrinha tão bonitinha! (Enquanto ela cata os cacos, o Velho empilha os embrulhos em frente da porta da cozinha) Não era você que ia despedir ela, Neguinho?
Velho - Era. (Ouve-se o trator)
Velha - Tudo por causa dessa estrada nova.
Velho - Pára de falar nessa estrada, já disse! Não quero ninguém nesta casa falando mais nessa estrada! (A Velha chora) E pára de chorar!
Velha - Era uma jarrinha bonitinha.
Velho - A gente arranja outra. Ela era faladeira.
Velha - E dava o nosso pão-de-ló para ele. E falava coisas que ninguém entendia. Eu tenho muita pena de ver jarrinhas tão bonitinhas se quebrarem. Principalmente as que têm florzinhas pintadas à mão. Neguinho, estou com um pouquinho de fome. Seria bom a gente almoçar.
Velho - Seria.
Velha - Sabe, Neguinho, deixei cair o embrulho da jarrinha por causa dela. Foi ela a culpada me assustando daquele jeito. Era uma criada má.
Velho - Era.
Velha - E ele ria de nós.
Velho - Ria.
Velha - Na certa ia também comer o nosso almoço. Ainda bem que foram embora.
Velho - É. (Senta à escrivaninha e começa a tirar os sapatos, que embrulha também)
Velha - Quando o despejo vier...
Velho - Quem falou em despejo? Já disse que não quero ouvir mais você falar nesse assunto. Não quero, está ouvindo?
Velha - Não falo mais...não falo mais...não falo mais...(Começa a chorar) Estou me sentindo muito mal. E também, com uma fome esquisita...
Velho - Oh, Neguinha, sente-se. Você está se abaixando demais, isso é ruim para o seu coração. Fica aqui neste banquinho que vou buscar fitinhas de todas as cores para você embrulhar os bibelôs. (Senta a Velha no meio da cena, perto do monte de embrulhos e sai. A Velha começa a embrulhar os bibelôs. O Velho volta com fitinhas) Verdes, azuis, amarelas...qual você prefere?
Velha - Gosto de todas. Só não gosto de fazer os embrulhos grandes. Esses me cansam muito.
Velho (Sentando ao lado dela) - Deixa que os grandes eu continuo a fazer.
Velha - Assim é que é bom. (Começam a fazer novos embrulhos. Ouve-se de repente um barulho de vozes, ao mesmo tempo em que a luz muda para luz de ensaio, e dois Maquinistas começam a tirar as paredes do cenário, os objetos de cena etc.)
1º maquinista - Cuidado com as dobradiças.
2º Maquinista - Mais para a direita, mais para a direita etc. etc. (Os dois vão tirando o cenário, enquanto se avista o fundo do palco, com escadas etc. Tiram algum material de cena e, junto, carregam também os velhos, estáticos, em suas cadeiras, como se fossem objetos de cena)

FIM

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Esta peça entrou em cartaz no Tablado em setembro de 1970. Texto e direção: Maria Clara Machado. Assistente de direção: Lionel Fischer. Cenário e figurinos: Marie Louise Nery. Música: Cecília Conde. Iluminação: Jorge de Carvalho. Elenco: Marta Rosman (Velha), Ramon Pallut (Velho) Lupe Gigliotti (Criada), Sérgio Maron (Homem), Lionel Fischer, Ricardo Newman e Martins ( Maquinistas).

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