quinta-feira, 23 de abril de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Através de um espelho"

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Dilacerado encontro familiar



Lionel Fischer



A exemplo das tragédias gregas, tudo aqui se passa em um espaço de 24h. Reunidos em uma ilha distante, os membros de uma família acalentam a esperança de que poderão aparar algumas arestas afetivas e desfazer mal-entendidos, passando então a desfrutar de agradável, pacífica e amorosa convivência. No entanto, em função da história pessoal de cada um, logo se percebe que só um milagre tornaria viável tal anseio. Senão, vejamos.

David é um escritor que atravessa um momento de bloqueio criativo e só se encontra com os filhos esporadicamente, pois passa a maior parte do tempo no exterior. Sua filha Karin padece de esquizofrenia e acaba de ter alta do sanatório onde estava internada. Max, seu irmão adolescente, e que também planeja ser escritor, não consegue estabelecer nenhum diálogo com o pai. O quarto personagem, Martin, é médico e marido de Karin, e logo no início da trama informa David que a doença de sua esposa aparenta ser incurável. 

Eis, em resumo, o contexto em que se dá "Através de um espelho", versão teatral do longa-metragem homônimo de Ingmar Bergman. O filme, de 1961, foi adaptado para o palco por Jenny Worton e agora chega à cena brasileira contando com nova adaptação de Marcos Daud e dramaturgia de Valderez Cardoso Gomes. Ulysses Cruz responde pela direção do espetáculo, em cartaz no Teatro Poeira. No elenco, Gabriela Duarte (Karin), Joca Andreazza (David), Marcos Suchara (Martin) e Lucas Lentini (Max).

Tratados já foram escritos sobre a presente obra e certamente por pessoas bem mais capazes do que eu. Ainda assim, permito-me umas poucas considerações a respeito de um dos pontos que mais me intriga em "Através de um espelho" e que desconheço se foi abordado como o encaro: a aguçada audição de Karin.

É sabido que esquizofrênicos podem ter vários tipos de delírio, dentre eles auditivos. Mas como isto é por demais óbvio, ouso supor - mesmo arriscando-me a irremediável ridículo - que Bergman estava muito mais interessado não em levantar hipóteses sobre o que Karin ouve, mas como ela ouve e o porquê do que ela ouve. Ou seja: questões meramente clínicas cederiam espaço a outras, essencialmente existenciais, espirituais ou até mesmo de natureza religiosa. Esta última hipótese, por sinal, é a que mais me atrai.   

Não sei se a personagem possui uma fé cristã. No entanto, a partir de um certo momento do espetáculo, comecei a achar que Karin, ao constatar que não consegue ser compreendida por aqueles que a rodeiam, começa a buscar conscientemente (bem mais do que em função de sua doença) algum tipo de consolo e acolhimento no plano espiritual. E quem poderia consolá-la e acolhê-la sem reservas, já que possuidor de infinita misericórdia e igualmente infinita capacidade de amar? Deus, naturalmente. 

Isto posto, e mais uma vez admitindo a hipótese de ter enveredado pelo lastimável campo do ridículo, torna-se imperioso destacar a magistral forma com que Bergman trabalha alguns de seus temas recorrentes, tais como a já mencionada incomunicabilidade entre os homens, o brutal sentimento de solidão, a relação com a morte e a dramaticidade inerente à criação artística, aqui materializados através de personagens brilhantemente construídos e diálogos que provavelmente Dostoiévski assinaria.   

Com relação ao espetáculo, Ulysses Cruz impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico - e aqui aproveito para destacar os impecáveis trabalhos de Marcos Daud (adaptação) e Valderez Cardoso Gomes (dramaturgia). Valendo-se de marcas criativas e expressivas, sempre capazes de enfatizar a claustrofóbica atmosfera em que se dá a ação, além disso o encenador exibe o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações de todo o elenco.  

Na pele de Karin, Gabriela Duarte exibe ótima voz (sobretudo quando trabalha os graves), impecável desenho corporal, notável capacidade de entrega e grande inteligência cênica, visível nas escolhas que faz. Sem dúvida, a atriz apresenta aqui a melhor performance de sua carreira. Joca Andreazza também convence plenamente vivendo o egoísta e algo cruel David, que não hesita em aproveitar a doença da filha como material de seu próximo livro - acredito apenas que o ator, possuidor de voz deslumbrante, talvez possa sujá-la um pouco em alguns momentos, atropelar eventualmente algumas falas, o que poderia contribuir para enfatizar ainda mais que, por trás de sua notória frieza, também existe um homem profundamente desesperado. 

Vivendo Martin, médico completamente devotado à esposa e sempre disposto a amenizar os sofrimentos dela, afora exibir comovente disposição para tentar aparar todas as arestas afetivas com as quais se depara, Marcos Suchara é uma fortíssima e sedutora presença em cena. Finalmente, Lucas Lentini consegue materializar as principais características de Max, adolescente atormentado com sua relação com o pai, com a arte e com a própria sexualidade.     

No tocante ao complemento da ficha técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de Leonardo Bertholini (direção de movimento), Renata Ferrari (preparação vocal), Lu Bueno (cenografia), Domingos Quintiliano (iluminação), Cassio Brasil (figurinos), Daniel Maia (trilha sonora original) e Yara Nagel (tradução).

ATRAVÉS DE UM ESPELHO - Texto de Ingmar Bergman. Versão teatral de Jenny Worton. Adaptação de Marcos Daud. Dramaturgia de Valderez Cardoso Gomes. Direção de Ulysses Cruz. Com Gabriela Duarte, Joca Andreazza, Marcos Suchara e Lucas Lentini. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h. 


















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