domingo, 26 de abril de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Meu Saba"

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Afetos e horrores no Sérgio Porto


Lionel Fischer



"O espetáculo se passa nos 30 segundos que Noa leva para se levantar e chegar ao palanque onde fará uma homenagem ao seu avô. Ela foi escolhida pela família para falar no dia do funeral de Yizhak Rabin. Insegura, ela revive emoções em um jogo narrativo que mistura as lembranças de infância marcada pela tragédia e resgatada pelo amor de sua família, o medo constante, o impacto caótico da guerra, o ódio de fora e também de dentro do país. Noa fala sobre o assassino de seu avô e os extremistas que nutrem a violência".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "Meu Saba", livremente inspirado no livro "Em nome da dor e da esperança", de Noa Ben-Artzi, neta do ex-primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, assassinado pelo direitista radical israelense Yigal Amir, que se opunha à assinatura dos Acordos de Oslo. 

Apenas para reativar a memória, gostaria de relembrar que estes acordos foram realizados na cidade de Oslo, na Noruega, entre o governo de Israel e o presidente da OLP, Yasser Arafat, mediados pelo presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton - as duas nações se comprometiam a unir esforços para promover o término dos conflitos, a abertura de negociações sobre os territórios ocupados, a retirada de Israel do sul do Líbano e questão do status de Jerusalém.

Contando com direção de Daniel Herz, adaptação de Herz, Clarissa Kahane e Evelyn Dizitzer, "Meu Saba" acaba de entrar em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto. Clarissa Kahane interpreta a única personagem.

Como implícito no parágrafo inicial, um dos componentes mais fortes do presente texto diz respeito à memória, tanto de acontecimentos trágicos como de outros, impregnados de afeto. Mas, além disso, a autora não se furta em empreender sólidas reflexões sobre o momento político de Israel e suas conturbadas relações com seus vizinhos árabes, tentando encontrar razões capazes de explicar o porquê de tão feroz inimizade.

Ao mesmo tempo - e aqui reside o grande achado dramatúrgico do texto e da montagem - a personagem revive os tais 30 segundos que a levam de seu lugar até o microfone, onde deve proferir algumas palavras sobre o avô. Esta caminhada é feita sobre um espécie de passarela de tijolos (metáfora de um mundo que tanto poderia se solidificar quanto ruir a qualquer momento), interrompida perto do palanque, sobre o qual um fuzil substitui o microfone - será que o poder das armas haverá de sobrepujar sempre o das palavas?

Ou seja: todo o texto, e o consequente jogo cênico, se estruturam em sucessivas indas e vindas no tempo, e igualmente no espaço. Recordações mais amenas e afetuosas são compartilhadas diretamente com a plateia, enquanto as mais dolorosas e dilaceradas são feitas sobre a mencionada passarela. E esta permanente alternância gera no público uma grande diversidade de sentimentos, pois ora nos encantamos com a relação da menina com seu avô, ora nos comovemos profundamente com os horrores vividos nos tais 30 segundos, que parecem durar uma eternidade - e aqui devo confessar que, por várias vezes, torci para que a personagem chegasse logo ao microfone, acabando não apenas com seu martírio, mas fundamentalmente com o meu.

Com relação ao espetáculo, acho que já deixei bastante claro que ele me tocou profundamente. Ainda assim, não custa nada enfatizar a capacidade do diretor Daniel Herz de trabalhar todos os conteúdos propostos pela autora de forma a valorizá-los ao máximo, tanto através de marcas de grande expressividade como de irretocável domínio no que concerne aos tempos rítmicos.

No tocante à performance de Clarissa Kahane, principal mentora do projeto, cumpre ressaltar sua notável capacidade de entrega e a paixão com que profere cada palavra ou executa cada gesto. Percebe-se que a atriz não está apenas encarnando uma personagem que lhe interessa, mas colocando sua alma no palco. E isso é maravilhoso. Ao mesmo tempo, também me parece claro que Clarissa Kahane ainda precisa trabalhar mais sua voz, conferindo à mesma maior potência e amplitude, o que certamente haverá de conseguir ao longo do tempo.

Na equipe técnica, Aurélio de Simoni materializa uma das melhores iluminações de sua brilhante carreira, conseguindo não apenas valorizar os muitos e diversificados climas emocionais propostos pelo texto, pela direção e pela atriz, mas também conferindo ao próprio espaço uma identidade emocional que poderia ser aferida mesmo que o palco estivesse vazio. Um brilho semelhante se faz presente na cenografia de Bia Junqueira, plena de símbolos altamente expressivos e portanto impregnada da mais alta teatralidade. Destaco também, e com o mesmo entusiasmo, as contribuições de Antonio Guedes (figurino), Antonio Saraiva (música) e Duda Maia (direção de movimento).

MEU SABA - Texto de Noa Ben Artzi. Adaptação de Clarissa Kahane, Daniel Herz e Evelyn Dzitzer. Direção de Daniel herz. Com Clarissa kahane. Espaço Cultural Sérgio porto. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h. 



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