sexta-feira, 17 de julho de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Sexo neutro"

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Visceral discussão sobre a condição humana



Lionel Fischer



"Uma mulher (Márcia) se transforma em homem (Cléber), mas não se sente segura(o) na escolha do gênero masculino e experimenta o colapso de sua identidade. Relato lírico dessa subjetividade cindida em duas (e diversas) vozes, o espetáculo acompanha as dificuldades de identidade do personagem, que não se sente confortável na escolha de nenhum gênero, sentindo de modo radical o trânsito entre o masculino e o feminino".

Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima explicita o contexto em que se dá "Sexo neutro", em cartaz no Teatro III do CCBB. João Cícero assina o texto e a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Cristina Flores e Marcelo Olinto.

Como se sabe, tratados já foram escritos (e continuarão sendo, ao que tudo indica, dada a complexidade do tema) sobre o conceito de gênero quando aplicado a homens e mulheres. Mas aqui não me parece que o objetivo do autor tenha sido o de contar a história mal sucedida de alguém que buscou encontrar-se em outro gênero e sim empreender uma reflexão sobre a imensa dificuldade que todos possuímos (quer desejemos ou não trocar de gênero) de vivenciar todas as nossas potencialidades, dentre elas as sexuais e as afetivas. 

Sim, pois desde o berço nos dizem que certas coisas são de homem e outras, de mulheres; que determinados sentimentos, atitudes, opções, desejos e assim por diante pertencem ao sexo masculino e jamais ao feminino; que para tudo funcionar a contento torna-se indispensável uma clara e perene separação entre os gêneros, como se homens e mulheres pertencessem a espécies diferentes. Trata-se, evidentemente, de uma grotesca falácia, provavelmente oriunda de questões relativas ao poder. E o presente texto ganha extrema relevância não por apontar eventuais caminhos ou hipotéticas soluções, mas por discutir aspectos vitais da condição humana.

Estruturado em forma de depoimento, ao qual se mesclam cenas envolvendo os dois intérpretes, "Sexo neutro" recebeu excelente versão cênica de João Cícero, cujo maior mérito reside no fato de propor uma relação despojada e crua com a plateia, não raro angustiante e extremamente desconfortável. Neste sentido, o desconforto dos personagens (às vezes pleno de desamparo, às vezes ácido e irônico) acaba se estendo aos espectadores - de minha parte, na asquerosamente bela cena de pedofilia, meu coração entrou em tal descompasso que imaginei que estava prestes a entrar em um processo de dispneia pré-agônica, como se fosse um personagem de Nelson Rodrigues. 

Com relação aos atores, creio que aqui seja irrelevante tecer considerações sobre aspectos técnicos, já que tanto Cristina Flores quanto Marcelo Olinto já deram inúmeras demonstrações de seus vastos recursos expressivos. O que me parece fundamental destacar, além da ótima contracena e imensa cumplicidade, é a possibilidade que ambos insinuam de não estarem apenas interpretando personagens, mas utilizando-os como porta-vozes de questões que também são suas - como Cristina Flores e Marcelo Olinto pertencem à espécie humana e, nunca é demais lembrar, são artistas, nada de humano pode lhes ser estranho e muito menos indiferente. Aos dois, portanto, parabenizo com o mesmo entusiasmo e agradeço a impactante experiência de vida e de teatro que me proporcionaram.   

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos neta mais do oportuna empreitada teatral - João Cícero (concepção do espaço), João Dalla Rosa (figurino), Tomás Ribas (iluminação), Dimitri BR e Alexandre Hofty (trilha sonora original), Diana Behrens (direção de movimento) e Evandro Machini (documentarista).

SEXO NEUTRO - Texto e direção de João Cícero. Com Cristina Flores e Marcelo Olinto. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 19h30










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