segunda-feira, 20 de julho de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Tribos"

........................................................
A surdez nossa de cada dia



Lionel Fischer



"Billy nasceu surdo em uma família de ouvintes, liderada pelo pai Christopher e pela mãe Beth e complementada pelos irmãos Daniel e Ruth. Ele foi criado dentro de um casulo ferozmente peculiar e politicamente incorreto. Adaptou-se brilhantemente às maneiras não convencionais de sua família, mas eles nunca se deram ao trabalho de retribuir o favor. Finalmente, quando ele conhece Sylvia, uma jovem prestes a ficar surda, Billy passa a entender realmente o que significa pertencer a algum lugar".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima explicita o contexto em que se dá "Tribos", de autoria da inglesa Nina Raine. Em cartaz no Teatro Sesc Ginástico, a peça tem sua versão cênica assinada por Ulysses Cruz, estando o elenco formado por Bruno Fagundes, Arieta Correa, Eliete Cigaarini, Guilherme Magon, Maíra Dvorek e Antonio Fagundes. 

Mesmo que centrada em um caso concreto de deficiência auditiva - - particularmente curioso, pois a família de Billy não lhe estimulou a aprender a linguagem de sinais, o que o obriga a fazer leitura labial - me parece que a peça trata fundamentalmente de um outro tipo de surdez, que nos acossa a todos, em maior ou menor grau: nossa cada vez maior intolerância para com o outro, nossa incapacidade de conviver com diferenças, nosso desprezo por opiniões que não coincidam com as nossas. 

Além disso, a solidão contemporânea se torna cada vez maior à medida que a maioria das pessoas já não consegue mais viver sem estar acoplada a uma série infindável de traquitanas tecnológicas, cabendo aqui destacar os famigerados fones de ouvido que, sob o pretexto de contemplar o indivíduo com musiquinhas (dentre outras graciosas benesses), nada mais fazem do que isolá-lo dos demais. Digressão feita, voltemos ao texto.

Se por um lado é inegável que a autora aborda um tema da maior pertinência e crie algumas cenas de forte impacto, em contrapartida acredito que alguns personagens poderiam ter sido contemplados com uma gama maior de matizes. É o caso, por exemplo, de Christopher. O fato de ele possuir uma personalidade autoritária e sarcástica não constitui nenhum problema; a questão é que ele se mantém autoritário e sarcástico praticamente o tempo inteiro, independentemente da evolução da trama. 

Outro fato que me chamou a atenção (e aqui a questão não se prende a matizes) diz respeito à personalidade de Daniel. No início da peça, ele exibe um comportamento, digamos assim, apenas um tanto peculiar, com discretíssimos movimentos de cabeça e oscilação no olhar. No entanto, e no espaço de poucos meses, ele se converte em um ser delirante, brutalmente acossado por vozes. O que será que operou nele uma tal metamorfose? Será que sua grave patologia já estava presente, ainda que de forma sutil, e eu não percebi?

Com relação à mãe e à irmã, ambas exibem personalidades bem definidas, ainda que pouco interessantes. Em contrapartida, a autora revela-se brilhante na construção de Billy e Sylvia. O primeiro é um jovem sensível, educado e prestativo, sempre empenhado em retribuir o carinho, ainda que questionável, de sua família. Mais adiante, no entanto, quando surgem alguns impasses, ele revela de forma apaixonada e comovente todas as carência de que padecia e até então ocultara. O mesmo interesse se faz presente em Sylvia: de início polida e parecendo algo intimidada, aos poucos a personagem, sem perder sua polidez, revela uma força e uma compreensão da realidade absolutamente admiráveis. 

No tocante ao espetáculo, Ulysses Cruz impõe à cena uma dinâmica que sabiamente abdica de inúteis mirabolância formais e investe naquilo que é prioritário em um texto desta natureza: a forte contracena entre os atores, indispensável para a apreensão e o fortalecimento dos múltiplos climas emocionais em jogo. E neste sentido Ulysses Cruz obtém ótimos resultados, em especial nos personagens de Billy e Sylvia, certamente os melhores e mais bem elaborados. Bruno Fagundes está brilhante na pele do jovem surdo, conseguindo materializar todas as nuances do personagem. E Arieta Correa exibe aqui uma das melhores performances de sua carreira, demonstrando grande autoridade e não menor inteligência cênica. Eliete Cigaarini (Beth) e Maíra Dvorek (Ruth) exibem desempenhos seguros, com Guilherme Magon (Daniel) defendendo com grande capacidade de entrega um personagem (a meu ver) mal estruturado. Quanto a Antonio Fagundes, o maravilhoso ator valoriza ao máximo o papel de Christopher, dele extraindo o máximo possível. 

No que diz respeito à equipe técnica, é de excelente nível a tradução de Rachel Ripani, sendo corretas as contribuições de Alexandre Herchovitch (figurinos), Lu Bueno (cenografia), Domingos Quintiliano (iluminação) e André Abujamra (trilha sonora).

TRIBOS - Texto de Nina Raine. Direção de Ulysses Cruz. Com Bruno Fagundes, Arieta Correa, Eliete Cigaarini, Guilherme Magon, Maíra Dvorek e Antonio Fagundes. Teatro Sesc Ginástico. Quinta a sábado, 19h. Domingo, 18h.

Nenhum comentário:

Postar um comentário