sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Teatro/CRÍTICA

"BR-TRANS"

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Poderoso brado contra a intolerância



Lionel Fischer



"Um processo cênico antropológico-autofágico-esquizofrênico traz à cena histórias sobre medo, solidão e morte. Histórias que se encontram e se confundem entre si e com a vida e as inquietações do ator. Recortes de vidas e vidas recortadas a partir de pesquisas e conversas com travestis, transformistas e transexuais de Porto Alegre, pelas ruas e casas de show. BR-TRANS é um trânsito de informações e de fatos reais. Um traço "brasil-trans" construído a partir da convergência e dos deslocamentos entre os polos Nordeste e Sul do país".

Extraído do ótimo release que me foi enviado pela assessora de imprensa Daniella Cavalcanti, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "BR-TRANS", espetáculo que após rodar o país e participar de importantes mostras e festivas aporta no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil. O cearense Silvero Pereira responde pela dramaturgia e atuação, estando a direção a cargo da gaúcha Jezebel De Carli.

Há um provérbio latino que diz: "Sou homem: nada de humano me é estranho". Ou seja: contemos tudo que se refere à natureza humana. Isso significa que há em mim, potencialmente, tanto um Hitler quanto um Mozart. E se a maioria de nós opta pelo segundo, isso não quer dizer que o primeiro tenha sido deletado - dependendo das circunstâncias, ele pode perfeitamente emergir. E é o que acontece com muitas pessoas quando se deparam com travestis, transformistas ou transsexuais. As mais moderadas ainda se contentam com  olhares de desprezo ou discretas ofensas; mas muitas partem para agressões infames, covardes e que não raro resultam na morte do agredido - ou pelo menos em ferimentos gravíssimos. Mas por que essas pessoas agem assim, se não foram em nenhum momento molestadas?

Embora tenha feito análise por mais de 15 anos, acho que me bastaria ter lido um trecho da "orelha" de qualquer livro de Freud para concluir que o que incomoda àqueles que agridem homossexuais não é a diferença, mas a semelhança. Ou a possibilidade de semelhança. Quem agride um homossexual, seja com palavras ou atitudes, está apenas descontando no outro algo que não tolera em si mesmo, ainda que possa não ter consciência disso. Ao agredir o outro, é como se procurasse reafirmar, para si e para o mundo, que nada tem a ver com ele. E no entanto...

Logo no início do espetáculo, um vídeo exibe uma cena que, desgraçadamente, já se tornou corriqueira em nosso país: três homens (certamente héteros e muio bem resolvidos) espanca brutalmente alguém que certamente é um homossexual. E depois fogem em um carro. Em seguida, fotos aterradoras mostram muitos homossexuais mortos, assassinados com requintes de bárbara crueldade. Essa espécie de prólogo nos informa o essencial: homossexuais estão sendo espancados e mortos. A partir daí, muitas histórias se materializam na cena, envolvendo, digamos assim, abençoados sobreviventes

Como expresso no parágrafo inicial, essas histórias se confundem entre si e muitas vezes se entrelaçam com as vividas por Silvero Pereira. Sendo o ser humano que é, Silvero consegue enxergar beleza e poesia em contextos que a maioria execraria. E sendo o artista que é, Silvero consegue materializar na cena uma espécie de brado, não apenas contra o preconceito relativo aos homossexuais, mas contra a própria essência do preconceito, que pressupõe o cerceamento, em um primeiro momento, e logo adiante, a exclusão. 

No presente caso, é óbvio que se está falando de homossexuais. Mas poderiam ser negros, judeus, árabes, pobres, defeituosos físicos e assim por diante. Neste sentido, a mim parece que "BR-TRANS" transcende em muito uma temática específica, e sua grandeza e alcance residem justamente nisso, no alerta que nós faz com relação a qualquer tipo de preconceito, que se origina, como todos sabemos, na maior praga que assola a humanidade desde sempre: a intolerância. 

Ator magnífico, senhor absoluto de vastíssimos recursos expressivos e possuidor de enorme carisma, Silvero Pereira mostra-se inteiramente à vontade na dinâmica cênica proposta por Jezebel De Carli, que prioriza a relação direta do ator com a plateia e com os muitos objetos que o rodeiam, sempre trabalhados de forma a valorizar incrivelmente os muitos e diversificados climas emocionais em jogo. Brilhante tanto nas passagens mais dilaceradas quanto naquelas impregnadas de irresistível humor, a encenação de Jezebel De Carli converte-se em poderosa referência da atual temporada teatral.

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de Marco Krug ( responsável pela cenografia, em parceria com Silvero Pereira), Lucca Simas (iluminação), Ivan Ribeiro (vídeo) e o próprio Silvero, que responde por figurino, maquiagem e adereços. Finalmente, um elogio todo especial ao compositor e pianista Rodrigo Apolinário, que assina ótimas músicas originais e cujos arranjos contribuem de forma decisiva para o fortalecimento de todas as propostas estéticas do espetáculo.

BR-TRANS - Texto de Silvero Pereira. Direção de Jezebel De Carli. Com Silvero Pereira. Teatro III do CCBB. Quarta a segunda, 19h30.









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