sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O espermograma


Lionel Fischer

Personagens:
Vicente
Disponível
Solidária
Recepcionista

Cenário: A sala de espera de um laboratório de análises clínicas. Cadeiras paras os clientes, mesa e cadeira da recepcionista.

(Solidária e Disponível folheiam revistas. Após um tempo, Vicente entra. Olha para as duas, não sabe o que fazer)

Vicente - A recepcionista...
Disponível - Não está. Ou melhor: está, mas não aí, na mesinha, como deveria. Está lá dentro, com os homens...
Solidária - Ela é uma pequena muito esforçada, cheia de planos. Sempre que pode corre atrás de instrução.
Disponível - Já está há quase vinte minutos se instruindo...
Solidária - Mas o que são vinte minutos no tempo do saber? Confúcio, o poeta calvo, proferiu de certa feita uma máxima admirável...

(Entra a Recepcionista sem desgrudar os olhos de um exemplar de “Sabrina”. Vai direto para sua mesa)

Vicente (Aproxima-se da Recepcionista) - Boa tarde.
Recepcionista (Sem olhá-lo) - Boa tarde.
Vicente - Eu entrei agorinha mesmo e como não vi ninguém eu pensei...
Recepcionista (Interrompendo a leitura) - Como, “não vi ninguém?” E essas pessoas aí são o quê? Espectros?
Vicente - Desculpe, mas o que eu quis dizer é que...
Recepcionista - Por favor, meu caro, o nosso idioma é de uma clareza e objetividade cristalinas. Agora, se o senhor está arrependido de ter dito exatamente o que quis dizer, isso é uma outra história... (E volta a ler)
Vicente - Perdão, eu não estou absolutamente arrependido. Acho apenas que não consegui me expressar direito.
Recepcionista (À Solidária) - Agora a senhora vê se eu posso: um tremendo marmanjo e não diz coisa com coisa!?
Disponível - Aonde é que a senhora estava?
Recepcionista - Por acaso isso é da sua conta?
Disponível - É sim. E eu exijo uma resposta concreta!
Recepcionista - Tava...tomando....cafezinho.
Solidária - Oh! Nos enganamos todos!?
Vicente - Bem...eu...retomando: eu gostaria de fazer um exame.
Recepcionista - Não!
Vicente - Como?
Recepcionista - Eu não acredito!
Vicente - Eu não estou entendendo...
Recepcionista - O senhor veio até aqui, um laboratório de análises clínicas, para fazer um exame...
Vicente - De fato. Por recomendação médica, inclusive.
Recepcionista - Inclusive...mas é inacreditável!?
Vicente - Mas...o que que é inacreditável?
Recepcionista - O senhor sabe? É a primeira vez, em todos esses anos de profissão, que eu me deparo com um caso como o seu...
Vicente - Senhorita...eu...sinceramente...
Recepcionista - Sinceramente...
Disponível - Mas assim já é demais. Será que você ainda não percebeu, meu jovem, que essa rapariga está lhe fazendo de idiota? (À Recepcionista) A senhora hoje está ultrapassando todos os limites. Este belo rapaz não tem por que ficar aí, de boca aberta, com essa cara de palerma, escutando seus deboches e grosserias!
Recepcionista (À Solidária) - A senhora sabe que um dia desses eu ainda rodo a minha pomba pra cima dessa brega?
Disponível - Como disse?
Solidária (À Recepcionista) - “Saber recalcar um minuto de cólera equivale a economizar cem anos de arrependimento”.
Disponível - Confúcio?
Solidária - Não, essa frase é de autoria do senhor Clávio Resfaldante e ele a proferiu no seu último programa.
Recepcionista (A Vicente) - Pois então você deseja fazer um exame. Muito bem: que tipo de exame? O senhor já tem mais ou menos claro na sua cabeça?
Vicente - Eu queria...bem...enfim, trata-se de um exame sem importância. É uma bobagem, coisa de rotina. Até mesmo desnecessária, mas o médico...
Recepcionista - Um espermograma!
Solidária - Que lindo!?
Vicente - Como é que a senhora sabe?
Solidária - Quer ter filhos!?
Recepcionista - Mas se está escrito na sua cara!? Ou melhor, na sua cara não: é um desejo que emana de todo o seu ser! Me diz uma coisa: ninguém na rua parou para felicitá-lo?
Vicente - Felicitar?
Recepcionista - Lógico! Porque hoje, depois de tantos anos de casado e incontáveis tentativas, o senhor tomou finalmente a sábia decisão de parar de criar clima com sua esposa e veio contar os seus bichinhos!
Vicente - Contar o quê?
Recepcionista - Medi-los. Decifrá-los. Saber, de uma vez por todas, se eles são muitos, se são poucos, se têm o rabinho muito curto ou muito cumprido. Enfim, se o senhor pode ou não procriar!
Solidária - Ele pode sim, tenho certeza!
Recepcionista - E o senhor já fez a colheita?
Vicente - Colheita? Bem, sinceramente, eu...como assim, colheita? (Solidária faz para Vicente expressivos movimentos de vai e vem com um dos punhos) Ah, claro...(À Recepcionista) Não.
Recepcionista - Trouxe ao menos o vidrinho?
Vicente - Vidrinho...
Recepcionista - Mas o essencial o senhor trouxe, não é mesmo?
Solidária - Isso é que é o importante, meu filho. Todo o resto se arranja.
Recepcionista - Só tem um probleminha: nós estamos sem estoque de vidrinhos. Mas vamos fazer o seguinte...(Ela atira no lixo as cinzas de um cinzeiro e desembrulha seu sanduíche) Você leva esse cinzeiro e o papel laminado. Quando acabar de despejar você embrulha o cinzeiro no laminado e traz para mim, ok? (Entrega os objetos a Vicente)
Disponível - Mas é o fim da picada. A que ponto nós chegamos!?

(Vicente sai. Todos assumem suas posturas iniciais. Muda a luz. Música. Depois de um tempo, Vicente reaparece. Cessa a música)
Solidária - Oh, ele já voltou!? (Solidária e Disponível correm até Vicente) Deixe-me cumprimentá-lo, meu filho, pela presteza com que você se desincumbiu de sua missão! (Ela o abraça. Disponível se apossa do cinzeiro e o examina com sofreguidão) E então? Armanezou todos os jatinhos? Ou deixou escapar algum, hein, seu maroto?
Vicente - Eu...
Disponível - Mas não há nada aqui!?
Solidária - Como, não há nada? Ponha os óculos, minha querida, pra não dizer bobagens.
Disponível - Só tem cinzas!
Solidária - É porque a coisa está por baixo, coração. As cinzas estão boiando na superfície, como barquinhos de guerra!?
Disponível - É preciso encarar a realidade de frente e admitir os fatos: o rapaz não ejaculou! (Solidária pega o cinzeiro, olha para Vicente)
Solidária (Indo para um abajur) - Vamos examinar na luz! (Examina o cinzeiro) Que engraçado...evaporou!?
Disponível - Evaporou, não: não jorrou!
Solidária - Como é que a senhora pode estar tão certa disso? Estava lá, por acaso?
Disponível - Minha amiga, por favor. É inútil tapar o sol com a peneira. O sêmem masculino tem um cheio particularmente forte e excitante que deixaria algum vestígio. A senhora, alguma vez, já lavou o chão de uma cozinha?
Solidária - Esta tarefa, em minha casa, fica a cargo da empregada. Por quê?
Disponível - Porque se essa tarefa, alguma vez, tivesse ficado sob sua responsabilidade, a senhora entenderia perfeitamente o que quero dizer.
Solidária - Mas que conversa abstrata. A senhora pretende por acaso insinuar que, para reconhecer o signo da virilidade desse moço, eu precisaria ter exercido atividades sanitárias?
Disponível - Exatamente: sanitárias! O termo é esse.
Solidária - Minha querida: a sua metáfora, além de ambígüa, me soa profundamente deselegante. Portanto eu... (Disponível lhe toma o cinzeiro das mãos e se dirige resoluta para Vicente, imprensando-o num canto)
Disponível - Meu jovem, só a verdade interessa. Eu estou aqui, do seu lado. Abra seu coração e me fale com franqueza. O que foi que houve? Inibição, bloqueio?
Vicente - Eu...
Disponível - As fantasias obscenas indispensáveis não lhe ocorreram a ponto de permitir uma irrigação satisfatória? Foi isso?
Vicente - É que...
Disponível - Se foi, não tem problema. Eu me ofereço voluntariamente para acompanhá-lo e dar-lhe todo o reforço psicológico do qual você me parece estar tremendamente necessitado. Vamos? (Pega-o pelo braço)
Recepcionista - Um momento.
Disponível - O que é?
Recepcionista - Lamento comunicar que o nosso regulamento proíbe terminantemente esse tipo auxílio que a senhora, de forma tão generosa, pretende prestar ao nosso amigo. Até porque, se for o caso, nós possuímos pessoas especializadas, pagas pelo laboratório para exercer essa função.
Disponível - Mentira! O que a senhora quer é me impedir de praticar um boníssimo ato de caridade e de solidariedade humana. Aonde é que estão essas tais pessoas, ahn? Vá chamá-las! Gostaria muitíssimo de conhecê-las!
Recepcionista (Levantando, ameaçadora) - Volte já para o seu lugar, minha querida, e procure se controlar. Isso aqui é um laboratório de análises clínicas, não uma casa de massagem! (Disponível solta Vicente)
Disponível - O que foi que disse? O que teve a coragem de dizer?
Recepcionista - Se eu apertar esse botãozinho aqui, o diretor aparece por aquela porta ali e então...(Intimidada, Disponível volta para sua poltrona, mordendo violentamente o polegar direito. Recepcionista, a Vicente) E aí, meu querido? Balançou, balançou e nada...
Vicente - O futebol...eu detesto futebol...
Recepcionista - O futebol...
Vicente - Dois sujeitos...eu não sei quem são, nem onde eles estavam. Mas vasava toda a conversa...a senhorita compreende, não é mesmo?
Recepcionista - É claro. Mas eu resolvo esse problema rapidinho. (Pega um walkman, escuta rapidamente) Tá rolando uma música linda...É só embarcar... (Dá o walkman para Vicente)
Vicente - Obrigado.
Solidária - Tome aqui o seu "potinho"... (Vicente pega) E tenha fé que você vai conseguir. Tudo é possível para aquele que crê. Tudo é infinito para aquele que crê.
Vicente - Tomara...
Solidária - Vá com Deus que eu fico aqui rezando para Nossa senhora te dar inspiração.
Vicente - Eu agradeço.
Disponível - E não se culpe no caso de um novo fracasso. A responsabilidade é deste laboratório, que não tem clima.

(Vicente sai. A Recepcionista pega um livrinho de palavras cruzadas. Disponível volta a ler uma revista, Solidária reza um terço. Música. Muda a luz. Depois de um tempo, se escuta um som gutural e amplificado, emitido por Vicente. Em seguida, o som de algum material viscoso e líquido que, de forma torrencial, estivesse sendo despejado num recipiente. Ao que tudo indica, Vicente conseguiu materializar seu intento)

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