quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Origens sociais do teatro

Richard Courtney


O teatro é um dos aspectos de uma sociedade, mas um aspecto vital. Por sua própria natureza, o teatro pressupõe a comunicação – e este é o processo social primário. Uma peça é uma tentativa de comunicação de tipo particularmente importante dentro de uma sociedade. Para o homem primitivo, era uma tentativa de comunicação com um deus, ou espírito, e parte indissolúvel da vida comunal. No mundo moderno, é uma tentativa de comunicação entre homem e homem, entre o dramaturgo e a comunidade ou, como diria um psicanalista, entre o inconsciente do artista e o do público. Padrões dramáticos, seja nas danças miméticas dos primitivos ou na poesia intelectual de T.S.Eliot, refletem, de modo detalhado e emocionalmente relevante, o pensamento e a vida da comunidade. A história do teatro é a história da raça humana. Mas, ao invés de ser contada por eventos reais, é a história da mente do homem em desenvolvimento. Neste sentido, os sociólogos consideram que o desenvolvimento da inteligência está relacionado com as mudanças na linguagem, mitos, rituais dramáticos e vida social como um todo.

Abordagem sociológica
O estudo sociológico do teatro considera como os padrões culturais e o desempenho dramático se inter-relacionam. Que a expressão dramática de uma comunidade e suas crenças e estrutura social entrelaçadas é fato inquestionável. O como isto acontece, entretanto, é uma questão de relacionar evidências da história e filosofia, antropologia e etnologia, psicologia e sociologia. Ou, em outras palavras, ocupamo-nos dos estudos dramáticos comparativos e como estes se relacionam com o desenvolvimento (particularmente na infância) do homem moderno.
Embora muitos estudiosos no século XIX tenham examinado aspectos sociológicos de determinados períodos do teatro, não foi senão recentemente que abordagens sociológicas detalhadas puderam abranger toda a extensão do drama e do teatro.

1. As origens e desenvolvimento do Jogo Dramático
2. O estudo do jogo dramático envolve considerações sobre necessidades e padrões tribais, raciais e culturais, com os quais a primitiva prática dramática está associada. O teatro na comunidade primitiva tem função sociológica, psicológica e religiosa (mágica). O homem, como caçador, tem uma necessidade específica do teatro.

O templo e os primórdios do teatro
Do jogo dramático, passamos para as origens e desenvolvimento do drama e do teatro. O grupo tribal estabelecido estava composto por agricultores ou pastores nômades, e uma civilização mais estável conduziu ao desenvolvimento físico e religioso. Sua religião teve sua expressão social no desenvolvimento das representações comunais, dentro do contexto intelectual do mito ritual. Isso levou ao estabelecimento do santuário ou templo – o modelo da vida superior e da divindade. A estilização do ritual tornou-se liturgia.

O surgimento do teatro
Embora ainda haja templos-teatros remanescentes (o Kathkali, na fronteira Indo-Tibetana etc.), em muitas áreas culturais o teatro emergiu do tempo – em Atenas, durante o século V ª C, na China e na Europa Medieval com o posterior desenvolvimento do ciclo dos Mistérios. Tendo-se dissolvido os vínculos entre os rituais e a liturgia, o teatro tornou-se profano e desenvolveu-se de diferentes maneiras. O método variou de acordo com a estrutura da cultura existente. Todos utilizaram os elementos do teatro “total” – representação e identificação, dança, diálogo, máscara, música, espetáculo, figurinos, vestuário, improvisação e estilização – mas cada sociedade deu ênfase a esses elementos de acordo com seus próprios modelos sociais e históricos. A partir da divisão de sacerdotes e celebrantes do templo, o teatro desenvolveu a divisão entre atores e público. O mito do ritual, entretanto, persistiu no teatro como a base para o drama, de duas formas: na comédia, como ajustamento comunal, e na tragédia, como experiência suprema. Estudos subseqüentes levam em conta o relacionamento entre modelos sociais e o teatro de determinado período.

A herança dramática comunal
Cada sociedade possui padrões dramáticos próprios. Dentro de nossa sociedade, apesar do colapso de forças que unem as comunidades (devido, em grande parte, à expansão dos meios de transporte e comunicação), alguns de tais padrões ainda existem: folguedos populares, canções, festivais e danças folclóricas. Espetáculos de variedades (com suas origens tribais e comunais, apoiados na coragem e perícia dos primitivos jogos de funeral), feiras e circos, carnavais e bailes de fantasia, são todos parte de nossa herança dramática.

A teoria dramática
Relacionados a todos os estudos dramáticos estão os conceitos e noções de teatro, que têm variado através dos séculos, na medida em que foram afetados pelas atividades humanas. O teatro implica uma centralidade artística, em relação a todas as outras formas de arte: é fonte de música, dança, artes visuais e literatura. Dessa forma, a abordagem sociológica refere-se aos grandes críticos (de Aristóteles, na Grécia, a Bharata, na Índia). Observa nas formas dramáticas a relação entre as crenças do homem e as teorias e modos de abordagem da cultura desenvolvida – os exemplos são as formas do trágico, do cômico e do satírico na Grécia (e como afetaram a Renascença), o teatro balinês, da Festa da Feiticeira à dança aldeã, o teatro sânscrito e as peças do Nô japonês. Leva em conta, também, a natureza do público, de período a período, como um estudo sociológico.
Consideraremos, a seguir, alguns aspectos mais detalhados dessa abordagem sociológica.

O TEATRO DO SELVAGEM – 1

O teatro é amais velha de todas as artes – a representação, como movimento dançado, personificando um espírito, um animal ou um homem. Daí vem a dança (o movimento quando atuando), a música (o acompanhamento à atuação) e a arte (a ilustração da atuação). Pelo menos, foi assim que o mais primitivo dos homens encarou as atividades artísticas. As origens dramáticas, porém, estão fortemente vinculadas à religião e à crença, à magia e aos ritos mágicos, que deram às atividades dramáticas seu propósito.

Homem, o caçador
Foi o caçador quem criou os ritos. Ele confiava que sua magia pudesse auxiliá-lo na caça. O atuante meio dançava, meio representava, na mimese (simples imitação de ação real), e cobria-se com máscaras e peles, principalmente dos animais envolvidos na caça. Dessa maneira, o homem tentou criar a magia, que acreditou pudesse controlar os eventos. Ao representar uma caçada, e seu sucesso nela, tentava torná-la realidade. Isso pode ser visto claramente nas pinturas murais de Lascaux – desenhos de animais e de homens vestidos em pele animal, executando sua parte nos ritos. Os mais primitivos ritos foram simples cerimônias, realizadas pelos integrantes da tribo. Demonstravam sua cooperação com os deuses, para proveito próprio ou de ambos.
Embora classifiquemos esses ritos como religiosos, não utilizamos o termo no sentido em que é usado como religião moderna. Para o primitivo, a adoração, como a concebemos hoje, inexistia. Viver era uma questão imediata de sobrevivência, e os ritos criados pelo homem baseavam-se no medo e na concentração de poder. O homem tentava, através dos ritos, assumir a fertilidade dos animais e plantas, o poder do trovão e das montanhas. A obsessão era parte essencial do processo: em uma dança frenética, selvagem, o homem sentia-se efetivamente transformado em um “espírito”, com todo o poder que isso significava. O processo era ajudado pelos primitivos instrumentos de percussão, cantos sem nexo, o hipnótico ritmo do movimento e a máscara. Quanto mais fantástica era a máscara, mais os outros dançarinos sentiam que havia uma identificação entre o mascarado e o poder referido; e isto, por sua vez, atuaria sobre o mascarado até que ele sentisse a união com o poder. Não há dúvidas de que a máscara teve tão importante papel em toda a história do homem, particularmente no teatro. Em um primeiro momento, a tribo inteira participaria do rito. Logo após, apenas os homens dançariam, enquanto as mulheres permaneceriam ao redor, cantando (possivelmente, a origem do coro). Posteriormente, apenas os “sábios” e aqueles iniciados atuariam, enquanto seu líder observava.

Mimese e dança dramática
O Homem, o Caçador, personificava a si próprio e aos animais em situação de caça, na ação dramática conhecida como mimese. Era simples imitação de ações e fatos reais. Mas não era uma representação como a concebemos hoje em dia: era, principalmente, uma mistura de personificação com movimentos dramáticos e dança – com “amplos” movimentos de corpo, pulos e saltos, assim como a utilização de peles de animais e folhagens, para identificar-se com o “espírito”.
Muitas das danças dramáticas, em tribos primitivas existentes, pretendem despertar exaltação religiosa. Os xamãs, da Sibéria e da Mongólia, dançam freneticamente para afugentar os demônios. Muitos feiticeiros africanos fazem o mesmo. Os Bogomiles, da Rússia pré-soviética, e os Alfurus, os Celebes, dançam desvairadamente para incitar o fervor religioso. Mesmo esse tipo elementar de dança é uma atividade social. Radcliffe Brow nos relata que a dança dos andamentos força o indivíduo a submeter toda sua personalidade às ações determinadas pela comunidade; é coagido, pelo efeito do ritmo, assim como pela praxe, a tomar parte na atividade coletiva, e lhe é exigido sujeitar sua ação às necessidades desta. Evans-Pritchard observa o mesmo aspecto com relação à dança da cerveja dos Zandes, no Sudão. Mas, talvez a mais animada das danças dramáticas existente hoje entre tribos primitivas seja a dança da guerra. Loomis Havemeyer descreve a dança de guerra das tribos Naga, no Nordeste da Índia, da seguinte maneira:

Começa com uma inspeção dos guerreiros que, em seguida, avançam e recuam, aparando golpes e atirando as lanças como se fosse uma luta real. Eles rastejam em formação de guerra, procurando manter-se o mais próximo possível do chão, de modo que não se percebe senão uma linha de escudos. Quando estão suficientemente próximos do inimigo imaginário, aparecem e atacam. Após a eliminação dos opositores, arrancam tufos de capim, que representam cabeças, aos quais cortam com seus machados de guerra. De volta à casa, carregam esses tufos nos ombros, como se fossem cabeças verdadeiras. Na aldeia, são recebidos pelas mulheres, que se reúnem a eles em triunfante canto e dança.

Essa atividade simples de dança e imitação poderia alcançar uma forma mais dramática, como poderemos ver na descrição de Roth de um jogo dos nativos de Dyak:

Um guerreiro está ocupado tratando de tirar um espinho de seu pé, mas sempre alerta para a emboscada inimiga, com suas armas à mão. De repente, o inimigo é finalmente descoberto e, após alguns rápidos ataques e defesas, é surpreendido por uma súbita investida e cai morto no chão. Segue-se a pantomima de sua decapitação. A história, então, conclui com a surpreendente descoberta de que o homem assassinado não é um inimigo, mas sim o irmão do guerreiro que o matou. Neste momento, a dança cede lugar ao que viria a ser, talvez, a parte menos agradável da representação – um homem em crise, contorcendo-se em terríveis convulsões, sendo atraído de volta à vida e à sanidade por um médico necromante.

O jogo dos Dyaks representa claramente um passo adiante da dança Naga; com seu elemento de ressurreição e o destaque, não para o sacrifício, mas para a vítima, encontramo-nos nos limites do mito ritual.


O HOMEM PRIMITIVO E OS PRIMÓRDIOS DO TEATRO – 2

O Homem, o Caçador, começou a estabelecer-se em comunidades regulares, primeiro, provavelmente, como pastor nômade e posteriormente apoiando-se na agricultura. Uma existência mais regular e um modelo comunal conduzem à formalização de suas práticas religiosas (ritual) e ao conceito de que existia uma forma de continuidade na vida (explicada pelo mito). Isso leva ao teatro, de templo, mais claramente observável como “religioso” aos olhos modernos.

Homem, o Agricultor
Quando o homem passou a viver da agricultura, tornou-se completamente dependente das estações. Seu maior terror era uma colheita arruinada e um inverno rigoroso. Toda sua atenção concentrava-se no medo do inverno (morte) e na esperança na primavera (vida), no plantio das sementes (funeral) e na colheita da safra (ressurreição).
Houve também outras mudanças. O simples rito progrediu e desenvolveu-se em ritual, um tipo muito mais formalizado de adoração. E a mimese primitiva evoluiu para a mímica, como nós a conhecemos.
Para o primitivo, a organização do ritual tem uma significação mágica, como relata Harry B. Lee:
A venerável e metódica seqüência em si era dotada de tal significância mágica que qualquer infração da costumeira ordem de representação era proibida com risco de vida, para que a desordem do mais ínfimo particular não atraísse o caos e o desastre. Embora o homem moderno tenha chegado a uma crença menos consistente na magia, a tendência de suas religiões é a de ainda perpetuar o ritual em suas antigas formas, e com escrupulosa observação de sua antiga ordem, mesmo estando menos conscienciosamente desperto para o objetivo mágico. Por exemplo, a Missa não sofreu nenhuma importante alteração em mil e trezentos anos.

Seria natural que a associação das estações com o conceito de vida/morte terminasse por relacionar-se com alguém determinado. Nesses rituais primitivos, a figura de um Rei-ano (ou sacerdote-ano) dominava a morte (inverno) e trazia a vida (primavera). Às vezes, o velho Rei-ano transformava-se no demônio da morte e era derrotado pelo novo Rei-ano. Às vezes, havia um Rei-ano substituto, ou falso-rei, que era festejado por um curto período e então sacrificado, para que o verdadeiro Rei-ano pudesse aparecer. E assim, uma série de rituais se desenvolveu em determinados períodos do ano: a morte era expulsa no solstício de inverso e seguia-se a purificação; e, durante o equinócio vernal, as tribos celebravam o ritual de primavera.

O mito ritual
Do ritual surgiu o mito. Anteriormente, o ritual dança-sonho, realizado durante as diferentes estações, era essencialmente simples. Depois, o intercâmbio de vida e morte foi substituído pelos feitos de um determinado sacerdote, ou rei, ou, finalmente, um deus. A figura central da representação periódica passou a ser uma certa personalidade. Com o tempo, mais feitos e ações foram narrados, e o mito se desenvolveu. Ao invés de buscar um “espírito da chuva” ou “espírito da primavera”, o homem recorreu a um Tamuz ou a um Dionísio. O antigo modelo de vida e morte, representado nas estações, passou a ser interpretado como a história de Tamuz ou a de Dionísio ou outro deus qualquer, que morreu e foi ressuscitado.
O próprio ritual tornou-se mais formalizado, litúrgico mesmo. Uma diferença estabeleceu-se entre os celebrantes (atores) e a congregação (platéia, que participava ativamente). A máscara era ainda usada e conservava o mesmo poder dos primitivos ritos, mas, agora, era também parte essencial da caracterização do atuante na representação do deus. Foi nesse momento, quando os sacerdotes começaram a retirar-se da cerimônia e que surgiram as personificações dos deuses e heróis, que a representação como tal surgiu. Os mitos relatavam histórias; assim, as tramas se desenvolveram. Portanto, embora os rituais ainda sejam periódicos, com suas lutas entre inverno/primavera, morte/nascimento e trevas/luz, estamos quase no nascimento do teatro.

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O presente artigo foi extraído do livro Jogo, teatro & pensamento , de Richard Courtney (Editora Perspectiva, São Paulo, 1980)

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