quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Pelo caminho do sol


Jefferson Miranda: ENTREVISTA



Não foi por acaso que Jefferson Miranda chamou de Autônomo a sua companhia de teatro. De fato, o diretor vem, ao longo dos anos, desenvolvendo um trabalho bastante particularizado na cena carioca – seja na “fase” dos anos 90, quando buscava inspiração no próprio teatro, seja mais recentemente, quando passou a buscar um registro interpretativo diverso para os atores, calcado num natural construído. Um dos desafios propostos pelas montagens de Jefferson ao espectador está em procurar perceber como o elenco apresenta um refinado trabalho de construção em propostas que tensionam o conceito tradicional de personagem. O diretor também vem inserindo os espectadores dentro da cena, mas de formas diversas nas últimas encenações. Em entrevista concedida os Cadernos de Teatro, Jeferson fala sobre a trajetória da Companhia Autônomo, desde o início, no final da década de 80, até os dias de hoje, além da parceria com o dramaturg e cenógrafo Flavio Graff (ver box).

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CADERNOS DE TEATRO – Como surgiu a Companhia Teatro Autônomo?

Jefferson Miranda – No meio de Sísifo, trabalho que fizemos em 1989. Pensávamos mais em processo do que em espetáculo. O nome Autônomo refere-se ao teatro independente, à possibilidade da cena autônoma. Não dá para falar sobre a cena a partir dos códigos anteriores, porque novas regras estão sendo instauradas. O trabalho deve ser apreendido com essa disponibilidade, mas ainda ficamos presos a códigos muito endurecidos ou fáceis. Às vezes, é difícil fugir do fácil. É preciso ampliar o campo de visão, de apreensão do mundo. Não que a arte vá te modificar, mas ela te disponibiliza para a mudança.

CT – Atualmente, a cena autônoma da companhia é a mesma da de anos passados?

JM – Não. Antes predominava uma criação a partir do teatro. Nutríamo-nos do teatro para fazer teatro. Era uma criação-meta. O nosso caminho foi este diante daquela tendência negativa de desprezo e descrença na humanidade que vigorou na passagem dos anos 80 para os 90. Tratamos isto com certa ironia, olhando para nossas desqualificações humanas de forma bem humorada. Este pensamento deu origem a espetáculos como Minh’alma é imortal, 7x2 = y e A noite de todas as ceias. Já havia um pensamento crítico, a idéia do paraíso perdido, mas também uma crença na possibilidade de mudança. Tentamos ir pelo caminho do sol.

CT – Em determinado momento houve uma interrupção nos trabalhos da companhia. Fale um pouco sobre este hiato.

JM – Não foi planejado. A noite de todas as ceias foi muito bem acolhida. Quase virou um caminho para um teatro de mercado, algo que nunca foi o meu propósito. Havia diferença de pensamento entre as pessoas que estavam na companhia naquele momento. A média de idade era de 30 anos, um período meio crítico, em que as pessoas param para pensar sobre o que está acontecendo com elas. Se eu tive a ilusão de que seria bem acolhido porque estava trabalhando com afinco, isto caiu por terra no segundo espetáculo. Quero o diálogo e não ser incensado. Eu tive esta clareza, mas a companhia como um todo, não. Foi um tempo de verificar se para onde estava me dirigindo tinha valor única e exclusivamente para mim. Achei que valeria a pena persistir. Aí começamos a nos reorganizar. Se antes nos inspirávamos em teatro para fazer teatro, agora achava que o teatro estava muito teatral. Precisava descobrir para qual lugar queria seguir. Ficamos um período sem referências. De repente, falei: “Sem personagem, sem situação, sem enredo, sem embate, sem grandes conflitos”. Dizia para o ator entrar em cena e lidar com uma carta que tinha acabado de receber, um telefone que toca. A proposta era limpar tudo e voltar para o zero. A nossa referência para fazer teatro passou a ser a vida.

CT – Vocês retornaram com o estudo cênico Uma coisa que não tem nome...e que se perdeu. Depois, o primeiro espetáculo desta nova fase foi Um bando chamado desejo. Como foi abordar a temática do desejo?

JM – É uma montagem que aconteceu meio fora do nosso tempo. Trata-se de um projeto antigo, que já estava em fase de preparo quando interrompemos os trabalhos em 1998. Quando retornamos, decidimos não fazer mais como em 98. Gosto muito do trabalho. Demos um salto. Mas não sei se deveríamos ter esperado mais. Era um tema muito forte, abordado de uma forma também muito forte, que girava em torno de situações extraordinárias. Um projeto arrojado. Sofremos bastante – e juntos. As pessoas bombardeavam e nós conseguíamos nos manter íntegros.

CT – Como se deu a parceria com Flavio Graff?

JM – Aconteceu de forma engraçada. Em 1996, li uma matéria escrita por ele sobre Minh’alma é imortal, quando nós apresentamos o espetáculo no Festival RiocenaContemporânea. Ele falou sobre o nosso trabalho com muita propriedade. No final do ano, fizemos A noite de todas as ceias e ele escreveu a crítica. Percebi que havia entendido não só o resultado como o processo. Já tinha tentado convidar alguém para abordar criticamente o processo da companhia, alguém que soubesse do nosso ponto de partida, objetivos e pudesse realizar avaliações em perspectiva ensaística. Em 2000, numa reunião com amigos, Flavio e eu nos apresentamos e fiz o convite. Mas a idéia ainda não se realizou naquele momento. Em 2002, quando mostramos Uma coisa que não tem nome...e que se perdeu lancei um convite mais formal. Ele, então, entrou na companhia e também passou a dividir comigo a criação da parte plástica dos espetáculos.

CT – Em relação ao trabalho do ator, fale um pouco sobre a busca por uma atuação transparente, por um natural construído.

JM – A atuação transparente tem a aparência de não-construção, mas é pura construção. Só que o trabalho de construção do ator não fica à mostra. A cena é propositadamente suja, no sentido de que os espectadores não têm a oportunidade de ver e ouvir tudo da mesma forma, algo que, aliás, não acontece na vida. Então, como se dá essa diferença de apreensão da realidade?

CT – A impotência é um tema importante e recorrente nos trabalhos da companhia?

JM – Está em pauta. Já participa do nosso pensamento espacial, que não promove a totalidade. Ele sempre traduz a nossa impotência. Nós sabemos que é impossível estar em todos os lugares. Também é impossível ver tudo. A impotência é absolutamente participativa na nossa vida.

CT – Fale um pouco sobre o processo de inclusão do espectador dentro da cena. É algo que tem se dado de formas diferentes nos seus últimos trabalhos.

JM – Em Deve haver algum sentido em mim que basta não havia dinâmica na proposta de posicionamento do espectador, diferentemente do que acontecia em E agora nada mais é uma coisa só. Em ambos, existiam brechas nas quais o público era quase convidado a participar da cena (por exemplo, quando os atores ofereciam brigadeiros no primeiro e toda a proposta performática do segundo). Agora, em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, juntamos as duas propostas, mas de uma forma estática. Ou não exatamente. Estar ou não no meio da cena não faz grande diferença para nós. Seja como for, a presença do espectador é sempre considerada. Busco um espectador-criador, que participa subjetivamente e de forma criativa do processo. Não impomos uma história, mas procuramos despertar a história em quem nos assiste.

CT E agora nada mais é uma coisa só traz elementos de uma instalação? E caso traga, você pretende desenvolver esta vertente no seu trabalho?

JM – Acho que sim. Mas se refizéssemos hoje já seria diferente. Não queria que aquele trabalho fosse uma pura zona de contato entre o teatro e as artes plásticas, mas me apropriar do conceito de instalação em prol do teatro: como podemos trazer as qualidades da instalação dentro de uma pulsação teatral, cênica, e não de uma conformação puramente performática; como podemos criar narrativa e não só situação. Não gosto do interativo pueril, mas de mobilizar o espectador para uma experiência mais ampla. Procuro abrir, desmontar, desatar nós no teatro: o nó da narrativa, o nó da personagem, o nó do ego. Ao ator era colocada a seguinte questão: a sua cena pode não ser vista por ninguém. E aí, como é que fica? Esse era o maior objetivo no espetáculo.

CT – Há uma influência de Tchecov em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo?

JM – Particularmente, não. Mas, aproveitando a referência de Oswald de Andrade, procuramos nos apropriar de muitos elementos. A cerejeira do cenário visa ao contraste entre dentro e fora. É o elemento de fora que está dentro de uma determinada estrutura. E há a questão da temporalidade. Trata-se de uma árvore que precisa de tempo para existir e florir. E expressamos também nas camadas de tinta das paredes do cenário. Existe ainda um outro ponto em relação ao tempo pouco abordado pelas pessoas: nos nossos espetáculos, procuramos encolher o tempo de reação do ator. Abordamos nos ensaios o percurso psíquico entre não querer falar e falar. Normalmente há saltos entre o antes e o depois. É o que caracteriza as propostas naturalistas. Já nós procuramos reproduzir o tempo psíquico de cada reação. Quero mostrar o processo, tornando o espectador participante dele, e não o resultado.

CT – Este tempo da reação costuma ser considerado como esgarçado, não?

JM – Costuma. Mas não sei se é esgarçado. É o tempo necessário, onde entra a subjetividade do espectador. Penso o teatro como uma arte que permite a participação subjetiva do espectador.

CT – A divisão da narrativa em três planos temporais está conectada ao ponto essencial que você aborda em O perfeito cozinheiro... ou faz parte de uma pesquisa sua que transcende este espetáculo?

JM – Nós passamos por escolhas independentes do nosso tempo e do comportamento nesse tempo. Impasses ocorrerão em nossas vidas. E as pessoas sofrem na hora da dor de uma escolha porque algo será perdido – mesmo sendo as mais descoladas, as que menos (aparentemente) se importam. E ainda no nosso futuro existirá em algum lugar algo que dói.

CTO perfeito cozinheiro...está filiado às principais propostas da Cia. de Teatro Autônomo?

JM – Este não é um projeto de risco como os da companhia, onde nos propomos a peitar a proposta até o fim ou até o limite, até onde puder fazer sentido. Em O perfeito cozinheiro... não haveria nenhum elemento com o qual não tivesse trabalhado antes. Utilizei-me com propriedade dos que tenho, até porque as últimas montagens da companhia me nutriram com uma série de ingredientes. Mas isto não significa que tenha me limitado a colocar aquela forma nessa massa. Só não tinha o desapego total – ou quase total – que tenho quando começo um trabalho da companhia e tento colocar tudo o que sei de lado. Mas há algo provocador no confronto com o espectador. Penso onde este trabalho me abre uma outra pergunta. Por outro lado, é perigoso se começamos a aderir a todos os feedbacks que nos chegam. Tudo o que ouvi sobre a questão do tempo não é maior do que o que me levou àquela proposta.

CT – Você tem um próximo projeto em vista com a companhia?

JM – Existe algo de muito cruel: o impedimento de se ter um pensamento de companhia. Celina Sodré também padece do problema de não ter uma companhia bancada. Não contamos com subsídio, com algo que possibilite à companhia existir independentemente da realização de espetáculos. Realizamos cinco projetos em quatro anos. Chega uma hora em que esta assiduidade torna-se complicada porque não temos um pensamento e um funcionamento industrial. Resolvemos, então, fazer uma pausa. Tenho vontade de realizar algo de pequeno porte – mas digo isto e quando percebo estou envolvido com algo dotado de uma complexidade fenomenal. Mas, seja como for, estará relacionado ao nosso tempo de agora.

CT – Como está sendo a experiência de trabalhar com alunos formados da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL)?

JM – Digo o seguinte para os alunos: “Diretores e espetáculos, vocês terão muitos”. Na primeira montagem de formatura que dirigi, os alunos queriam passar pela mesma experiência que os atores da companhia. Não foi fácil – eram 25 atores e não cinco. Acho que é uma opção mais interessante porque do espetáculo propriamente dito eles esquecerão. Agora vou montar um texto do Tchecov bem próximo de Tio Vânia, mas um pouco mais juvenil, com um certo espírito de vaudeville.

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E o crítico virou parceiro

Formado em jornalismo e com experiência acumulada, ao longo dos anos, como cenógrafo, ao lado de Ronald Monteiro, com quem trabalhou em diversos espetáculos, como Dona Rosita, a solteira, Entre o céu e o inferno e A flauta mágica, Flavio Graff passou a trabalhar na Companhia Teatro Autônomo depois de ter impressionado Jefferson Miranda com a precisão de suas observações sobre os espetáculos Minh’alma é imortal e A noite de todas as ceias. A parceria iniciou na retomada da atividade da Cia. com o estudo cênico Uma coisa que não tem nome... e que se perdeu, desenvolvido, por sua vez, no espetáculo Um bando chamado desejo.
A função de Flavio dentro do grupo é a de dramaturg, ou seja, de um crítico interno que avalia com o diretor o processo de construção de um determinado trabalho. Aos poucos, porém, Flavio assumiu mais uma função: a de diretor de arte, passando a cuidar da arrojada concepção cenográfica das montagens do grupo – Deve haver algum sentido em mim que basta, E agora nada mais é uma coisa só e O perfeito cozinheiro das almas deste mundo.

“Quando fui convidado para integrar a companhia, comecei a pensar com Jefferson sobre o que estávamos falando em cada espetáculo e a me deter na relação entre o espaço cênico e o espectador”, diz Flavio.
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Esta entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 176, foi feita por Daniel Schenker Wajnberg, cabendo a Lionel Fischer a redação final.

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