quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Estudo de um papel

Bertolt Brecht


1. O mundo do autor não é o único mundo. Há muitos autores. O ator não deve identificar totalmente o mundo com o mundo do autor. Deve fazer distinção entre seu mundo e o do autor, e deve acentuar a diferença. Isto influi sobre sua conduta em relação à estrutura da peça. A estrutura da obra é o mecanismo que determina o que deve ser causa e efeito, o que deve ser efeito de uma causa e assim sucessivamente. Essa maneira de desenvolver o enredo, enfatizando determinadas situações, revela os pontos de vista do autor a respeito do mundo, e o ator deve mostrar seu desacordo com esses pontos de vista.

2. Como o ator descobre os pontos de vista do autor, esses pontos de vista que constituem a base da engrenagem da obra? Descobre-os ao pesquisar aquilo que gera contradição. Porque nem todos os pontos de vista do autor merecem o desacordo do ator. Devem ser ponto de discussão apenas aqueles que revelam o interesse do autor pelo mundo real. O ator deve descobrir esse interesse partindo da estrutura da obra, e deve estabelecer a que interesses de grupos humanos se assemelha ou serve (porque somente esses interesses podem ser considerados importantes) e a que grupos se opõem. O ator deve identificar-se com os interesses de grandes grupos para representar bem o seu papel e esses interesses, como os do ator, estão apoiados por conceitos decisivos.

3. Ao mostrar o desacordo com o mundo do autor, o ator tem a possibilidade de assinalar os limites desse mundo, suas características, e demonstrar que é combatível. Sua atitude "géstica" é a que deve ser transmitida ao espectador.

4. Permite-se que o ator se mostre atônito diante da engrenagem da peça, mas também ante seu próprio personagem (o que ele deve representar) e até diante das palavras que deve pronunciar. Mostra, atônito, aquilo com que está familiarizado. Ao falar, contradiz o que está dizendo.

5. Para representar um personagem, o ator deve estar ligado a ele por interesses, e por interesses importantes, isto é, interesses que provoquem uma transformação do personagem. O personagem terá dois eus e um deles será o do ator. O ator, como tal, deve participar da educação (transformação planificada) de seu personagem, educação que estará a cargo dos espectadores. É ele que deve estimular o público. Ele próprio é um espectador e esse espectador é um personagem a mais que o ator deve esboçar; é o segundo personagem a desenvolver. Mas, para começar, como deve delinear o primeiro personagem?

6. O personagem surge como resultado de suas relações com outros personagens. Na arte dramática da velha escola, o ator criava o personagem e em seguida estabelecia suas relações com as demais figuras. Desse personagem inventado extraía em seguida os gestos e a forma de pronunciar as palavras. O personagem surgia da visão panorâmica da peça. O ator épico não se preocupa com o personagem. Parte do zero. Conduz todas as situações da maneira mais espontânea e pronuncia as orações umas depois das outras, mas como se cada uma delas fosse a última. Para encontrar o gestus - isto é, a atitude essencial que está subjacente em cada frase ou alocução - que apoia as frases, as mais vulgares, que não dizem exatamente o mesmo que diz o texto, mas que contêm o gestus...

7. Quando o ator, já no papel que lhe coube representar, explorou todas as relações que a obra propõe, pronunciou as frases com a maior espontaneidade que lhe seja possível e as acompanhou com os gestos mais apropriados a elas, ele terá recriado o mundo do autor. Cabe-lhe, então, estabelecer a diferença entre esse mundo e o seu próprio e pôr em destaque essa contradição. Agora, como se depara com as contradições mais importantes?

Em toda obra teatral há uma opção por uma determinada seleção de relações que cada personagem deve manter. Quando as situações foram criadas apenas para proporcionar ocasião para o brilho do personagem, já está evidenciado um critério de seleção das possíveis situações. O ator não tem que estar de inteiro acordo com essa seleção. Se tem que representar uma situação que mostre a coragem do herói, o ator pode acrescentar um matiz diferente daquele proposto pelo autor. Essa coragem - que o ator vai modelando através da exata realização dos gestos que correspondem à atitude mais lógica diante das frases postas em sua boca - pode adquirir outra acentuação, graças a uma cena muito breve de mímica, a um determinado gesto com o qual se subtrai algumas frases do texto, por exemplo, alguma que indique a crueldade do herói em relação ao seu criado.

Ao mesmo tempo que mostra a fidelidade de um personagem, pode mostrar sua ambição; pode conferir um traço de sabedoria ao egoísmo de outro; pode expor as limitações do amor à liberdade de um terceiro. Do mesmo modo, ao construir o personagem, vai criando os pontos de contradição de que ele necessita.

Se, ao contrário, o personagem fosse criado pelo autor para possibilitar uma situação, nunca faltarão outros personagens que dêem verossimilhança a essa situação. Os atos qualificados como atos de valor nem sempre são executados por pessoas corajosas e - ainda que o acontecimento não o exija - qualquer personagem requer, para ser verossímil, que se possam apresentar manifestações e atitudes que não foram provocadas por esse acontecimento particular.

Por exemplo, um determinado acontecimento só é verossímil quando um pobre faz determinada coisa; mas o pobre não se tornou pobre através desse acontecimento particular. Para ser pobre tem que ter feito outra coisa. O quê? Ter lutado contra a exploração ou se deixado explorar. Tem que haver se mostrado solidário ou então se negado a sê-lo. Ele participou de muitas situações, portanto, sua atitude tem que ser uma soma de elementos, muitos deles não necessários para conferir verossimilhança ao acontecimento em questão e algum que conspire contra essa verossimilhança. Desse modo é que se obtém o ponto de apoio importante para contradizer.

8. Ao desempenhar seu papel, o ator deveria seguir o exemplo dos técnicos ou dos condutores de veículos familiarizados com a máquina: tratam com brandura o motor, fazem as mudanças com agilidade e elegância, enquanto suas mandíbulas trituram com displicência a goma de mascar. Se o ator descobre que essa maneira de atuar (que de resto se aplica a marcar a ação, momento em que os movimentos apenas se esboçam e os tons são apenas insinuados) não o satisfaz ou não é eficiente, pode estar certo de que as idéias que fundamentam sua atuação carecem de significação ou são imprecisas. Em tal caso, sua entrega pessoal, sua identificação privada com o personagem, pode salvar o ator, mas nunca a cena.

A entrega pessoal, a utilização do temperamento como substituto põe quase sempre em perigo a estrutura intelectual da cena. Torna demasiado compreensível qualquer conduta e, portanto, descarta toda surpresa provocada por ela. Esta é a razão pela qual as peças modernas costumam encontrar ótimos intérpretes nos atores que não estão de acordo com a sua forma ou conteúdo e que consideram falsas todas as suas réplicas. Nas representações contemporâneas, muito poucas vezes são obtidos os efeitos tão freqüentes nos ensaios, quando os atores estão desanimados ou cansados.

9. O ator deve ser econômico no uso de sua fantasia. Avançando de fala em fala, explorando o personagem através das palavras que pronuncia e das que escuta ou recebe, recolhendo - cena por cena - configurações e contradições, assim ele constrói o pesonagem. Vai memorizando esse processo de lenta progressão, esse passo a passo, a fim de que, concluído o estudo, esteja em condições de reproduzir diante do espectador a evolução do personagem passo a passo. Esse passo a passo deve se aplicar não só às transformações que o personagem experimenta em virtude das situações e acontecimentos da trama, como da própria construção do personagem em toda a sua nudez, ante os olhos do espectador.

Esse processo paulatino de construir o personagem é melhor que o dedutivo; neste se começa dando uma rápida olhadela no papel e se cria uma imagem global do tipo a representar, para em seguida extrair do texto os dados e oportunidades que permitirão modelá-lo. Desperdiça-se, assim, muito material e a maior parte se adultera e debilita.

10. Apesar de tudo os atores preferem a forma dedutiva, sem dúvida porque antes de tudo lhes permite desde o primeiro ensaio se exibirem como atores, isto é, esse tipo de ator que consideram ideal e que sonham encarnar. Sim, sonham mais com o personificar esse ator do que o personagem concreto que lhes toca representar.

Quando a fantasia intervém desse modo, ela pode ser prejudicial. Já no processo indutivo e paulatino, ao contrário, seu emprego é indispensável. Ao estudar o papel, caminhando de fala em fala, ele apela constantemente para a fantasia. Todas as questões que se propõe ao construir o personagem devem orientar-se - com o auxílio da fantasia e da comprovação dos fatos - até a indagação e representação da figura como unidade concreta em evolução.
_____________________________________
Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 61/1974, edição já esgotada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário