segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Teatro/CRÍTICA

"Adorável desgraçada"

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Maravilhoso retorno


Lionel Fischer


No belíssimo programa criado por Marcella Garbo (também responsável pelas expressivas fotos), que também exibe ótimo texto de Izabel Aleixo, em dado momento lê-se a relação de personagens: Guta Mello Santos (de 40 a 50 anos. Tímida introvertida. Ingênua. Apagada e "pequena"), Maribel (melhor amiga de Guta. Extrovertida e interessante, segura), Silveirinha (bonito, distante, inatingível), Teresa (chefe de Guta e amiga de infância), Seu Simão (o porteiro do prédio de Guta), Padre e Casal de vizinhos. Pois bem: de posse do programa, um espectador desatento ou com poucas informações sobre o espetáculo poderia achar que o mesmo contaria com um elenco de oito intérpretes. Mas não: trata-se de um monólogo e em cena vemos apenas Débora Duarte, desdobrando-se nos vários papéis.

De autoria de Leilah Assumpção (Boca molhada de paixão calada, Fala baixo, senão eu grito e Intimidade indecente, dentre outros sucessos), que ora completa 40 anos de carreira, o monólogo teve sua primeira versão em São Paulo, em 1994, rendendo à autora o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), e agora volta à cena com direção de Otávio Müller, estando em cartaz no Centro Cultural Solar de Botafogo.

"O monólogo retrata a vida de uma mulher de meia idade, trancada no mundo criado por ela mesma e imposto pela sociedade, no qual oscila entre a loucura e a sanidade, o ódio e o amor, a depressão e a felicidade extrema, a ternura e a vingança. A personagem relembra a vida marcada pela repressão, em contraponto à figura da mulher dos dias de hoje, personificada pela amiga Maribel". Extraído do ótimo release que nos foi enviado, este trecho retrata com exatidão o enredo da peça, assim como explicita algumas das principais características da personalidade da protagonista, cabendo acrescentar sua extrema religiosidade. No entanto, o que mais nos fascinou no texto é forma como Leilah Assumpção trabalha o tema da inveja.

É óbvio que todos sentimos eventuais invejas, mas isto não constitui problema desde que as mesmas não se convertam em obsessão. No presente caso, a inveja de Guta com relação a Maribel invade o terreno da patologia, pois no fundo ela como que abdica de sua singularidade para tentar ser o outro, no caso, a outra, para tornar-se aquilo que não é e jamais será. E como tal tentativa atravessa toda uma vida, nada mais natural que aos poucos a personagem vá perdendo sua lucidez e concentrando no objeto de seu desejo sentimentos tão antagônicos, certamente responsáveis pelo trágico desfecho.

Bem escrito, repleto de reflexões mais do que pertinentes sobre a vida, a amizade, o amor e a solidão, dentre outros temas, o belíssimo, pungente e ao mesmo tempo muito engraçado texto de Leilah Assumpção recebeu irrepreensível versão cênica de Otávio Müller, que, sem abdicar de marcações diversificadas e expressivas, teve o bom senso de perceber o óbvio: a maior parcela de sucesso da montagem estaria atrelada à atuação da atriz. E Débora Duarte retorna aos palcos, após longa ausência, de forma esplendorosa.

Possuidodora de vastos recursos expressivos, carisma, presença e grande inteligência cênica, Débora Duarte convence em todos os momentos, tanto nos mais dramáticos como naqueles em que o humor predomina. Estamos diante de uma atriz completa, que aqui se entrega com coragem, paixão e ousadia à árdua tarefa de materializar na cena uma personalidae tão complexa. Aos amantes do teatro - e em particular da dificílima arte de representar - torna-se obrigatória uma ida ao Solar de Botafogo. Em caso contrário, se verão privados de testemunhar uma das mais emocionantes performances da atual temporada.

Na ficha técnica, destacamos com enorme entusiasmo a direção de arte, figurino e cenografia de Bia Lessa, em especial esta última, que converte o pequeno apartamento da protagonista numa espécie de extensão dela própria, de retrato de uma personalidade massacrada e claustrofóbica, aprisonada dentro de sua patologia. Lauro Escorel assina uma iluminação muito expressiva, que em muito contribui para ressaltar os múltiplos climas emocionais em jogo, sendo igualmente irretocável a trilha sonora de Dany Roland.

ADORÁVEL DESGRAÇADA - Texto de Leilah Assumpção. Direção de Otávio Müller. Com Débora Duarte. Centro Cultural Solar de Botafogo. Sexta e sábado, 21h30. Domingo, 20h30.

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