segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Teatro/CRÍTICA

"Kabul"

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Tragédia, lucidez e loucura

Lionel Fischer


Criada em 1988, a premiada Cia. Amok Teatro vem marcando forte presença na cena carioca, tanto pela excelência de seus espetáculos como pela pertinência dos temas abordados. Após estrear com Cartas de Rodez (1988), seguiram-se O carrasco (2001), Macbeth (2004), Savina (2006) e O dragão (2008). Este último inicia uma trilogia sobre o tema da guerra, que agora tem prosseguimento com Kabul, inspirado no livro As andorinhas de Cabul, do escritor argelino Yasmina Kadra, e num fato real: uma mulher coberta por uma burca azul, executada publicamente a pedradas no estádio de Cabul, em 1999.

Em cartaz no Espaço Sesc, Kabul chega à cena com direção, texto e concepção de Ana Teixeira e Stephane Brodt, estando o elenco formado por Brodt, Fabiana de Mello e Souza, Kely Brito e Marcus Pina, que dividem o palco com Beto Lemos, responsável pela criação e execução das músicas com instrumentos originais - santour, saz kumbuz, tombak, kamantché e daf.

Em termos de enredo, a peça nos mostra dois casais que vivem numa Cabul devastada pela guerra - Madji (Marcus Pina), comerciante que perdeu sua posição social -, Zunaira (Keli Brito), sua mulher, proibida de exercer sua profissão -, Tariq (Stephane Brodt), moudjahid mutilado que se tornou carcereiro em uma prisão feminina - e a esposa deste, Maryam (Fabiana de Mello e Souza), que padece de uma doença incurável. E os quatro personagens, inseridos em um contexto absolutamente trágico, ainda tentam encontrar alternativas que lhes permitam sobreviver com um mínimo de dignidade e alimentar algum tipo de esperança. No entanto, tudo se revela inútil, exceção feita ao momento final da peça - que evidentemente não explicitaremos - quando em meio às trevas emerge uma tênue luz, uma possibiliade de ao menos minimizar o que parecia irremediável.

Como todos sabemos, os horrores de uma guerra produzem sofrimentos indescritíveis, seja qual for o cenário em que ocorra. Portanto, me parece redundante explicitá-los. Mas o que me chamou mais atenção no espetáculo - e nem posso imaginar que tenha sido essa a motivação de seus realizadores - foi a de expor o contraste entre o masculino e o feminino. Mesmo numa sociedade dominada pelo fundamentalismo, em que as mulheres praticamente não passam de servas de seus maridos, ainda assim revelam-se mais fortes do que eles. Aqui todos padecem do mesmo horror, mas enquanto as mulheres ainda conservam sua lucidez, os homens enlouquecem. Não deixa de ser curioso este aparente paradoxo, mas foi justamente ele o que mais me fascinou no texto.

Quanto ao espetáculo, este exibe o habitual apuro técnico e a grande expressividade da Amok Teatro, tanto no que diz respeito ao texto articulado como aos gestos e movimentos. Mas as constantes trocas de cenário, executadas com precisão militar e que se resumem às residências dos casais - exceção feita à cena final, ambientada na já mencionada prisão - me geraram uma série de especulações. Sim, pois ao menos teoricamente, poderia ter sido encontrada uma solução que dispensasse tantas mudanças. Entretanto, como não cheguei a uma conclusão definitiva, ouso supor que a mecanicidade das trocas talvez possa ser encarada como uma metáfora de um regime tão fechado que nada mais permite além de uma obessiva compulsão à repetição dos mesmos rituais, aparentemente imutáveis, castradores e claustrofóbicos.

Com relação ao elenco, todos os atores exibem atuações notáveis, cabendo registrar não apenas a apurada técnica de cada um, mas também - e sobretudo - a paixão com que se entregam à amarga tarefa de materilizar temas, idéias e sentimentos tão dilacerantes. E o quinto personagem é sem dúvida a música, determinante para estabelecer e enfatizar os muitos climas emocionais em jogo - torna-se imperioso mencionar a inestimável participação de Beto Lemos, tanto na criação como na execução das músicas. A mesma excelência se faz presente nos trabalhos de toda a equipe técnica - Renato Machado (iluminação), Stephane Brodt (figurinos) e Ana Teixeira (cenografia).

KABUL - Texto, direção e concepção de Ana Teixeira e Stephane Brodt. Com a Cia. Amok Teatro. Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h30.

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