terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Tese
de Lionel Fischer
Personagens
Jovem
Coordenador
Examinador 1
Examinador 2
Examinador 3
Cenário
Uma mesa longa em forma de meia lua, com três cadeiras de altos espaldares. Uma quarta cadeira, esta comum, no centro do espaço.
(Quando se inicia a ação, a Jovem está sozinha, aguardando ansiosa o início do exame. Carrega uma volumosa pasta. Após um tempo, entram os Examinadores, igualmente trazendo volumosas pastas, precedidos pelo Coordenador. Este último jamais se senta)
Coordenador - Pode sentar-se, senhorita. Esteja à vontade. (Ela obedece) Os senhores também, cavalheiros. (Os Examinadores se sentam) Bem...antes de começarmos eu gostaria de, em meu nome e em nome dos companheiros de banca, de cumprimentá-la por sua audácia ao abordar, como tema de sua tese de pós-gradução, um assunto que, embora tão antigo como o próprio homem, ainda não havia merecido nenhum estudo aprofundado. E confiando em sua discrição, devo confessar que sua tese mexeu com todos nós, ao contrário do que ocorre habitualmente. Sim, pois embora a senhorita talvez o desconheça, não existe nada mais entediantemente mortal do que teses de pós-graduação. Aprovâmo-las, em sua maioria, por um sentimento de respeito próprio, porque se agirmos de outro modo o autor, no ano seguinte, nos brindará com outra tese ainda mais chata. Ou seja: não nos restam muitas opções. Em todo caso, nossa consciência permanece tranquila, já que temos absoluta certeza de que ninguém perderá seu precioso tempo lendo alguma delas. A primordial função tanto do mestrado quanto do doutorado é a de encher o saco das bancas. Perdoe a crueza da expressão...
Jovem - Esteja à vontade, professor decano.
Coordenador - Obrigado, senhorita. Bem...feitas as indispensáveis ressalvas, passemos ao que interessa. Senhores...(Os três examinadores começam a falar ao mesmo tempo e só silenciam ante um olhar severo do Coordenador)
Examinador 1 - Bem...depois de ler e reler seu trabalho inúmeras vezes, ficou-me uma dúvida que eu, sinceramente, não consegui dirimir. Trata-se do seguinte: a nível estritamente operacional, quais seriam as principais diferenças - supondo-se que existam, naturalmente - entre peido e flatulência?
Jovem - A pergunta procede, professor, na medida em que ambas as palavras, quando adjetivadas - peidorreiro e flatulento - parecem significar a mesma coisa, o que é absolutamente falso. Do ponto de vista científico, a chave da questão pode ser encontrada no Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de autoria de Hildebrando de Lima e Gustavo Barroso, revisto na parte geral por Manuel Bandeira e José Baptista da Luz, na sua sétima edição revista e consideravelmente aumentada, sobretudo na parte de brasileirismos, por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, nas páginas 940 e 561, respectivamente, que diz o seguinte: "Peidar: emitir ventosidades com estrépito pelo ânus". "Flatulência: acúmulo de gases no tubo digestivo". Ambas as assertivas nos levam a concluir que o flatulento é aquele que acumulou, mas ainda não peidou. Respondi à sua questão, professor?
Examinador 1 - Perfeitamente.
Examinador 2 - Mas senhorira: existem numerosos exemplos de gases que abandonam nossos corpos sem estrépito, correto?
Jovem - É verdade, professor.
Examinador 2 - E esses gases poderiam ser considerados igualmente como peidos?
Jovem - Essa questão é extremamente controvertida, professor. Há correntes favoráveis, outras contrárias. Depende muito do país, do clima, do contexto cultural, enfim. Eu, particularmente, fico com o professor Buarque: teve estrépito é peido. Não teve, não significa nada. Ao menos do ponto de vista científico.
Examinador 3 - Mas senhorita: existem numerosos exemplos de gases que abandonam nossos corpos sem estrépito - e que portanto a senhorita não considera como peidos - e ainda assim agem de forma avassaladora sobre os circunstantes. O que a senhorita teria a dizer a respeito?
Jovem - Mestre: é tudo uma questão de conceito. E de semântica também. Mas o que me interessou ressaltar é que o peido é um fenômeno essencialmente sonoro. O olfato não altera nada.
Examinador 1 - Não altera? Pois fique sabendo que se minha tia-avó Agripina estivesse aqui e num de seus dias pródigos, eu garanto que os alicerces conceituais de sua tese sofreriam um forte abalo!
Jovem - Perdoe, mestre, mas não sofreriam não. Sabe por quê? E é aqui que entra a semântica: as pessoas normalmente denominam coisas diferentes com o mesmo vocábulo. É o caso do pum.
Examinador 2 - Como assim?
Jovem - Ao contrário do peido, o pum poderia ser definido como uma ventosidade impregnada de cheiro, mas desprovida de som. Portanto, ambos são completamente diferentes em sua manifestação.
Examinador 3 - Mas comuns em suas origens!
Jovem - Talvez...
Examinador 1 - Talvez? Mas....isso é científico, senhorita!?
Jovem - Não está ainda provado.
Examinador 2 - Como não? Ou a senhorita pretende insinuar que eles viriam de locais diferentes?
Jovem - É possível.
Examinador 3 - Mas isso...equivaleria a uma verdadeira revolução nos nossos conhecimentos sobre o tubo digestivo!?
Jovem - E por quê não? O pensamento revolucionário é a base de toda a ciência. (Os examinadores se consultam, perplexos, impregnados do mais genuíno espírito de especulação científica)
Coordenador - Senhores, por favor. O tema é palpitante, mas precisamos ir em frente. Essa questão poderá ser esmiuçada mais tarde.
Examinador 1 - Não resta dúvida. O arrebatamento científico, às vezes, nos desvia do rumo previsto. E é preciso evitar que isso aconteça.
Examinador 2 - De acordo. Bem, senhorita: do ponto de vista antropológico, quando se tem notícia do aparecimento deste fenômeno? Eu quero dizer: se é lícito supor que ele acompanha o homem desde os seus primórdios, existe alguma evidência de que o cidadão das cavernas, por exemplo, também peidava? Ou soltava puns, se preferir?
Jovem - Bem...do ponto de vista estritamente científico, qualquer afirmação de minha parte neste sentido seria, no mínimo, uma leviandade. Contudo, existem fortes indícios de que os primitivos não só peidavam, como muitas vezes faziam do ato de peidar uma cerimônia coletiva.
Examinador 3 - É mesmo?
Jovem - Provavelmente, professor.
Examinador 1 - E em que indícios a senhorita se baseou para levantar tal suposição?
Jovem - Bem, tudo começou no ano passado, quando iniciei minhas pesquisas nas cavernas da África Meridional.
Examinador 2 - Faz um calorão lá...
Coordenador - O senhor já esteve na África Meridional, professor?
Examinador 2 - Não, mas ouvi falar.
Coordenador - O senhor "ouviu falar"...
Examinador 2 - Ouvi e vi falar!
Coordenador - Professor...(Os demais examinadores reprovam em silêncio o comportamento pouco cintífico do Examinador 2)
Examinador 2 - Eu...peço desculpas à banca, ao senhor Coordenador, e à senhorita por esta pequena leviandade, que caracteriza o leigo, não o homem de ciência.
Coordenador - Prossiga, senhorita.
Jovem - Como eu estava dizendo, nessas cavernas eu pude observar, nitidamente, em algumas paredes, marcas de mãos. E em frente a essas marcas de mãos eu percebi, no chão, também nitidamente, a marca de um pé. Ou seja: a cada duas mãos nas paredes correspondia um pé no chão. Supus então que, primeiro: sendo todas as marcas muito parecidas elas deveriam ter sido feitas, sem exceção, na mesma época; segundo: a ausência de uma segunda marca no chão poderia indicar que nossos ancestrais, por um motivo qualquer, lá pelas tantas erguiam juntos uma das pernas para dar vasão às suas ventosidades. E um detalhe: todas as marcas no chão pertenciam ao pé direito.
Examinador 3 - Quer dizer então...que eles peidavam na direção Oeste!
Jovem - Foi o que eu pensei, professor.
Examinador 1 - Ou eram todos pernetas, quem sabe?
Examinador 2 - É possível...mas isso viria complicar um pouco a tese da senhorita, não é mesmo?
Examinador 1 - Eu não vejo por que.
Examinador 2 - Ora, professor!? Na ausência de uma segunda perna, que perna eles poderiam erguer?
Examinador 3 - Sem saltar, evidentemente...
Examinador 1 (Depois de intensa reflexão) - Perfeito, professor. Mas é preciso que fique assinalado que os pernetas também peidam! Ou não?
Coordenador - Mas por que o senhor afirma que eles eram pernetas, professor?
Examinador 1 - Perdão, senhor Coordenador, mas eu não afirmei: eu especulei! Estamos numa reunião científica, pois não?
Coordenador - A sua especulação, de momento, me parece irrelevante. A teoria da senhorita ainda não se encontra suficientemente amadurecida para suportar questões tão intrigantes quanto as suas. A banca acha procedente minha intervenção?
Examinadores 2 e 3 - Perfeitamente procedente.
Examinador 1 - Não resta dúvida. O arrebatamento científico, às vezes, nos desvia do rumo previsto. E é preciso evitar que isso aconteça.
Examinadores 2 e 3 - De acordo.
Coordenador - Bem, senhores, façam suas últimas perguntas. Muitas tarefas ainda nos aguardam no dia de hoje. A maioria profundamente enfadonha. Temos apenas cinco minutos. O sentido de objetividade torna-se imperioso.
Examinador 2 - Perfeitamente, senhor Coordenador. Vejamos...(Depois de rápida consulta em sua pasta) Do ponto de vista histórico, quando se deu o primeiro peido importante? Há algum relato a respeito?
Jovem - Quanto a isso, professor, não resta a menor dúvida. O primeiro peido verdadeiramente significativo da História, segundo Heródoto, foi dado por Alexandre o Grande, pouco antes da batalha contra os persas. A coisa se passou assim: Dario III mandara um emissário negociar com Alexandre a partilha de seu império, pois não estava interessado numa terceira guerra, já que os persas haviam sido derrotados anteriormente nas batalhas de Grânico e de Isso. Derrotados pelos macedônios, bem entendido. Ao ouvir a proposta do emissário de Dario III, Alexandre o Grande, que inclusive já estava a cavalo, ergueu-se sobre sua montada e empinando ostensivamente o traseiro, deu um peido medonho, que arrancou - palavras de Heródoto - quase todas as penas do penacho do emissário, que foi atirado ao solo devido à violência do deslocamento de ar.
Examinador 2 - E ele conseguiu sobreviver?
Examinador 3 - Tanto ao peido quanto à queda?
Jovem - A ambos, professores.
Examinador 1 - Sem sequelas graves?
Jovem - Algumas fraturas e uma rinite alérgica, ao que parece.
Examinador 2 - Figura resistente, a desse emissário...um verdadeiro Hércules. Não lhe parece, senhor Coordenador?
Coordenador - Me parece.
Examinador 3 - E para finalizar, senhorita, já que o nosso tempo se esgota: na sua opinião, o peido é um fator de congraçamento ou de desunião entre as pessoas?
Jovem - Professor: depende, antes de tudo, do peido. E do contexto sócio-político-econômico-afetivo e cultural em que ele se dá! (Palmas arrebatadas)
Coordenador - Está terminada a avaliação.
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Improvável
de Lionel Fischer
Personagens
Amélia Maria - uma senhora de certa idade
Apresentador
Três mulheres assanhadas
Três bailarinos
Garanhão de Varginha - negro musculoso
Cenário
Um clube de mulheres
(Quando se inicia a ação, Amélia Maria entra cautelosa, usando a platéia como se fosse o clube em questão. As três mulheres assanhadas estão misturadas ao público)
Amélia Maria - Deus tenha piedade de mim...O que é que uma pessoa como você, Amélia Maria, está fazendo num lugar como esse? No meio dessas mulheres com cara de depravadas...Só falta uma delas vir se engraçar comigo. Dou logo uma bolsada...(Olha em torno) E se eu esbarro com alguma conhecida? Meu Deus, que vergonha...nunca mais saio na rua. (Tempo) E o que será que vai acontecer? Será que os rapazes obrigam a gente a fazer sexo na frente de todo mundo? Comigo não: dou logo uma bolsada! (Muda a luz. Música) Jesus, meu pai: vai começar a Sodoma e Gomorra! E eu aqui em pé, visível, uma presa fácil!? (Os bailarinos surgem de tanguinha, passando por entre a platéia. As três mulheres assanhadas se assanham. Após requebros sensuais, os três vão para o palco. Um foco destaca as reações de Amélia Maria. Num dado momento, cessa a música e os strippers se imobilizam. Entra o Apresentador)
Apresentador - E agora...ele! O colosso mineiro! O deus de ébano por quem vocês todas tanto aguardavam! (As assanhadas uivam) Com vocês...o Garanhão de Varginha!!! (O Apresentador some. Surge o Garanhão, sunga de onça, máscara de Zorro e uma corrente. Os strippers atiram-se ao chão. O Garanhão realiza uma coreografia de indescritível sensualidade e aproxima-se de Amélia Maria, que havia se postado junto ao palco. Estende-lhe a corrente, que ela segura. Fazem uma espécie de cabo-de-guerra erótico. Depois, ele se afasta, levando consigo os três strippers. Acendem-se as luzes da platéia. Amélia Maria não sabe o que fazer com a corrente)
Mulher 1 - Que que tá esperando, ô pastel?
Amélia Maria - Hein?
Mulher 2 - Se você não vai, me dá que eu vou!
Amélia Maria - Vai aonde, criatura?
Mulher 3 - Ao camarim, sua paspalhona! Ele não te deu a corrente?
Amélia Maria - Acho que esqueceu comigo...
Mulher 1 - Ele te escolheu, sua idiota! E tá te esperando lá dentro!
Amélia Maria - Mas eu nem sei onde é!?
Mulher 2 - Sobe no palco, sai por ali e vira à esquerda!
Amélia Maria - Mas eu vou entrando assim...sem avisar?
Mulher 3 - Eu vou te dar na cara, sua sonsa! (Assustada, Amélia Maria sobe no palco, cruza com o Garanhão - ambos não se vêem - e some. O Garanhão, agora vestido com um robe de chambre cafonérrimo, chega ao seu camarim. Amélia Maria reaparece, adentrando o espaço do "deus de ébano)
Amélia Maria - Seu colosso...seu deus de ébano...olha aqui sua corrente, seu Garanhão de Varginha!
Garanhão - Falou comigo? (Ele se vira. Música. De costas para a platéia, o Garanhão se aproxima de Amélia Maria. De repente, abre o robe. Ela grita e larga a corrente. O Garanhão fecha o robe. Cessa a música) Não é preciso que diga nada, coração...Aliás, mesmo que quisesse, não conseguiria. Nenhuma até hoje conseguiu falar depois de ver...Mas não se preocupe, eu sei usá-lo. E então: vai ser aqui mesmo, num motel ou na sua casa?
Amélia Maria - Na minha casa.
Garanhão - Mas que romântico.
Amélia Maria - Na minha cama.
Garanhão - Que eu suponho espaçosa.
Amélia Maria - Com todas as luzes bem acesas.
Garanhão (À platéia) - Ela gosta de ver.
Amélia Maria - E sem tirar da parede o retrato do finado.
Garanhão - Viúva? Mas que delícia...
Amélia Maria - E eu vou gritar que nem uma louca! (Vão saindo)
Garanhão - É normal.
Amélia Maria - E se os vizinhos reclamarem...
Garanhão - Eles respeitarão teu êxtase.
Amélia Maria - Mando todo mundo tomar no...(BO)
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Impossível
de Lionel Fischer
Personagens
Maria do Bairro
Shakespeare
Cenário
Palco nu
(Maria do Bairro entra ao som de uma salsa. Num praticável, Shakespeare a observa com desdém altivo. Depois de um tempo, a música cessa)
Maria do Bairro (À platéia) - Master Shakespeare resolveu dá uns curso de interpretação, aberto a pessoas e personagens.
Shakespeare - Oh, desditosa idéia que em meio a pavorosa insônia me ocorreu.
Maria do Bairro - Eu me inscrevi, fui aceita e fiz os curso.
Shakespeare - Aos trancos e barrancos, que a verdade seja dita!
Maria do Bairro - E acontece que me apaixonei perdidamente pelo fabuloso pardo!
Shakespeare - Bardo, faça-me o favor, que significa poeta. Pardo é o autor que vos deu vida. E parda és vós, mexicana analfabeta!
Maria do Bairro - E é claro que, embora roxinha de vergonha, acabei tomando coragem e confessei que meu coração e eu todinha lhe pertencia.
Shakespeare - Confissão essa que, evidentemente, me provocou galharufas de riso. Ora, mas que petulância a dessa insignificante catadora de lixo, que dentre seus muitos predicados cultiva o de devorar todos os "esses". Oh, Deus Todo-Poderoso, explicai-me a ignota razão que leva os pobres a nutrir tamanho horror pelos plurais!?
Maria do Bairro - Eu sei que meu vocabulário...
Shakespeare - Não o possuís, simplesmente. E eu jamais poderia apaixonar-me por alguém que molestasse meus ouvidos a cada palavra enunciada.
Maria do Bairro - Teu coração tá na orelha, é isso?
Shakespeare - Oh, céus...enfim, é mais ou menos como dizeis: "Meu coração tá na orelha..."
Maria do Bairro - Pois então, escuta, orelhudo, a surpresa que te preparei!
Shakespeare - Orelhudo, eu? Partis para a ofensa, se bem o entendi?
Maria do Bairro - Li toda a tua obra e embora não tenha entendido porra nenhuma captei os macete da tua escrita rococó e...
Shakespeare - Rococó? A minha escrita?
Maria do Bairro - Vê só se eu não consigo falar igualzinho a tu: "Oh, fabuloso bardo, fechai a matraca e tentai banir de vosso coração os preconceitos culturais que vos impedem de por mim se apaixonar. Se assim agires, nosso amor seguirá seu curso com suavidade em tudo semelhante à da alva neve que, pela primavera espicaçada, da tirania brutal do inverso se liberta e desliza com infinita graça pelas até então petrificadas encostas que a aprisionavam. E se até uma montanha calcaro-granítica pode verter friorentas lágrimas, tudo sugere que em vosso coração exista ao menos uma escassa artéria que permita o fluir de uma nesgazinha de generosidade. Não, não negueis o ritmo acelerado dessa bomba potente e ensanguentada que ora escoiceia dentro do teu peito, como enlouquecido corcel a querer livrar-se de bridões desalmados. Melhor ainda: transformai a bomba pulsante e dispneica numa espécie de jardim de fadas, onde até o vento caminhe de mansinho. Sim, eu sou a flor que com a grossa mangueira do teu conhecimento regásteis, que boquiaberta sorvi o vosso precioso néctar. Por Deus: o jorro dessa comunhão não extanqueis, convertendo-me em desolado cacto num deserto estéril. Permiti que exiba a delicadeza de minhas pétalas, que a brisa do ar-condicionado fará oscilar em movimntos hipnóticos. Sim, saltai deste balcão com a agilidade e graça da gazela, e em meu regaço vinde aninhar-se. Pulai, que o céu eu vos ofertarei, meu bem! (Shakespeare salta)
Shakespeare - Oh deuses, que vos comprazeis em converter-nos em joguetes de vossos caprichos...Acaso estarei sonhando? O que acabo de escutar saiu verdadeiramente dos carnudos lábios dessa mexicana? Ou tudo se resume a uma alucinação auditiva, fruto de minha bárbara carência afetiva?
Maria do Bairro - Gostoso.
Shakespeare - A que atribuir tamanha metamorfose linguística?
Maria do Bairro - tesão.
Shakespeare - Meus ouvidos latejam e sinto-me tomado por uma sorte de embriaguez...Para que destino me arrastais, ardilosa mexicana?
Maria do Bairro - Para a cama, é óbvio.
Shakespeare - Para o leito, é o que quereis dizer...
Maria do Bairro - Sim, para o leito...onde do meu jeito te farei usufruir delícias que jamais ousásteis imaginar.
Shakespeare - De que natureza?
Maria do Bairro - - Vos sentireis, meu senhor, como que aprisionado num redemoinho, que vosso corpo fará girar com o furor das grandes tempestades...
Shakespeare - Girarei, então, como preso a uma roda?
Maria do Bairro - É isso aí: daremos uma bela foda! Vambora, Shakes! (Vão saindo) Ô meu Deus...que cansera...esse homem parece que não entende as coisa!? (Saem dançando a mesma salsa inicial)
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Homossum
de Lionel Fischer
Personagens
Apresentador
Marilu
Rostaldo
Cenário
Um auditório de TV. Dois microfones fixos.
(Escuta-se o prefixo do programa "Homo sum humani nihil a me alienum puto". O Apresentador surge com dois locutores. Ele agradece as palmas gravadas etc. Os locutores se colocam diante de seus microfones. O apresentador fala segurando um microfone sem fio)
Apresentador - É isso aí, meus amigos: Homo sum humani nihil a me alienum puto! Ou seja: sou homem, nada de humano me é estranho. A tradução é feita, naturalmente, para aqueles que estão assistindo ao nosso programa pela primeira vez e que portanto desconhecem o nosso lema, o prefixo que origina e justifica nosso encontro semanal. Como de hábito, a nossa produção selecionou duas cartas, dentre as milhares que nos foram enviadas. E delas faremos uma leitura sintético-emocional e em seguida devolveremos a solução. Senhorita Marilu: estamos prontos?
Marilu (Lendo a carta. Fundo musical melancólico) - "Já não sei mais o que fazer. Estou desesperada. Minha convivência com papai atingiu um ponto insustentável. Mamãe morreu de parto e desde então temos sido nós dois, apenas. Nós dois no sentido literal. Ele me proíbe tudo, tem ciúmes de tudo. Embora seja riquíssimo, me obriga a viver praticamente na miséria. E como se isso não bastasse, ainda controla o meu dia nos mínimos detalhes. Já tentei escapar inúmeras vezes, mas ele equipou nossa casa com os mais modernos dispositivos de segurança, todos eles importados, o que me impossibilita a fuga. Essa é a maneira em que ele investe sua fortuna incalculável, com o objetivo de impedir que eu desenvolva as minhas potencialidades. Tenho sete anos de idade e já penso frequentemente na morte. Um dia, em meio a uma crise nervos, confessei-lhe toda a minha desdita. Ele, aparentemente comovido, disse que me amava. Não acreditei, pois toda a vida ele me mentiu. Logo em seguida ele caiu doente e nada se modificou. Atualmente ele desliza pela casa numa cadeira de rodas enferrujada, comprada numa liquidação, que faz um barulho insuportável. E mesmo assim, semi-inválido, continua atazanando a minha pessoa, já grotescamente perturbada. O que o senhor me aconselha? Devo ter ainda alguma esperança ou é melhor dar cabo de uma vez de minha existência fracassada?" (Cessa a música)
Apresentador - Não, não, absolutamente! De jeito nenhum, minha jovem refém involuntária. O que está em jogo não é o fracasso da sua existência, mas o triunfo do poder econômico em sua expressão mais torpe. (Palmas) O seu pai sabe que bode só dá chifrada em quem anda a pé e se aproveita disso. Sabe que quem tem dinheiro toma até sorvete no inferno e se aproveita disso. Ele é avarento e se estivesse ao seu alcance acenderia o fogo atritando as unhas. Tudo isso é pra lá de óbvio. Mas o que fazer diante de um tal quadro, se todos sabemos que os cinzeiros e os ricos, quanto mais cheios mais sujos? A sua situação é verdadeiramente inquietante. E o estado de saúde de seu pai também me parece coerente, pois o mentiroso, quando diz a verdade, normalmente adoece. Ele afirma que a ama. Mas que espécie de amor é esse, afinal? Câmera 1 em mim, só o meu rosto. Agora eu me dirijo diretamente a você, industrial da clausura. Você sim, que tenho certeza que está me vendo e ouvindo num canto qualquer da sua masmorra medieval. Páre de deslizar pelo porão e fixe seus olhos nos meus. Eu sei que você é inválido, mas isso não me serve de consolo, pois o diabo, mesmo quando descansa, amola as moscas com o rabo. Portanto, chegou o momento de tomar vergonha, demônio. Respeite esse querubim de asinhas chamuscadas pela tua prepotência. Fique sabendo que eu estou e estarei sempre ao lado dos que sofrem! (Palmas arrebatadoras. Entra o prefixo musical do programa, que é tirado logo em seguida) Obrigado, meus amigos. E embora eu saiba que recalcar um minuto de cólera equivale a economizar cem anos de arrependimento, diante de uma situação como a desta pequenina mártir
o fremir de indignação dá mostras de caráter. E eu fremi! Fremi ou não fremi? (Palmas ainda mais arrebatadas) Vade retro, Satane! (Delírio sonoplástico. Depois de um tempo...) Vamos agora à nossa segunda carta. Senhor Rostaldo: estamos prontos?
Rostaldo (Lendo a carta. Fundo musical melancólico) - "Tenho atualmente 97 anos de idade. Há 14 me apaixonei por uma criatura. Isso significa que desde os 83 anos minha vida se transformou num verdadeiro calvário, com sofrimentos só comparáveis ao de Jó. Ela tem, no momento, 22 anos. Incompletos. O senhor acha que a diferença de idade é de fundamental importância num relacionamento de casal? O amor não teria o poder de reduzí-la a uma insignificância sem maior relevância? Afinal, o que são sete décadas de diferença quando existe um sentimento que transcende não só o tempo como o próprio espaço? Já não sei mais o que fazer. Tentei tudo. Comprei roupas na Company, tornei-me ouvinte do Van Hallen. Até um baseado eu apertei outro dia, para usar uma expressão que lhe é cara - a ela, naturalmente. E o que consegui? Endividar-me por completo, comprometer os tímpanos e ficar mareado uma semana inteira. Ajude-me, por favor. Será que terei que completar um século carcomido por uma tal angústia?" (Cessa a música)
Apresentador - Não, não, ansolutamente. De jeito nenhum, meu fóssil querido. Meu papiro atônito. Tudo se arranja na vida. No seu caso, o mais recomendável é ter paciência, saber esperar, dar tempo ao tempo. Eu compreendo a sua situação: ela é de fazer chorar bacalhau em porta de venda.E eu sei que o senhor deve estar sofrendo mais que sovaco de aleijado. Mas eu lhe digo: a sua missão é grandiosa, exemplar, atípica! Ao invés de enfrentar moinhos de vento, o senhor se propõe a colocar suspensório em cobra, não é mesmo? Mas eu lhe sugiro uma mudança de tática. Não se acanhe tanto. Não lhe faça todas as vontades. Trate-a com mais firmeza. Lembre-se que coices de garanhão para a égua carinhos são. E não se comporte como um patriarca. Seja viril, insinuante. Vai ver que ela também não tem grandes opções e quando a jabuticaba é pouca a gente engole o caroço, não é verdade? Mas se essa mudança de estratégia não der resultado, abandone esse projeto. Afinal, normalmente, homem velho e mulher nova, ou corno ou cova. E não fique deprimido. Sorria. Levante a cabeça, se os músculos do seu pescoço ainda o permitirem. E lembre-se, à guisa de despedida e de estímulo: há sempre um chinelo velho para um pé doente! (Palmas arrebatadoras. Entra o prefixo, o Apresentador agradece e em meio a piruetas sai de cena com os locutores)
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