domingo, 11 de janeiro de 2009

A visita
de Lionel Fischer

Personagens
Vicente
Ambrosina
Zémuna
Colorido
Homem
Mulher
Satã

Cenário
cemitério
corredor subterrâneo
quarto subterrâneo de Vicente

(Quando se inicia a ação, estamos num cemitério. Depois de um tempo, a campa de uma sepultura começa a se deslocar, realiza um movimento giratório e se imobiliza. De dentro do túmulo vemos surgir primeiro as mãos, depois a cabeça e finalmente metade de Vicente. Ele tem cerca de 40 anos e veste-se com elegante sobriedade. Olha para os lados, consulta o relógio)

VICENTE - Novamente atrasada...mas que coisa!? Entra ano, sai ano e mamãe não consegue se corrigir. É incrível! (Tempo) Ela faz isso de propósito, só pode ser. Para valorizar um pouco mais sua visita, cercá-la de um certo suspense que ela julga não só charmoso quanto indispensável em qualquer encontro. Mesmo que esse encontro seja entre uma mãe e seu filho. Ainda que se dê entre uma viva e um morto! E o diabo é que isso funciona, sabiam? Por exemplo: se ela demora mais cinco minutos eu tenho certeza de que viro um substantivo. É, me transformo na própria ansiedade! (Acende um cigarro) Viram? Já estou fumando...e olha que eu abandonei esse vício terrível oito anos antes de morrer, às custas de uma força de vontade inimaginável! Mas mamãe, graças à tenacidade com que brinca com as minhas emoções, conseguiu o prodígio de me reconduzir a essa praga depois de morto! É inacreditável...(Dá uma tragada imensa) Eu sei que alguns dos senhores devem estar pensando: “Ora bolas, mas você fuma porque quer, fica ansioso porque quer. No dia em que sua mãe chegar aí e você lhe bater com a campa na cara, ela nunca mais se atrasará!?” Não é isso que os senhores estão pensando? É sim, não precisam ficar constrangidos. Eu, no lugar dos senhores, pensaria o mesmo. Só que se eu um dia fizer isso – como hipótese, apenas – a minha angústia depois será de tal ordem que eu sou capaz de morrer de novo! Isso mesmo, morrer pela segunda vez! (Tragada imensa) Não...essa atitude, que poderia ser a solução lógica com qualquer outra pessoa, com mamãe eu tenho absoluta certeza de que não funcionaria. Por quê? Porque ela poderia simplesmente armar uma cena grotesca, como por exemplo...começar a gritar impropérios e socar minha sepultura. Ou então escrever com spray coisas ridículas a meu respeito aqui em cima...(Mostra a campa) Ou ainda poderia, num acesso de vingança e rejeição, me transferir para um cemiteriozinho desses de terceira. Ou quem sabe me doar para uma faculdade de medicina. Ou mandar me cremar! E aí, como é que eu fico? (Tragada imensa) Não...a solução, com mamãe, tem que ser cuidadosa, política, sempre renegociada. Se o problema dela fosse apenas o de ter pavio curto, tudo bem. Mas é que mamãe simplesmente não tem pavio!?
AMBROSINA (em off) - Vi-iiii-ceeennn-teeee!
VICENTE - Mamãe! (Ele deixa o túmulo num salto)
AMBROSINA (em off) - Onde é que você se meteu, criatura hedionda?
VICENTE - Estou aqui, mamãe. No lugar de sempre.
AMBROSINA (em off) - A pilha da lanterna acabou, desnaturado. Minhas canelas já estão roxas de tanta topada!
VICENTE - Venha devagar, mamãe. Não há pressa. Onde é que a senhora está?
AMBROSINA (em off) - No palácio de Buckingham, pérfido, tomando chá com sua majestade!
VICENTE - O que eu posso fazer para ajudá-la, mamãe?
AMBROSINA (em off) - Você pode deixar de ser comodista e vir guiar sua velha mãe, que faz tudo por você, demônio!
VICENTE - Eu não posso sair daqui, mamãe. É contra o regulamento!
AMBROSINA (em off) - Então pelo menos cante uma canção para que eu possa me guiar nas trevas, cão danado!
VICENTE - Mas eu sou ridículo cantando, mamãe, a senhora sabe!
AMBROSINA (em off) - Você é ridículo de qualquer jeito, monstro! Canta!
VICENTE (Após breve hesitação) - Eu...eu fui no tororó, beber água e não...
AMBROSINA (em off) - Mais alto! (Vicente canta “Eu fui no tororó”. No meio da letra, vemos surgir Ambrosina. Ela se veste de negro e tem os cabelos ajeitados na forma de um gigantesco coque. Usa uma bengala. Traz uma cadeirinha de armar e uma grande saca. Começa a se aproximar de Vicente sem que ele a veja. Quando isso acontece...)
VICENTE - Mamãe!
AMBROSINA - Infame.
VICENTE - Que bom que a senhora veio.
AMBROSINA - Mentiroso.
VICENTE - Já estava ficando preocupado.
AMBROSINA - Cínico.
VICENTE - A minha ânsia em revê-la...
AMBROSINA - Ser medonho.
VICENTE - Cheguei até a...
AMBROSINA - Zumbi patético.
VICENTE - Tudo bem, mamãe. Eu lhe peço desculpas. (Se ajoelha diante dela) De joelhos eu imploro que aceite a condoída súplica de um filho que roga o seu perdão por uma falta imperdoável, que ele desconhece qual tenha sido, mas que sem dúvida ele cometeu!
AMBROSINA - Desconhece qual tenha sido? Mas você já reparou bem na figura postada à sua frente, que atende pela alcunha de sua velha mãe? (Vicente se ergue) Não responda! Não é mais preciso...essa longa pausa fala por si só. (Tempo) Não, você não reparou...porque se você tivesse se detido com um mínimo de interesse, por um fugaz segundo, no meu todo, imediatamente perceberia que minhas canelas sangram de forma aterradora!
VICENTE (Olhando as canelas dela) – Mamãe! Mas o que foi isso? (E volta a se ajoelhar aos pés da mãe, estende as mãos para a ferida como o faria uma abnegada enfermeira da Cruz Vermelha. Mas Ambrosina o imobiliza com a ponta da bengala)
AMBROSINA - E tem mais uma coisa, Vicentinho: se você gritar comigo de novo, como fez há pouco, eu quebro todos os seus dentes.
VICENTE - Não tornará a acontecer.
AMBROSINA - Com essa bengala aqui, que foi do seu avô.
VICENTE - Não se repetirá. Eu prometo.
AMBROSINA - E depois...me suicido na sua frente.
VICENTE - Mamãe!?
AMBROSINA - Tomo cicuta.
VICENTE - Que bobagem.
AMBROSINA - E agonizo nos seus braços...
VICENTE - Pára, mamãe! A senhora quer me deixar doente? Que coisa!? (Pega a cadeirinha) Senta aqui, mamãe, que eu já dou um jeito nesses arranhões.
AMBROSINA - Nessas chagas...
VICENTE - Nessas chagas, claro...(Ela se senta) Vem cá: a senhora tem iodo, mertiolate, alguma coisa assim?
AMBROSINA – Vicente, você imagina que constasse dos meus planos me esfolar dessa maneira?
VICENTE - Claro que não, mamãe. Mas de qualquer maneira é preciso limpar isso aí. Pode infeccionar!?
AMBROSINA - Pouco importa...mesmo porque não se muda o destino. E o meu talvez seja o de perder ambas as pernas por devoção a um filho que só nutre a meu respeito a mais cruel indiferença...(Chora)
VICENTE - Mas o que é que a senhora está dizendo, mamãe? A senhora sempre foi o raio de sol que iluminava o meu dia, o raio de lua que iluminava a minha noite!? O começo, o miolo e o fim de todas as coisas. Toda a minha existência eu dediquei a zelar pela senhora e agradecer a Deus a suprema dádiva de ter sido expelido de seu ventre e não de um outro. Não me torture assim, mamãe, que eu tenho asma! (Vicente se abraça às ensangüentadas canelas de Ambrosina e ambos soluçam por um certo tempo. Depois se olham. Vicente tem o rosto melado de sangue)
AMBROSINA - Que horas são, meu filho?
VICENTE (Consultando o relógio) - Vinte para a meia-noite.
AMBROSINA (Animadíssima) - Meu Deus, como o tempo passa! (Desvencilha-se de Vicente) Vem cá, meu filho, traz a cadeirinha pra perto da campa. (Ela pega a saca e vai para a campa)
VICENTE - E as suas pernas, mamãe?
AMBROSINA - Mais tarde, meu filho. O tempo urge!
VICENTE - Mas a senhora não acha melhor...
AMBROSINA - Não, não acho melhor. E quando sua mãe não acha melhor, é porque não é melhor...(E começa a tirar da saca e a colocar sobre a campa os seguintes apetrechos: escova de dente, pasta, creme de barbear, lâminas, desodorante, sabonete, talco Dr. Scholl, cotonetes etc...) Bem: você reconhece esses objetos, Vicente?
VICENTE - Claro, mamãe. Como não haveria de...
AMBROSINA - E qual a utilidade desses objetos, Vicente?
VICENTE - São objetos de uso pessoal, mamãe.
AMBROSINA - Seja mais preciso em sua resposta.
VICENTE - Eles possibilitam uma perfeita higiene corporal.
AMBROSINA - Que é a base de qualquer convivência...
VICENTE - Que é a base de qualquer convivência.
AMBROSINA - Você tem se limpado regularmente, Vicente?
VICENTE - Mamãe! Assim a senhora me constrange.
AMBROSINA - Não divague: sim ou não?
VICENTE - Sim.
AMBROSINA - Resposta ambígua. Abra a boca.
VICENTE - O quê?
AMBROSINA - Quero dar uma olhadinha nos seus dentes.
VICENTE - Mas mamãe...
AMBROSINA - Não discuta comigo! Abra já essa boca! (Vicente obedece e ela começa a inspeção) Verdes...cheios de limo...que tristeza, meu Deus. Agora sopra!
VICENTE (Ainda de boca aberta) - Ahnn?
AMBROSINA - Bafa! (Vicente bafa, ela recua um pouco, mareada) Hálito de múmia...Levante os braços! (Ele obedece) Cecê podre...(Olha as orelhas) Puro cascão...(Rodeia o filho) Meu Jesus Cristo...meu Espírito Santo...(Vicente, boca aberta, braços erguidos, começa a se inquietar. De repente, Ambrosina irrompe em doloroso pranto e caminha na direção da platéia) Quando a gente não pode fazer tudo pessoalmente, não é mesmo? Mas por que será, minhas amigas, que os homens são sempre assim, instintivamente porcos e desleixados? E todas nós ali, dia após dia, explicando, mostrando, fazendo, para depois...(Ela pára, como se uma súbita lembrança lhe ocorresse. Vira-se então para o filho, imperiosa) Mostre o pinto!
VICENTE (Voltando à postura normal) - O quê?
AMBROSINA - Isso mesmo que você ouviu. Ou você acha que sua velha mãe ia se esquecer do principal?
VICENTE (Recuando, horrorizado) - Não, mamãe!
AMBROSINA - Sim senhor! Pode colocar a sua tripinha pra fora!
VICENTE - Eu não quero.
AMBROSINA - E tem mais: se eu puxar a pelinha e encontrar de novo aqueles anéis de sebo cor de neve ornamentando a proa do teu pinto, mamãe corta fora elezinho e dá pro gato. Entendeu?
VICENTE (Atirando-se aos pés da mãe) - Mamãe, pelo amor de Deus! Acredite em mim! Acredite no seu Vicentinho! Eu lhe juro que o meu pitoco está um brinco!? Nesse último ano eu o lavei, escovei e lustrei no mínimo três vezes ao dia. Confie em mim! Não me submeta a essa humilhação, eu lhe imploro!
AMBROSINA - Que horas são?
VICENTE (Às lágrimas) - Dez para a meia-noite...
AMBROSINA (Animadíssima) - Meu Deus, como o tempo passa! (Corre para a saca) Como não há tempo a perder, meu filho, as partes cultural, alimentícia e de lazer sua mãezinha vai mostrar de roldão! (E fala à medida que tira os objetos da saca) Um Spinoza e um Nietzsche para alimentar seu desespero inato; um tratado de Economia para você continuar desenvolvendo sua capacidade de abstração e fantasia; um joguinho eletrônico - sim senhor, não me faça essa cara, você precisa acompanhar o mundo, não pode se alienar; capas da revista “Caras” para você forrar a gaiola do seu periquito; biscoitos, pão, queijo, salaminho, azeitonas pretas, geléia de mocotó Embasa; uma praianinha para você se embebedar quando sentir angústia; e a sua indefectível coalhada. Que tal, gostou?
VICENTE - Adorei, mamãe! Mas a senhora não precisava se preocupar tanto. Eu tenho aqui o indispensável.
AMBROSINA - Pois sim...você, palerma do jeito que é, não abre a boca para reclamar de nada, acaba sendo tratado a pão e água, como nas galés!
VICENTE - Que exagero, mamãe...
AMBROSINA (Continuando a retirar coisas da saca) - Três pares de meia soquete; um tênis para você fazer seu cooperzinho - você precisa perder um pouco dessa barriga horrorosa; camisetas que só você, os portugueses e os seminaristas usam; e finalmente...(Ela pára com a mão dentro da saca) Adivinha!
VICENTE - Uma surpresa?
AMBROSINA - Uma surpresa!
VICENTE - De comer?
AMBROSINA - Não.
VICENTE - De beber?
AMBROSINA - Também não.
VICENTE - De...ah, mamãe, não sei. Pode ser tanta coisa!?
AMBROSINA - Mas que merda, Vicente. Como a tua imaginação é parca! De vestir, pateta, de vestir! (Ela tira da saca uma longa e colorida bata indiana)
VICENTE - Uma saia, mamãe?
AMBROSINA - Uma bata, seu ignorante. Indiana. Igualzinha à que Gandhi usava.
VICENTE - Gandhi só se vestia de branco, mamãe. Todo mundo sabe.
AMBROSINA - Bobagem, meu filho. Então você acha que um homem com toda aquela fantasia ia se vestir só de branco, o tempo todo? Ah Vicente, você até parece que não é filho de sua mãe. Acredita em tudo que lhe dizem...
VICENTE - Não se esqueça, mamãe, de que eu sou um profundo conhecedor da Índia. Morei lá, inclusive, como a senhora está cansada de saber.
AMBROSINA - Morou lá...Você passou no máximo umas duas semanas naquelas bandas com aquele teu amigo sinistro, deu uma voltinha de elefante e voltou pra casa.
VICENTE (Aprumando-se, com voz empostada) - “Abra matra surudedra putra!”
AMBROSINA - O que foi que você disse, Vicente? O que foi que você teve a coragem de dizer?
VICENTE - Mamãe, eu disse apenas: “Quando um elefante abandona a caravana, o caravaneiro volta a pé”. Palavras de Gandhi.
AMBROSINA - Essa eu vou anotar no meu diário, Vicente. E por causa disso talvez eu nunca mais apareça por aqui! Entendeu?
VICENTE - Mas mamãe, o que foi que fiz de mal?
AMBROSINA - Você não fez nada, Vicente. Você nunca faz nada.
VICENTE - Mamãe, eu quis apenas...
AMBROSINA - Vista essa bata, Vicente! Já, neste segundo! E talvez ainda haja tempo de você me resgatar como relação...
VICENTE - Mamãe...
AMBROSINA - Silêncio sepulcral! Obedeça! Ou eu me evaporo...(Apalermado e submisso, Vicente pega a bata)
VICENTE - A senhora quer que eu me dispa?
AMBROSINA - Não é preciso. Coloque por cima. Por ora me é suficiente...(Ele obedece) Meu filho...que lindo! Ah, se não fosse a sua habitual cara de cretino e eu juraria que você é um novo profeta! Meu Deus, como você ficou espiritual!?
VICENTE - Imagino...
AMBROSINA - Bem que a minha intuição me dizia: “Ponha uma bata no seu filho que essa besta assumirá uma outra dimensão!” E não é que você assumiu, Vicentinho? Você alongou por fora e cresceu por dentro. Como dizia o velho Nelson - muito mais inteligente do que Gandhi, diga-se de passagem - “Teu olhar já vasa luz, como um santo de vitral!”
VICENTE - Obrigado, mamãe...
AMBROSINA (Cantarolando) - E agora...
VICENTE - Tem mais alguma coisa aí na saca?
AMBROSINA - Não, seu rufião empedernido. Sua mãe já se endividou até a raiz dos cabelos para te proporcionar todas essas alegrias!
VICENTE - Mas então, o quê?
AMBROSINA - O quê o quê, frango confuso?
VICENTE - Mas a senhora não disse “E agora...”?
AMBROSINA - Ah sim, claro. Agora nós vamos descer...(E começa a jogar todos os presentes na saca)
VICENTE - Descer...
AMBROSINA - Sim.
VICENTE - Mas descer...para onde?
AMBROSINA - Pra cima, Vicentinho! Ah, meu Deus, esse menino é um verdadeiro karma! (E continua guardando as coisas)
VICENTE - Eu não estou entendendo, mamãe!?
AMBROSINA - Novidade espantosa!? (E continua guardando. Vicente, após terrível esforço de raciocínio, julga compreender as intenções da mãe)
VICENTE (Horrorizado) - Não!
AMBROSINA - Viu como essa bata já lhe fez bem? O seu raciocínio dedutivo já começa a aflorar...
VICENTE - Eu não acredito, mamãe. Eu não posso crer que a senhora pretenda mesmo...
AMBROSINA - Pois pretendo. E quando sua mãe pretende alguma coisa, Vicentinho...
VICENTE - Mas não é permitido! O regulamento...
AMBROSINA - Meu filho: os regulamentos só existem para serem burlados. E quando se trata de uma causa nobre, a possível falta passa a ser virtude. (Nesse momento ela já deverá ter acabado de guardar tudo) Vamos?
VICENTE - Mamãe!?
AMBROSINA - Bem, se você não vem, eu vou sozinha...(E se dirige para a abertura do túmulo)
VICENTE - Mamãe...
AMBROSINA (Já com a metade do corpo dentro da cripta) - Até já, meu fetinho triste... (E some)
VICENTE - Mamãe!!! (E desaparece atrás dela. BO. Entra uma música suspeita. Depois de um tempo, vemos Vicente e Ambrosina caminhando por um longo e sinuoso corredor. De vez em quando passam por uma zona mais ou menos iluminada. Portanto, o diálogo que se segue é feito na luz e na sombra, de forma que algumas vezes só percebemos os seus vultos catacúmbicos)
AMBROSINA - Vicentinho...que lugar escuro. Será que não há perigo de assalto?
VICENTE - Fala baixo, mamãe, por favor! Alguém pode ouvi-la!?
AMBROSINA - E é bom mesmo que me ouçam. Assim, se formos atacados, a nossa chance de sermos socorridos aumenta consideravelmente.
VICENTE - Mas quem nos assaltaria aqui, mamãe? Que absurdo!?
AMBROSINA - Nunca se sabe, meu filho. Essas vielas e becos, plenos de umidade e desprovidos de luz, só podem conduzir à fornicação ou ao crime. (Subitamente, Ambrosina estaqueia e dá um grito. Vicente a olha, apavorado. Ao mesmo tempo se acende um foco mais adiante. Ambrosina, hirta, aponta na direção desse foco. Nele vemos um casal que se beija com ardor. Vicente fica um momento apalermado, mas depois abandona a mãe e penetra neste segundo foco. Tenta se explicar, mas a voz não lhe sai. Então recorre a gestos e aponta a mãe)
HOMEM - Quem é aquela senhora, Vicente?
MULHER (Acenando) - Alô! (Nesse momento Ambrosina, já refeita, avança impávida na direção do trio. Some o foco de luz em que estava. Assim que ela entra no novo foco...)
AMBROSINA - Aquela senhora é a mãe dele. (Aponta Vicente)
HOMEM - Encantado.
MULHER - Encantada. (E ambos voltam a se beijar, só que agora com um ardor ainda maior. Ambrosina, algo despeitada, pega Vicente pelo braço e o carrega dali. Passados alguns instantes, surgem num outro foco. Vemos ainda o casal que se beija)
AMBROSINA - Quem são essas criaturas suspeitas, Vicente, que ameaçam entrar num processo de cópula a qualquer momento?
VICENTE - São um casal, mamãe.
AMBROSINA - Isso eu também pude ver, beduíno! Refiro-me à identidade de ambos e ao grau de relacionamento que mantêm com você.
VICENTE - São atores. E...são amigos.
AMBROSINA - Atores...Só podiam ser. Sempre exagerados, sempre representando. Olha lá, Vicente. (Aponta) Agora você me diz: para se atingir o ápice é necessário todo esse contorcionismo seqüencial de piruetas? Ahnn? Essa multiplicidade de ações simultâneas, que só contribuem para caotizar a beleza e conduzir à dispersão? Palhaços...exibicionistas de catacumba...impotentes do gozo pleno...(Ao filho) Mas pára de olhar para esse rocambole incandescente, criatura lúbrica! Depois você não dorme e mancha as fronhas! Vamos indo...(Pega Vicente pelo braço)
ZÉMUNA (No escuro) - Viceeennnteee! (Vicente e Ambrosina se imobilizam)
AMBROSINA - Mas o que é isso?
VICENTE - Uma voz...
AMBROSINA - Será mesmo, Vicente? (Acende-se um novo foco. Nele está Zémuna, belo e faceiro rapaz, contemporâneo de Shakespeare. Quando a luz se acende em Zémuna, apaga-se o foco dos amantes, que somem)
ZÉMUNA – Vicente...aonde quer que estejas, eu te suplico...O meu corpo, exausto da busca do teu, ameaça sucumbir a qualquer momento! (Chora, trágico)
AMBROSINA - Meu filho: esse “Vicente” por acaso é você?
ZÉMUNA - Logo hoje, no dia do teu aniversário, quando para ti uma ceia digna dos deuses preparei, tu te comportas como um apóstolo que visse em mim o teu centurião!
AMBROSINA - Meu filho: o comportamento dessa aparição não te parece estranho?
ZÉMUNA - Nem que seja pela última vez deixa que meus olhos, já turvados pelo véu da angústia, sobre os teus recaiam, para que nossas pupilas se dilatem como outrora e retenham as imagens pungentes deste desterro abominável ao qual tu agora me relegas!
VICENTE (Emocionado, sem conseguir conter-se) - Zémuna!
ZÉMUNA (Vendo-o) - Vicente! (E corre trôpego na direção do amado. Em seguida, atira-se a seus pés, enlaçando suas pernas) Aonde estavas, ser adorado? Pétula sublime do meu jardim de sonhos? (Puxa Vicente para si e Vicente também se ajoelha) Por que me maltrataste com tua ausência inconcebível? Que pretendias ao confundir-te com as sombras que neste vale de lágrimas pululam? De saudade e rejeição matar-me? Ou pôr à prova a consistência e a constância dessa minha paixão insucumbível? Anda, fala! Ou faze de mim o que quiseres! (Não conseguindo mais conter-se, Ambrosina desfere em Zémuna, sem que ele a veja, uma tremenda bengalada) Aaaahhh! Mas por que me golpeias com tamanho ímpeto? Pretendes, acaso, dilacerar minha coluna? Transformar-me num inválido? Ou talvez canalizar em fúria um gesto que no fundo encobre o teu amor? Se verdadeira for a última premissa então me surra, coração, que eu agüento a barra! (Nova e ainda mais terrível bengalada) Aaaaahhhh, paixão da minha vida! Embora te agradeça a exemplar clareza, devo confessar-te que o vigor da mesma a mim, neste momento, faz cismar...
AMBROSINA - Cisma, fantasma pervertido. Que teu fim, na verdade, já está perto.
Pois a mãe de Vicente, em tua coluna, já deixou um rombo bem aberto. (Só agora Zémuna se dá conta da presença de Ambrosina. Ouve-se “Tristão e Isolda”)
ZÉMUNA - Quem és tu, criatura espúria e nebulosa?
AMBROSINA - A mãe deste menino, que ao te ver ficou nervosa.
ZÉMUNA - E esse descontrole, ao que imagino, será minha ruína.
AMBROSINA - Problema teu. Questão de sina.
ZÉMUNA - Adeus, então. O destino se cumpriu.
AMBROSINA - Perfeitamente. Vá pra puta que o pariu! (As luzes se apagam abruptamente. Depois de um tempo, escutamos o choro de Vicente. Quando as luzes se acendem, estamos em seu quarto subterrâneo. Nele há uma cama, uma estante, a gaiola com o periquito e uma cadeira de balanço, na qual Vicente se balança coberto por um edredom, cuja cor oscila entre o azul e o lilás. Tudo neste quarto tem esse tom diáfano. Ambrosina está colocando na estante os presentes que trouxe)
AMBROSINA - Foi melhor assim, meu filho. (Vicente solta um pequeno uivo) Vicentinho: esse ganido histérico significa que você discorda de minha opinião? (Vicente gane de novo) Então você acha que eu deveria ter feito o quê? (Nova ganidinha) Olha aqui, Vicente: eu só não te dou uma surra de cinto nesse segundo apenas porque você já está chorando e ela não teria a menor graça. Agora, presta atenção: mais uma afronta dessa natureza e eu te reduzo a cinzas, pederasta subterrâneo!
VICENTE - Poupe seu tempo, mamãe: eu já sou um monte de cinzas!
AMBROSINA - Você é um monte de pouca vergonha, isso sim! Tal qual uma mariposa obscena, você abandona o casulo da formação que eu lhe dei e se transforma na sua própria antítese!?
VICENTE - Engano seu, mamãe. Eu sempre fui o que sou.
AMBROSINA - O quê?
VICENTE - Isso mesmo. Eu apenas não sabia.
AMBROSINA - Mentira! Você diz isso na esperança de que os poucos cabelos que me restam se arrepiem e eu perca de vez a lucidez que sempre me caracterizou!
VICENTE - Eu estou dizendo a verdade, mamãe. Zémuna apenas me mostrou aquilo que no fundo eu...
AMBROSINA - Não torne a pronunciar este nome na minha presença, Vicente. Ou eu tenho uma convulsão!.
VICENTE - Mas por quê, se ele é – ou foi, já nem sei mais – tudo de bom que eu tenho ou tive aqui? Entre outras coisas eu devo a ele...
AMBROSINA - Devia, Vicentinho. Pois esse fauno empedernido que te levou à perdição já se diluiu na memória dos tempos. Trata-se, a partir de agora, de sacudir a poeira da sordidez e construir um futuro de redenção!
VICENTE - Na morte não há tempo, mamãe.
AMBROSINA (Pegando a bengala) - Mas há a bengala do teu avô que vai te partir o crânio se você não calar a boca nesse instante! (Assustado, Vicente se tapa com o edredon) Era só o que me faltava: uma bicha intraterrena com pretensões filosóficas!? Meu Deus do céu, aonde é que nós estamos!? (Surge um sujeito alegre, vestido com roupas coloridas)
COLORIDO - No inferno, cara senhora. (Ambrosina se vira para Colorido e o mede de alto a baixo. Vicente põe a carinha de fora e leva um susto)
AMBROSINA - Vicente: quem é esse havaiano?
VICENTE - Mamãe, por favor, tenha um pouco de...de...
AMBROSINA - “De” o quê, criatura dúbia?
COLORIDO - De cuidado. É isso o que ele quer dizer.
AMBROSINA - Cuidado, eu? E com o quê, pode-se saber?
COLORIDO - Comigo.
AMBROSINA - Contigo?
VICENTE - Mamãe...
AMBROSINA (A Colorido) - Escuta aqui, meu filho: no dia em que Ambrosina Sarmento tremer diante de uma arara é porque realmente atingimos o apocalipse!
VICENTE - Mamãe!
AMBROSINA - Isso mesmo. E tem mais uma coisa, minha vereda tropical: meu filho e eu temos vários assuntos a resolver que dispensam a sua carnavalesca figura. Portanto, trate de retirar-se. (E ela retoma a arrumação da estante. Vicente, constrangido e algo apavorado, mediante gestos inexpressivos tenta justificar para Colorido o comportamento da mãe. Depois de um tempo...)
COLORIDO - Minha senhora...
AMBROSINA (Virando-se) - Ué...mas o senhor ainda está aí?
COLORIDO - Eu pediria que a senhora me acompanhasse.
AMBROSINA - Acompanhá-lo? E por quê?
COLORIDO - Porque é preciso.
AMBROSINA - É preciso por quê?
COLORIDO - Há alguém que deseja vê-la.
AMBROSINA - Pois diga a esse “alguém” que nossos desejos não coincidem. Como acabo de lhe dizer, meu filho e eu temos sérias contas a ajustar.
COLORIDO - Nós também temos sérias contas a ajustar.
AMBROSINA (Gritando) - “Nós” quem?
COLORIDO - Por favor, minha senhora, não é preciso tanta irritação comigo. Eu sou apenas um porta-voz!?
AMBROSINA - Não adianta se fazer de coitadinho porque você não me comove. E eu só estou irritada com a sua relutância em se evadir deste quarto. O senhor é um pentelho!
VICENTE - Mamãe!
AMBROSINA - O senhor é um tiro no saco com espingarda de rolha!
VICENTE (Levantando) - Mamãe, pelo amor de Deus!
COLORIDO - Vicente! Certas expressões, como você está cansado de saber, não são bem-vindas aqui!
VICENTE - Desculpe. É que eu ainda não estou totalmente adaptado e...
AMBROSINA - Mas que história é essa de “expressões bem-vindas”? Existe, por acaso, alguma patrulha semântica nesta galeria de metrô?
COLORIDO (A Vicente) - É melhor você convencer sua mãe. Nós aguardamos no salão de recepção. (A Ambrosina) Para o bem do seu filho e, porque não dizer, para o seu próprio bem, não será conveniente faltar a esse encontro...(E sai)
AMBROSINA (Após um momento de reflexão) - Vicentinho...se o meu instinto materno não me falha, algo me diz que este não é um lugar apropriado para você. Senão, vejamos: de cara eu me deparo com uma cena circense, inserida num contexto aparentemente sexual, de irritante incompetência. Logo em seguida, tenho o desprazer de conhecer um fauno elisabetano que me força a aleijá-lo a bengaladas. Dez minutos depois, e não mais que isso, invade seus aposentos um turista havaiano com pinta de traficante. Ou seja: se sua mãe não tomar agora uma atitude enérgica, fatos ainda mais cabulosos atropelarão tua vida numa progressão tão fulminante quanto a das catástrofes. Assim sendo, não me resta outra opção. (Vira-se enérgica para a estante e começa a recolocar na saca todos os presentes. Vicente a olha, aparvalhado. Depois de um tempo...)
VICENTE - Mas o que é isso, mamãe? Vai carregar de volta todos os meus presentes?
AMBROSINA - Isso mesmo.
VICENTE - Mas por que? Eu gostei tanto deles!
AMBROSINA - Justamente por isso. Eu não quero que fique nada aqui.
VICENTE - Eu não estou entendendo, mamãe. A senhora dá com uma mão e depois tira com a outra!?
AMBROSINA - Que frase profunda, Vicentinho.
VICENTE - O meu tênis! Os meus livros! Por favor, mamãe, me deixe ao menos a geléia de mocotó embasa!? (Indiferente aos apelos do filho, Ambrosina continua guardando tudo. Vicente fala com a platéia) Que destino, o meu. Perco o tênis, o mocotó, o amor e mamãe, que ameaça partir e nunca mais voltar. Por quê? Que mal eu fiz para merecer castigo tão insuportável? Será que a solidão, a fome e os calos serão meus únicos companheiros doravante?
AMBROSINA (Já pronta) - Que bonito, meu filho...mas que coisa mais linda...se eu não estivesse carregada como um estivador eu aplaudiria de pé e pediria bis, como na ópera...
VICENTE - Aonde é que a senhora vai?
AMBROSINA - Para casa.
VICENTE - E eu, mamãe? Como é que fico?
AMBROSINA - Você não fica. Você vai.
VICENTE - Para onde, mamãe?
AMBROSINA - Ah, Vicentinho...o teu QI às vezes me dá uma tristeza...
VICENTE - Eu não estou compreendendo!?
AMBROSINA - Faz mal não, filhinho...vem...(E começa a se afastar) Mesmo porque você raramente compreende alguma coisa...(E some na escuridão. Vicente, após um rápido e doloroso esforço de raciocínio, julga haver compreendido os planos de sua mãe)
VICENTE - Não é possível! (E vai atrás dela. BO. Entra a música suspeita. Quando as luzes se acendem, estamos de novo no corredor da primeira trajetória subterrânea. Dois focos principais: no primeiro deles - já que o caminho agora será percorrido em sentido inverso - vemos Zémuna, que ainda agoniza; no segundo foco, o casal se beijando. A mesma atmosfera de luz e sombra)
VICENTE - Mas isso é um absurdo, mamãe!
AMBROSINA - Absurdo é eu ter que carregar sozinha esse monte de tralhas enquanto você fala pelos cotovelos!
VICENTE - Eu ajudo.
AMBROSINA - Agora é tarde. Ou as coisas são espontâneas ou não são. Sigamos!
(Ambos entram numa zona de penumbra)
VICENTE - Mas é contra o regulamento, mamãe!?
AMBROSINA - Vicentinho: será que além de viado você se tornou definitivamente um burocrata?
VICENTE - Eu não sou nem uma coisa nem outra, mamãe. Eu simplesmente descobri o amor, em toda a sua plenitude!
AMBROSINA - Vicentinho: mais uma frase profunda dessas e eu te mergulho no sal assim que chegarmos em casa. (Entram no foco de Zémuna. Vicente dá um grito) Você está vendo? A tua plenitude ainda estrebucha...(Vicente uiva e se crispa nas costas da mãe. Eles passam por Zémuna e voltam à penumbra)
VICENTE - Fique sabendo, mamãe, que uma parte importantíssima de mim fica sepultada nesta tumba!
AMBROSINA - Faz mal não, meu filho. Com a outra você compõe uma canção que preste.
VICENTE - A minha aptidão para a música é zero, a senhora está cansada de saber.
AMBROSINA - Mamãe te ajuda. (Entram no foco dos amantes. Ambrosina dá uma pancadinha nas espáduas do homem. O casal interrompe sua função) Meu filho: desse jeito ela não goza nunca! (E entram novamente na penumbra. BO. Fica por um momento a música suspeita. Quando as luzes tornam a se acender, estamos de novo no cemitério. Sentado sobre a campa do túmulo de Vicente, um personagem algo estranho fuma placidamente um charuto. Depois de um tempo, começamos a ouvir as vozes um tanto abafadas de Vicente e Ambrosina)
Voz VICENTE - Calma, mamãe. Está muito pesada, eu não consigo abrir!?
Voz AMBROSINA - Sem boa vontade, Vicente, não se chupa nem um picolé!
Voz VICENTE - Devem ter colocado um peso em cima.
Voz AMBROSINA - Mas por que alguém faria isso, pamonha?
Voz VICENTE - Sei lá, mamãe.
Voz AMBROSINA - Então se esforça, Vicentinho. Mas que criatura lerda, meu Deus!? (O estranho cavalheiro sorri, sai de cima da campa e ajuda a abri-la)
Voz VICENTE - Parece que está cedendo, mamãe.
Voz AMBROSINA - Parece não, Vicente: metade já foi! (Vemos surgir primeiro as mãos, depois a cabeça e por fim metade de Vicente. Quando ele vê o estranho cavalheiro dá um grito pavoroso e recua para dentro do túmulo, deixando de fora apenas parte da cabeça e uma das mãos)
Voz AMBROSINA - Ai, Vicente! Seu palerma! Quer me fazer o favor de tirar o calcanhar de dentro do meu olho? (Petrificado, Vicente não responde) Você está me ouvindo, condenado? (Vicente permanece mudo) Então, tudo bem: eu vou arrebentar o teu tendão de Aquiles! (Vicente solta um grito pavoroso. Ato contínuo aparece a cabeça de Ambrosina) Pronto: de hoje em diante você puxa de uma perna.
VICENTE (Emergindo, às lágrimas) – Mas por que a senhora fez isso, mamãe?
AMBROSINA - Porque você queria me cegar, múmia desalmada! E agora nem mais um pio, se não eu te trucido. (E começa a sair do túmulo. Vicente, ainda que lacerado pela dor, tenta segurar a mãe e avisá-la da presença do estranho cavalheiro. Ela, no entanto, ao sentir-se presa...) Mas o que é isso? Será que agora você pretende me estrangular?
VICENTE - Não, mamãe, eu estou apenas tentando te mostrar!
AMBROSINA - Mostrar o quê, verme matricida?
VICENTE - Ele!!!
AMBROSINA (Vê o estranho cavalheiro, que lhe sorri) - E o que é que tem demais, Vicente? Será que você soltou esse uivo pavoroso apenas porque essa criatura suspeita, que não faz outra coisa além de exibir sua dentadura nova, apareceu na tua frente? (O estranho cavalheiro, que poderia ofender-se, parece encantado com o caráter intempestivo de Ambrosina)
VICENTE - Mamãe, ele é...
SATÃ - Permita que eu me apresente, Vicente.
AMBROSINA - Antes de fazê-lo, não seria mais gentil de sua parte socorrer uma velha mãe exausta e entalada numa tumba?
SATÃ (Aproximando-se) - Certamente. Espero que me perdoe...(Ele estende a mão, que Ambrosina utiliza como apoio para deixar o túmulo)
AMBROSINA - Agora o senhor está perdoado.
SATÃ - Já que é assim, passemos às apresentações. Querida Ambrosina, eu sou...
AMBROSINA (Virando-se para Vicente) - Vicente: será que aquele teu coice histérico, além do olho, me afetou também os tímpanos?
VICENTE - Por que, mamãe?
AMBROSINA - Porque eu creio ter ouvido sair, da boca murcha desse sujeitinho, a expressão “querida Ambrosina”...
VICENTE - Saiu sim, mamãe. Eu também ouvi.
AMBROSINA - E isso, na tua opinião, é signo do quê, Vicente?
VICENTE - Como é, mamãe?
AMBROSINA - Nada, Vicente...nada. Sabe, filhinho, às vezes a tua parvoice é de tal magnitude que eu...
SATÃ - De fato, querida Ambrosina, Vicente é realmente muito parvo.
AMBROSINA - Escuta aqui, meu senhor: pra início de conversa, a sua opinião não foi requisitada. E depois o meu nome, já precedido duas vezes de um adjetivo dessa natureza, pressupõe uma intimidade que eu absolutamente não lhe dei. Portanto, considere-se um sério candidato a umas boas bengaladas! (E brande a bengala no ar. Ainda que fascinado, o cavalheiro recua dois passinhos)
SATÃ - Rogo que me desculpe, encantadora dama. Deixei-me levar pela ênfase, mas meu único intuito era o de agradá-la.
AMBROSINA - O senhor não imagina que galanteios surrados, proferidos de madrugada, num cemitério, possam ser levados a sério...
SATÃ - Mas o que é que eu posso fazer, bela senhora, se é aqui que eu vivo?
AMBROSINA - O senhor é coveiro...
VICENTE - Mamãe!
SATÃ - Eu diria que sou...uma espécie de anfitrião.
AMBROSINA - Meu senhor: as frases iniciadas no condicional me exasperam profundamente, pois conduzem sempre à incerteza. Ou o senhor é anfitrião ou não é. Concorda?
SATÃ - Pois muito bem: em respeito ao seu amor pela objetividade, nada mais me resta a não ser confessar que sou Satã!
AMBROSINA (Após uma pausa) - Satã de quê?
SATÃ - Como assim?
AMBROSINA - Eu gosto de saber o nome completo. É um hábito que trago do berço.
SATÃ - Perdão, talvez eu não tenha sido suficientemente claro...
AMBROSINA - E não foi mesmo. O nome próprio não significa nada. O da família é que é essencial.
VICENTE - Mamãe!
AMBROSINA - Vicente, você quer parar de se interromper? Por acaso você está com ciúmes? Será que sua mãe não pode conversar com outro homem que você fica se coçando o tempo todo?
VICENTE - Mas será possível que a senhora ainda não percebeu?
AMBROSINA - Percebeu o quê, edipiano inveterado?
VICENTE - E ele é Satã, mamãe! S-A-T-Ã!
AMBROSINA - Mas isso eu já sei, cretino! Que inferno!
VICENTE - Pois é isso, mamãe! Satã, inferno! (Sonopalstia de trovão. Raios recortam a cena. Desaba um temporal bíblico. Ambrosina, indiferente às intempéries da natureza, olha fixamente para Satã, que por sua vez também a olha e um tanto orgulhoso, já que tem como certo que a borrasca desabou pelo fato de seu nome ter sido mencionado. Quanto a Vicente, que inicialmente procurara refúgio aconchegando-se a Ambrosina, começa aos poucos a se recompor. Vendo, porém, o olhar que trocam Ambrosina e Satã, fica ansioso e sente-se como que obrigado a dizer algo capaz de desanuviar o clima, em sua opinião carregado. Então, depois de rápida, porém intensa reflexão...)
VICENTE - Chove...
AMBROSINA - Será, Vicente? Pois eu tive a nítida impressão que alguém mijava na cabeça da gente, só de sacanagem...(Para o cavalheiro) Com que então...o senhor é o famigerado príncipe das trevas!
SATÃ - Príncipe, certamente. Mas famigerado...
AMBROSINA - O que teve a petulância de querer se igualar a Deus.
SATÃ - Perdão, mas essa história foi sempre mal contada. Na realidade...
AMBROSINA (Enfurecida, bengala em punho, acua o cavalheiro) - Capiroto! Bode preto! Anhangá! Mofino! Tição! Rabudo! Pé-de-pato!
SATÃ - Querida Ambrosina...
AMBROSINA - Anjo decaído que arrastou meu filho para as trevas abissais.
SATÃ - Não é verdade, eu lhe juro. A opção foi dele.
AMBROSINA - Mais uma acusação contra meu filho e eu o desintegro a bastonadas! (E dá violenta bengalada num túmulo)
VICENTE - Ele não está mentindo, mamãe! Eu escolhi a porta errada!
AMBROSINA - Que porta, Vicente?
VICENTE - Escuta, mamãe. A coisa se passa assim: tão logo baixamos à sepultura, recobramos a consciência. Então o fundo do caixão se abre e caímos numa sala hermética, com apenas duas portas.
AMBROSINA - Se ela tem duas portas não é hermética, Vicente.
VICENTE - Mas eu tive a sensação que era.
AMBROSINA - E o que acontece depois, criatura hermética?
VICENTE - Eu fiquei achando que alguém viria me buscar. Como isso não aconteceu, depois de um tempão eu...resolvi agir.
AMBROSINA - E se dirigiu a uma das portas...
VICENTE - A da direita.
AMBROSINA - E quando a abriu, deu com esse aí...
VICENTE - Correto.
AMBROSINA - Se fosse a da esquerda, cairia nos braços de Jesus.
VICENTE - Tudo leva a crer que sim.
AMBROSINA (Depois de um tempo) - Teria a velhice deformado minhas feições a ponto de ser tomada como a mais perfeita idiota? Recobra-se a consciência...cai-se num alçapão...e abre-se uma porta. Todo o mistério da morte estaria então atrelado ao mero acaso, invalidando o balanço de toda uma vida. O justo, se sua intuição for equivocada, arderá por toda a eternidade. Podendo ocorrer o inverso com aquele que sempre praticou o mal...(Pausa ameaçadora) Como ousam supor, criaturas entrevadas, que vá dar crédito a semelhante patuscada? (E parte em perseguição a Satã. Entra uma música frenética, de natureza operística. Vicente e Satã proferem frases suplicantes, que não chegam a ser apreendidas com clareza. Finalmente, Ambrosina agarra Satã e com surpreendente agilidade o atira ao solo. Em seguida, ela ergue a bengala como prestes a desferir um golpe mortal. Nesse momento, surgem no túmulo de Vicente o Homem, a Mulher, Zémuna e Colorido)
MULHER - Senhora!
AMBROSINA (Virando-se) - Ah, mas que surpresa agradável. Chegaram a tempo de me ver esfacelar o crânio de vosso abjeto amo!
MULHER - A mim pouco importa o destino que a senhora dará à cabeça desse sujeitinho. Vim apenas em busca de um conselho.
AMBROSINA - Pois não.
MULHER - Senhora...eu preciso gozar. Mas o orgasmo não me vem!?
AMBROSINA - Troque de parceiro, minha filha. Esse magricela aí não tá com nada.
MULHER - Obrigado. (Ela esbofeteia o Homem e some na tumba. Ele vai atrás)
AMBROSINA - E você, havaiano? O que te trouxe aqui?
COLORIDO - Ouvi gritos. Pensei que a matavam.
AMBROSINA - E então você veio saborear a minha morte...
COLORIDO - Sim, e repleto de motivos. Afinal, fui muito maltratado pela senhora.
AMBROSINA - Admiro tua coragem. Mas vamos ver se você a manterá. Aguarde só um instante, enquanto eu dou cabo deste aqui...(E aponta Satã. Colorido some. Ambrosina sorri e vira-se para Zémuna). E quanto a vós, fauno empedernido? Causa-me espécie terdes conseguido vos arrastar até aqui...
ZÉMUNA - O amor tudo supera, mesmo o mais terrível abalo.
AMBROSINA - Pois então esperai, que já irei arrematá-lo.
ZÉMUNA - Engano vosso, pois dessa vez Vicente tomará minha defesa.
AMBROSINA - Se o fizer, tadinho, demonstrará pouca esperteza.
ZÉMUNA - Massacraríeis, então, vosso próprio filho?
AMBROSINA - Sim, como a galinha que faminta bica o milho.
ZÉMUNA - Não sois humana, sois a maldade personificada.
AMBROSINA - Poupai o verbo e ajustai o lombo, pois logo tomareis muita porrada.
ZÉMUNA - Vicente!
VICENTE - Zémuna! (Vicente corre até o amante e o enlaça)
AMBROSINA - Vicente! (Estupefata, Ambrosina liberta involuntariamente Satã, que some no túmulo de Vicente. Enfurecida, ela corre até Zémuna e o filho)
AMBROSINA - Soltai meu filho, viaça catacúmbica!
ZÉMUNA - Sucumbiremos juntos, desvairada dama!
VICENTE - E na mesma cama, totalmente enlaçados!
AMBROSINA - Na mesma o quê, Vicente?
VICENTE - Como Romeu e Julieta, Zémuna e eu atravessaremos toda a eternidade lado a lado!
ZÉMUNA - Meu lírio do campo! Rápido, pega-me em teus musculosos braços. E fujamos antes que seja tarde! (Vicente obedece e some com ele no túmulo)
AMBROSINA (Indo até o túmulo) - Volte aqui, Vicente! Não se atreva a escafeder-se! Obedeça já a sua mãe! Ou eu nunca mais venho te ver! Você está me ouvindo, pederasta infernal? (Ela pára, exausta. Tempo) Meu Deus...isso não pode estar me acontecendo...que pesadelo horroroso...o meu Vicentinho amasiado com um elisabetano invertido!? E, no entanto, o que lhe custaria ter se apaixonado por aquela mocinha? Tão bonitinha, tão carente, tão ávida...(Tempo) Lírio do campo...Ah, Zémuna, um dia você ainda me paga. (Para a platéia) Sim, porque não pensem os senhores que eu tenha aceito, como fato consumado, essa momentânea derrota. Em absoluto. Assim que recuperar o fôlego, parto no encalço de meu filho e sua esposa. Ou vice-versa... E os encontrarei, nem que para tanto tenha que vasculhar de ponta a ponta o abjeto Hades. Não se costuma dizer que ser mãe é padecer no paraíso? Pois bem: eu estou disposta a triunfar no inferno!!! (Entra uma música capaz de sublinhar toda a cólera de Ambrosina. Ela permanece em quadro vivo, enquanto as luzes caem em resistência)

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2 comentários:

  1. olá sou joseane (fada)estou interressada em peças que falem sobre união,será que vc pode me ajudar meu blog é :
    joseane-tempodevencer.blogspot.com

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  2. vi que você é professor de teatro você pode me dar alguma dica de exercicios de interpretação
    por favor....agradeceria muito

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